22 de outubro de 2019 marcou uma vitória decisiva na Irlanda do Norte, com o aborto finalmente descriminalizado. Essa notícia certamente terá passado despercebida para muita gente — afinal, tanto na mídia nacional quanto na internacional, a Irlanda do Norte é quase sempre “representada” somente pelos intolerantes do Democratic Unionist Party (DUP). Mas semana atrás, esse partido estridentemente anti-escolha foi finalmente desautorizado pelo Palácio de Westminster. O movimento para descriminalizar aborto no Norte veio cinquenta anos depois que um passo similar foi dado na metrópole britânica. Contudo, esse sucesso se deve especialmente a décadas de lutas heroicas travadas pelas feministas irlandesas.
As leis específicas criminalizando o aborto foram aprovadas pelo Parlamento imperial do Reino Unido em 1861 e até anos recentes permaneceu em ambas jurisdições na ilha da Irlanda. Apesar da legalização parcial do aborto na Grã-Bretanha em 1967, ele continuou criminalizado no Estado conhecido como Irlanda do Norte, o qual foi particionado do Sul pelos britânicos em 1920. Essa situação mudou parcialmente em maio de 2018, quando um esmagador voto de referendo revogou o banimento constitucional do aborto (conhecido como a Oitava Emenda). Porém, não houve mudança similar no Norte.
Foi nessa situação que a campanha North is Now buscou desafiar. Ela defendeu o direito de escolher tanto para mulheres quanto para as pessoas trans, genderqueer, não-binárias e intersexo, cujos direitos reprodutivos e de saúde são frequentemente negados e distorcidos. Com a mudança na lei em outubro de 2019, uma vitória em favor do nosso direito de controlar nossos próprios corpos se materializou. Todavia, como veremos, a luta para garantir abortos legais, seguros e livres por toda a ilha da Irlanda ainda não acabou.
Como nós lutamos
Campanhas em toda a Irlanda sobre questões de direitos reprodutivos e direitos de mulheres e minorias existem há muito tempo, até antes da fronteira britânica dividir a ilha. Embora a partição em 1920 tenha criado legislaturas autônomas no Norte e Sul, ambas as sociedades foram dominadas por uma cultura conservadora e patriarcal que compartilhavam abordagens similares no que diz respeito à autonomia corporal.
Nós mesmas somos de Derry, no Norte, e nosso ativismo sempre se estendeu através da fronteira, apoiando pessoas em condados vizinhos e especialmente nas áreas mais rurais de Donegal. Para a maioria de nós do Norte, fazer campanhas no Sul para a revogação da Oitava Emenda foi, portanto, uma decisão óbvia e natural.
Embora ativistas do Norte tenham feito parte integralmente da campanha Repeal the 8th, a vitória desta também renovou a urgência e a confiança que as ativistas tinham nas demandas por mudança em suas vidas. Nós celebramos a vitória da revogação especificamente porque o ganho para o Sul foi também um ganho para o Norte e para todas na ilha da Irlanda. Entretanto, uma diferença crucial, sobre a qual vale a pena refletir aqui, é como a mudança veio a acontecer no Norte — e sua relação com o falido Estado da “Irlanda do Norte”.
O fracasso do congresso e a oportunidade do governo
O Good Friday Agreement (GFA, Acordos de Belfast ou Acordos da sexta-feira Santa) que encarregou o autônomo governo do Parlamento de governar o Norte foi assinado em 1998 — quando nós ainda estávamos na escola. Disseram à nossa geração que deveríamos ser gratas pelos direitos e oportunidades concedidas por esse arranjo histórico. Mas, na verdade, o GFA tem muitas falhas, sobre as quais já escrevemos. Uma das maiores traições nesse “acordo de paz” foi que ele permitiu à “Nova Irlanda do Norte” reter violentas leis de aborto de 1861, antes das mulheres terem o direto ao voto. De fato, os artigos 58 e 59 do Offences Against the Person Act poderiam significar prisão perpétua para qualquer pessoa que realizasse um aborto e qualquer pessoa suprindo os meios para induzi-lo.
Ao longo do século desde a divisão da Irlanda, entre Norte e Sul, sofremos de profundo conservadorismo social — devido em grande parte ao papel da Igreja no Estado. Até para aqueles que cresceram em anos mais recentes, frequentando escolas profundamente religiosas onde se dita que aborto é um pecado, enquanto sabiam que muitas colegas de classe tinham passado por uma interrupção, criou-se uma cultura de vergonha e estigma. Todavia, se o aborto é legal ou não, as pessoas vão lutar por controle sobre seus próprios corpos e buscar interrupção para gravidezes indesejadas.
Por décadas, antes de pessoas da nossa geração se tornaram engajadas, organizadores de campanhas e ativistas montaram comunidades de apoio para aquelas que precisavam de um aborto. Ainda assim, para muitos — particularmente jovens mulheres com uma rede de apoio limitada — ter um aborto significava voar para a Inglaterra, tomando pílulas em segredo, ou medidas mais drásticas, como beber demais na esperança de que causaria um aborto espontâneo. Tudo isso continuou nos anos 2000, sob o acordo do governo no qual deveríamos ter colocado nossa fé para garantir nossos direitos civis. Mas ficou claro que a sociedade irlandesa tinha progredido em uma velocidade muito maior do que as leis iriam reconhecer.
