Li em uma entrevista com o diretor Zack Snyder em que ele diz que seu filme Liga da Justiça era algo que ele nunca pensou que seria lançado. Que teria apenas uma versão pessoal em seu computador como lembrança: “A gente mostrava para pessoas que passavam por aqui, como nossos amigos ou quem quer que fosse.”
Senti pena por qualquer visitante na casa de Snyder diante de uma situação como essa. Você pode imaginar, não é? Algum amigo desavisado, ou um parente, talvez – ou, ainda, um entregador ou um limpador de piscina – cuidando da própria vida, apenas tentando sobreviver ao dia, que de repente é obrigado a assistir quatro horas de Liga da Justiça no laptop do diretor, com ele provavelmente sob seus ombros, apontando as “melhores” partes.
Ele é um verdadeiro entusiasta, temos que admitir. Snyder deseja tornar seus filmes de super-heróis dolorosamente profundos, a ponto de todos sermos testemunhas da grandeza de nossa Mitologia Moderna. Esse desejo, de fato, aparece porque o diretor se esforça tanto para ser impressionante, especialmente na sequência de dez minutos nos créditos de abertura do filme, que ele atinge uma incompreensibilidade verdadeira. Se você não vive e respira as tramas dos filmes da DC, você não vai saber o que está acontecendo naquela sopa de imagens opulentamente exageradas, então aqui está um breve resumo do enredo para você evitar o trabalho de ir descobrindo tudo sozinho:
Superman (Henry Cavill) morre em batalha, e seu grito de morte ecoa por todo o mundo, acordando três “caixas-mãe” (de todos os nomes freudianos embaraçosos) ao redor do mundo. Há uma vibrando no armário de Ciborgue, uma trancada em Atlântida e uma sob forte guarda na Ilha das Amazonas. Se as três caixas forem capturadas e reunidas por Steppenwolf – o vilão com uma cabeça de tubarão-martelo e pele metálica, dublado pelo grande Ciarán Hinds – elas criarão uma espécie de reação térmica épica que permitirá ao vilão Darkseid, maior e mais assustador, dominar a Terra e transformá-la em uma paisagem mortal.
Assim, o cansado Batman (Ben Affleck) precisa reunir a turma mais uma vez para lutar contra o deus destruidor de mundos que ameaça a Terra, juntando Aquaman (Jason Momoa), Mulher Maravilha (Gal Gadot), Ciborgue (Ray Fisher) e o Flash (Ezra Miller). Mas como eles podem vencer sem o deus peso-pesado Superman no time?
Eu não consigo me relacionar com o impulso de levar um material como este muito a sério. Isso implora absolutamente pelas alegrias mesquinhas, turbulentas e polpudas do entretenimento popular, e qualquer profundidade temática que emerge de tais tramas é divertida para o público descobrir por conta própria, sem algum idiota presunçoso tentando transformá-la em arte cinematográfica para rivalizar com The Enigma of Kaspar Hauser.
Se você tiver que tentar “elevar” um gênero, existem maneiras sensatas de fazer isso. Deve-se notar que Snyder dificilmente é o primeiro diretor a assumir uma tarefa tão ambiciosa, embora ele possa entrar na história do cinema como aquele que teve o nível mais louco de arrogância. Na década de 1930, John Ford queria fazer um faroeste de tamanha qualidade e significado, que forçaria aqueles que desprezavam o gênero ultra popular – críticos e legiões de espectadores esnobes – a levá-lo a sério, e é por isso que ele fez Stagecoach (1939). Mas esse filme dura 96 minutos, possui um trabalho de dublês inovadores, um grande protagonista para John Wayne, experiências emocionantes em cinematografia e edição, e um humor paródico que destaca as reviravoltas inventivas que dá à arquétipos ocidentais bem estabelecidos.
A profundidade não impede tais encantos, mas Snyder parece equipará-la com a lentidão, a opacidade narrativa e a melancolia total. Além disso, sugestões de que o que ele está fazendo é muito solene são constantes. Como poderia um diretor inteligente permitir um crédito de abertura tão insuportavelmente pomposo como aquele que começa o Snyder Cut, onde se lê: “Este filme é apresentado em proporção de 4:3 para preservar a integridade da visão criativa de Zack Snyder”?
O uso dessa proporção agora antiquada que dominava a produção dos filmes clássicos de Hollywood antes da invenção dos sistemas widescreen na década de 1950 é um exemplo perfeito da visão criativa de Snyder, que tende para o vistoso e o sem sentido. Suponho que haja alguma ideia de que 4:3 faria o filme parecer “clássico”, o que não é verdade, e eu li que o compromisso de Snyder com o 4:3 está de olho em eventuais exibições em IMAX e na impressionante altura dos super-heróis bem posicionados no enquadramento.
O impacto real do 4:3 em um filme de super-heróis desse nível de orçamento e grandiosidade gritante é torná-lo vagamente consciente de que há algo faltando em seu campo de visão. Logo no início, você pode sentir as duas fatias ausentes da tela em cada lado da imagem quase quadrada, mas ainda pulsando fantasmagoricamente.
