Em 7 de setembro, o Supremo Tribunal mexicano derrubou uma lei do estado de Coahuila que penalizava com um a três anos de prisão quem tivesse ou realizasse um aborto. Ao fazê-lo, deu um passo histórico: em uma decisão unânime, começou a declarar inconstitucional a criminalização do aborto em geral. “Nunca mais uma mulher ou uma pessoa capaz de gestar deve ser julgada criminalmente”, disse o juiz Luís María Aguilar, autor da decisão. “Hoje a ameaça da prisão e o estigma que pesa sobre as pessoas que decidem livremente interromper sua gravidez são removidos.”
Nos seus pareceres favoráveis, outros membros do tribunal foram surpreendentemente francos quanto aos fundamentos da sua decisão. “As razões que levam uma mulher a abortar, as condições de sigilo e insalubridade a que algumas são forçadas, as consequências para a sua saúde física e mental… produzem inimaginável sofrimento humano, especialmente para mulheres vivendo em situação de marginalização econômica e social”, escreveu o presidente do tribunal de justiça, juiz Arturo Zaldívar. “É um crime que, na prática, pune a pobreza.”
Segundo a juíza Margarita Ríos-Farjat, um “excesso de sofismas” lançou confusão sobre a questão real para mulheres que enfrentam a decisão de interromper ou não uma gravidez. “Como ela é ‘moralmente ruim’, ela merece ir para a prisão; se não, é porque ela é má ou ignorante, ou então é porque ela foi irresponsável, ou — como dizem — ela não cuidou de si mesma”, observou. “Por mais desespero ou desolação que possa sentir, ela tem de aguentar. Não é? Logo ela é promíscua e irresponsável: prisão… Ninguém engravida, no uso de sua autonomia, apenas para abortar.”
Embora a decisão não legalize imediatamente o aborto em todo o país, o fato de ter sido alcançada por uma destacada maioria torna-o um precedente vinculativo para os tribunais inferiores, inclusive na grande maioria dos Estados onde a prática permanece tecnicamente ilegal. As mulheres presas por abortarem poderão usar a decisão como motivo para invalidar seus casos, e as legislaturas estaduais serão forçadas a atualizar suas leis ou enfrentar seus próprios desafios legais. É um pouco irônico que Coahuila, cuja lei originou a decisão, pode logo se tornar um destino para as mulheres do outro lado da fronteira fugindo das novas restrições draconianas ao aborto estabelecidas no Texas, Estados Unidos.
Alívio a um preço
Na aparência, a decisão é claramente uma vitória a ser celebrada. Irá proporcionar alívio imediato num cenário sombrio onde até um milhão de abortos clandestinos são realizadas anualmente no México, um terço dos quais levam a complicações graves. Será um alívio imediato para as mulheres presas por abortarem: quem estiver em prisão preventiva será libertada e quem já tiver sido condenada poderá apresentar amparos, ou injunções, para invalidar as condenações.
A decisão irá fornecer alívio imediato também para médicos, parteiras e outros presos por realizar o procedimento de interrupção, assim como para aqueles que vivem com medo constante de acusação ou que perderam sua licença para exercer atividade médica. Em suma, a decisão salvará vidas e permitirá que aqueles que se viram jogados na máquina que gera um “sofrimento humano inimaginável”, nas palavras de Zaldívar, tenham uma oportunidade de recuperar um certo grau de liberdade e dignidade.
Entretanto, como sempre na política, a forma é a função. Em vez do direito de escolha das mulheres ser fruto de uma batalha legislativa, foi concedido ao público por um grupo de juízes da elite, com salários espetaculares. Em certo sentido, a decisão interrompe um processo que já estava em andamento: estimulado pelo ativismo dos grupos de direitos das mulheres, as legislaturas com maioria do partido MORENA legalizaram o aborto no estado de Oaxaca em 2019, seguido em rápida sucessão pelos Estados de Hidalgo e Veracruz, após as eleições deste ano (a prática é legal na Cidade Do México desde 2007).
Essas vitórias estavam fazendo pressão para a promulgação de uma lei federal, que a decisão permite, agora, ao MORENA, evitar. Uma conveniência de curto prazo, com certeza, mas que permite ao partido esquivar-se da sua responsabilidade de assumir a liderança sobre essa e outras questões de gênero, através de um esforço constante para a persuasão e a construção de coligações, em vez de seguir atrás de uma decisão judicial. Por mais bem-vinda que a aceleração resultante da decisão possa ser em termos práticos, ela vem à custa de uma legitimidade democrática diminuída.
O acelerador, também, nem sempre funciona exatamente como desejado. Na sua incursão anterior em decisões sociais contenciosas, o Tribunal legalizou o casamento entre pessoas do mesmo sexo em 2015. Seis anos depois, quase um terço dos Estados ainda não atualizaram a sua legislação para coincidir com a decisão, criando confusão e obstáculos jurídicos dispendiosos para futuros casamentos. É muito provável que uma dinâmica semelhante venha a concretizar-se com essa decisão, especialmente nos Estados governados pelos conservadores, que, até recentemente, se apressavam em definir que a vida humana começava já na concepção.
Consiga por escrito
Manchetes espetaculares a parte, a Suprema Corte do México não está exatamente vivendo uma idade de ouro. O juiz Luís María Aguilar, autor do acórdão sobre o aborto, foi alvo de inquérito por supostas irregularidades financeiras e nepotismo. Dois outros juízes, Yazmín Esquivel Mossa e Alberto Pérez Dayán, estão sob investigação por abusar do uso de documentos de registro consular, para poderem voar para o Texas e furar a fila para a vacina contra COVID.
No final de 2020, o Congresso aprovou uma reforma constitucional profunda numa tentativa de erradicar a corrupção, a impunidade e o tráfico de influência que são endêmicos ao poder judicial como um todo. Não é preciso um grau excessivo de cinismo para ver que uma decisão de grande visibilidade como esta, para além da sua importância política e judicial, representa um meio altamente eficaz de lavagem de imagens.
Independentemente das motivações para a decisão, o caminho a seguir é claro. Nos Estados Unidos, os liberais apaixonados pelas cortes apostaram todas as suas fichas na decisão do caso Roe vs. Wade, em vez de codificar o direito de escolher em lei. Cinco décadas mais tarde, os mesmos liberais torcem as mãos impotentes enquanto o mesmo Supremo Tribunal está à beira de derrubar a decisão. A esquerda mexicana não deve cometer este erro: deve codificar o direito a um aborto seguro, confidencial e livre em lei federal, e depois proceder para que esse direito seja uma realidade nacional.
Sim, as leis também podem ser revogadas, mas a história é instrutiva sobre este ponto: nos 14 anos desde a legalização do aborto na Cidade do México, o sistema funcionou bem e com surpreendentemente pouca controvérsia. Apesar das generalizações estereotipadas na imprensa ocidental sobre a identidade “conservadora e católica” do México, a descriminalização nos Estados — incluindo Oaxaca, que é fortemente indígena — tem sido recebida com um grau igual de fleuma.
É claro que a única maneira de o direito de uma mulher controlar o seu próprio corpo ser realmente irreversível é através do trabalho constante e a longo prazo de converter o princípio em um senso comum nacional. E essa é uma batalha que não pode ser evitada – e especialmente não deve depender dos caprichos de juízes.
Sobre os autores
é escritor, dramaturgo, jornalista freelance e cofundador do projeto de mídia independente “MexElects”. Atualmente, ele é co-autor de um livro sobre as eleições mexicanas de 2018.