O movimento pró-escolha é formado por ativistas incríveis, tentando fornecer apoio para qualquer pessoa que está decidindo se quer ou não manter sua gravidez. Sem grupos estabelecidos como esse, e os esforços incansáveis que eles fizeram, nossa geração teria achado impossível encontrar nossa voz e fazer campanha por direitos reprodutivos. Direitos reprodutivos também avançaram mais longe como parte de um movimento internacional — de fato, depois que o Repeal the 8th Movement ganhou impulso que muitas pessoas na Grã-Bretanha perceberam que o Norte da Irlanda tinha leis de aborto tão restritivas.
Mas nenhuma solução estava vindo de dentro das próprias instituições do Norte, que permaneceram trancadas. Quando chegou a hora dessa nova legislação passar, o Parlamento não tinha feito uma audiência por mais de 1.000 dias. É o período mais longo que qualquer governo “democrático” sem audiência e a situação parece improvável de mudar no futuro próximo. Com a reacionária assembleia do Parlamento dissolvida, ativistas não tiveram escolha a não ser levar suas demandas ao governo. Aqui, o contexto de Brexit e o fraco governo Tory criou uma abertura onde a maioria dos parlamentares do governo estavam preparados para legislar — por meio de emendas um projeto de lei parlamentar — de forma a descriminalizar o aborto e legalizar o casamento igualitário no Norte.
Qual é a próxima para a Irlanda?
Enquanto tais mudanças foram enormemente populares na Irlanda, não há apetite para uma jogada mais geral em direção a um governo direto no Norte. Enquanto políticos do Parlamento são claramente desonestos, deixando o poder nas mãos de funcionários civis, ambos são insustentáveis e lamentavelmente antidemocráticos. A nova legislação pode, então, ser apenas uma solução de curto prazo para o histórico problema de má administração na Irlanda. Até direitos ao aborto ainda não foram ganhos definitivamente. Enquanto a descriminalização foi claramente bem-vinda, em março de 2020, não haverá provisões locais de serviços de aborto no Norte.
O governo garantiu que o National Health Service (NHS, Serviço Nacional de Saúde) agora irá financiar consultas para aquelas com códigos postais de Belfast (assim como suas viagens e acomodações). Contudo, lá permanecem barreiras sociais, políticas e médicas que significam que o aborto ainda não será livre, seguro e disponível no Norte num futuro próximo. Além disso, assim como nossa luta sempre foi por toda a Irlanda, nossas soluções devem ser também. Cuidado para aquelas em cidades da fronteira e vilas, particularmente, não devem ser contingentes nas jurisdições Norte e Sul. Para aquelas que vivem no oeste rural de Donegal (no lado sul da fronteira), mas que usam Derry (do outro lado da fronteira, no Norte) para suas necessidades do dia a dia, faria mais sentido para elas obterem apoio ali ao invés de mais distante no Sul.
Desde que o Sul revogou a Oitava Emenda em maio de 2018, houve enormes avanços — incluindo serviços sendo lançados em menos de um ano. Entretanto, apesar do incrível apoio para a mudança no referendo de 2019 — com mais de 66% endossando a revogação — a ressaca de estigma em uma sociedade católica afeta as pessoas social e profissionalmente. Médicos ainda estão aguardando orientação e provisões detalhadas por toda a Irlanda — com áreas rurais ficando particularmente para trás. O período de espera entre ver um médico e ter a interrupção também traz estigma para as que buscam um aborto — especialmente dado o estrito limite de tempo abaixo de três meses.
Continue a luta
De fato, a batalha pelo direito de escolher ainda não acabou. Enquanto no Sul, o Repeal desfrutou de uma ampla base de apoio, até agora nenhum dos grandes partidos do Norte apoiou inteiramente o direito de escolher. Isso irá causar problemas no futuro se o Parlamento algum dia se estabelecer — pois todas nós sabemos bem demais que enquanto nossos corpos estiverem em debate, eles continuarão sendo moedas de troca política. E nós também sabemos que nem o Parlamento, nem o Governo, têm os interesses do povo irlandês em mente – nem irão legislar de acordo com esses interesses. É por essa razão que a campanha para abortos legais, seguros e livres deve continuar, além da atual mudança na lei.
O que nós podemos confiar para ganhar nossos direitos é em movimentos de base, progressistas. Não podemos mais ser acusadas de sermos nação insular, atrasada. Pessoas irlandesas, do Norte e do Sul, se provaram internacionalistas, e prontas para tomar as ruas para lutar contra. O conservadorismo social está em recuo e cada vitória que tivemos pelo país foram conquistadas marchando nas ruas, batendo nas portas e fazendo petições. A Igreja, há muito tempo dominante na educação irlandesa, está lentamente reconhecendo que precisará abdicar deste controle. Tal é a força de nosso movimento que até partidos de centro-direita estão sendo pressionados para aceitar políticas que previamente teriam sido anátemas a eles.
Construir nosso movimento horizontalmente o tornou inclusivo e internacionalista, conectando nossas lutas a questões globais. E onde nossos movimentos fazem progresso, eles estabelecem as condições para que um novo tipo de sistema político possa emergir pela Irlanda. Essa Irlanda iria certamente estar a mundos de distância da divisão e do acordo paliativo da década de 1990 que silenciou os direitos das mulheres e as vozes progressistas.