O projeto de Snyder foi impulsionado por legiões de fãs que podem igualar e superar sua própria obsessão em aprofundar o gênero de super-heróis, a tal ponto que nós adoraríamos vê-lo ir mais fundo ainda, à léguas de profundidade, alcançando algum lugar no fundo do oceano.
E, além de toda essa agitação dramática, Snyder tem dado entrevistas como se fosse o maior autor desde a morte de Akira Kurosawa, como se seu corte tivesse a incalculável importância cinematográfica e cultural que teve Seven Samurai (1954). O diretor parece convencido de que está fazendo um cinema verdadeiramente desafiador, mesmo que isso custe seu sucesso com o grande público:
Sou um provocador? Um pouquinho. É meu trabalho fazer da cultura pop um doce que você come e esquece no dia seguinte? Nah. Eu prefiro mais explodir algo em um filme do que torná-lo agradável e bonito para todos. [GZ1]
Ironicamente, me esqueci do Snyder Cut imediatamente após assisti-lo e tive que assistir novamente as 5 partes para resenhá-lo. O estilo fúnebre do filme, presumivelmente destinado a refletir o luto dos personagens pela morte do Superman e pela ameaça do fim do nosso mundo, é tão familiar agora que não podemos esperar que cause um grande impacto. O sombrio “visual dessaturado” se tornou popular na década de 1990 e tem sido usado implacavelmente desde então em thrillers neo-noir, filmes de ação e filmes de super-heróis. Snyder não traz nada de novo para o filme, e sua confiança na linguagem CGI dominante, que vemos em tantos filmes de grande orçamento e jogos de computador, agora é tão entediante que quero arrancar meus próprios olhos todas as vezes que assisto.
Os movimentos característicos do diretor são tentativas invariavelmente ostentosas, mas grosseiras, de “te tirar do sério”, de alcançar efeitos emocionais devastadores, sem que ele seja capaz de determinar exatamente como obtê-los. Tantas sequências de filmes memoráveis dependem de um fator perspicaz e visceral, concebido no nível do roteiro e então filmado e cortado de uma forma que fará com que todos na plateia sintam algo intensamente. “Atire no vidro!” em Duro de Matar, por exemplo, e a chuva de um milhão de fragmentos metralhados que podem machucar o descalço detetive John McClane nos faz torcer os dedos dos pés em agonia, o observando enquanto ele se arrasta para fora, com seus pés dilacerados deixando manchas sangrentas por todo o chão.
Não há um momento de ação violenta ao longo do árduo trabalho do Snyder Cut que nos faça sentir um soco, uma ponta de lança perfurando a carne ou a queimação muscular de uma corrida desesperada para salvar alguém. Ele é o Rei da Novocaína Cinematográfica, nos entorpecendo de todos os sentimentos.
Um bom exemplo da infelicidade excessivamente confiante de Snyder em suas tentativas de “grande emoção” são as sequências onde o personagem do Flash é apresentado.
Como nota de rodapé, é importante frisar que gostei do Flash (Ezra Miller), não porque ele seja particularmente interessante, mas porque ele é rápido. Essa é sua coisa como super-herói, obviamente – a capacidade de sprints na velocidade da luz – mas mesmo em seu disfarce de humano normal como um nerd tagarela que fala rápido. E dado que este é um filme que tem um ritmo definido como “pesado”, agravado pelo uso excessivo e entorpecente da câmera lenta, uma das marcas registradas de Snyder, qualquer coisa que aconteça rápido é um doce alívio.
Percebi pela leitura de outros analistas que o padrão crítico sendo aplicado ao Snyder Cut é este: é superior à versão amplamente criticada de Joss Whedon que saiu em 2017, essa violação hedionda da visão criativa de Zack Snyder? Eric Deggans, resenhista da NPR, reporta sem titubear que a resposta é sim:
Com uma avalanche de críticas terríveis [para a versão de Whedon] e um orçamento de US$ 300 milhões, o filme fez a Warner Bros perder muito dinheiro. Mas os fãs apaixonados e algumas estrelas do filme mantiveram a esperança viva… Posso soar como o maior geek das histórias em quadrinhos, mas preciso dizer: A Liga da Justiça de Zack Snyder é muito melhor.[GZ2]
Por esse padrão, o Snyder Cut fez sucesso com o filme porque é melhor do que um filme que é universalmente considerado um pedaço de merda. E acho que é útil saber, porque nos diz que os padrões aplicados a esses filmes chegaram à loucura total.
Filmes de super-heróis extremamente sérios estão sendo produzidos para fãs obsessivos que os abordam com uma reverência religiosa quase medieval, querendo discutir sobre quantos super-heróis podem dançar na cabeça de uma agulha. Mas, de alguma forma, o sofrimento dos cidadãos agnósticos foi arrastado para essa salada de frutas, e muitos críticos e jornalistas intimidados estão abordando os filmes como se estivessem cobrindo as obras dos santos profetas.
Eu, por meio deste artigo, nego essa fé e me declaro oficialmente uma apóstata. Quero que a mãe do Snyder Cut vá se [palavrão].
Sobre os autores
é crítica de cinema da Jacobin e autora no Filmsuck, nos Estados Unidos. Ela também apresenta um podcast chamado Filmsuck.