A República Socialista Federativa da Iugoslávia era uma anomalia política. Governada por um Partido Comunista, mas rejeitada pelo Bloco Oriental após o racha entre Tito e Stalin de 1948, essa federação de seis repúblicas foi mantida unificada sob a bandeira de Tito de “fraternidade e unidade” interétnica, inter-religiosa e internacional. Após sua rejeição pela União Soviética, a Iugoslávia converteu sua precariedade geopolítica em um esforço hercúleo para traçar um meio-termo entre as duas superpotências mundiais.
Junto com Egito, Gana, Índia e Indonésia, o país fundou o Movimento Não-Alinhado, uma colcha de retalhos de nações subdesenvolvidas com a aspiração de traçar uma “terceira opção” decolonial de neutralidade formal durante a Guerra Fria. Essa iniciativa constituiu uma das poucas alianças internacionais genuinamente anti-autoritárias e anti-imperiais do século XX. A situação geopolítica única da Iugoslávia e sua autonomia em infraestrutura constituíam o solo fértil sobre o qual as sementes da identidade nacional do país foram plantadas.
O rápido crescimento dos estoques de reserva de materiais e das instalações industriais após a guerra, e especialmente depois que a Iugoslávia foi expulsa do Cominform em 1948, exigiu nada menos do que uma revolução logística. Máquinas de cálculo robustas eram essenciais para o monitoramento abrangente em tempo real de grandes quantidades de mercadorias sendo produzidas e trocadas. Movendo-se para atender a essa demanda, uma indústria nacional de computação começou a florescer.
O Dr. Rajko Tomović – um especialista em robótica que contribuiu para a invenção da primeira mão artificial com cinco dedos do mundo – trabalhava ao lado de equipes de matemáticos e engenheiros mecânicos no Instituto de Ciências Nucleares, em Vinča, e no Instituto de Telecomunicações e Eletrônica Mihajlo Pupin de Belgrado (mais tarde Instituto Mihajlo Pupin) para desenvolver técnicas de fabricação usando instrumentos e peças locais. A elevação dos padrões de vida nas décadas de 1960 e 1970 introduziu a necessidade de uma adoção cada vez mais ampla de computadores para a contabilidade na burocracia. A Iugoslávia se tornou uma panela de pressão tecnológica, incubando uma cultura de computação idiossincrática que florescia devido ao intenso apoio institucional.
No entanto, os computadores eram caros. O preço médio de um Iskradata 1680, um Sinclair ZX81 ou um Commodore 64 – os padrões de sistemas para os consumidores na época, encontrados em escritórios governamentais do país, firmas de contabilidade e laboratórios científicos nas universidades – excedia em muitas vezes o salário mensal do trabalhador iugoslavo médio. Para agravar esse obstáculo, haviam as rígidas restrições impostas pelo país às importações de qualquer item com custo superior a 50 marcos alemães; esse limite estava bem abaixo da quantia necessária para comprar um microcomputador de 8 bits produzido em qualquer lugar do continente europeu. Como resultado, ao longo da década de 1970, a propriedade, a experimentação e a programação de computadores eram o domínio de um seleto grupo de jovens iugoslavos bem educados e abastados.
Frequentemente, membros de movimentos artísticos, musicais e literários locais – como o Novas Tendências, o Novi Val (“Nova Onda” ou “New Wave”) – e das cenas de ficção científica, reuniam dinheiro para adquirir coletivamente uma máquina.
Mas a tradição cultural iugoslava de experiência e conhecimento autodidata seguia em frente. Durante as férias em Risan, Montenegro, no início dos anos 1980, Voja Antonić, um entusiasta de rádio amador e de eletrônica digital, desenvolveu o esquema conceitual básico para um microcomputador elementar. Antonić já era um engenheiro de renome; no passado, ele havia desenvolvido o Arbitar, um sistema de cronometragem oficial usado em várias competições de esqui nos Balcãs, bem como uma interface para transferir quadros de monitores monocromáticos para filmes de 16mm. Em suas férias em terras montenegrinas, Antonić leu o manual de aplicação de uma nova linha de CPUs de chip único produzida pela RCA Corporation. Isso lhe deu uma ideia: em vez de usar um controlador de vídeo sofisticado e caro, Antonić se perguntou se seria possível construir um computador cujos gráficos em bloco de 64 × 48 fossem totalmente gerados usando apenas um microprocessador barato como o Zilog Z80A – uma CPU prontamente disponível em lojas de eletrônicos em toda a Iugoslávia.
Ao voltar para casa, Antonić testou sua ideia, descobrindo que funcionava muito bem. Sua intervenção crítica tinha dois efeitos: reduzia o preço geral do computador e simplificava seu projeto, facilitando sua produção. Mais importante do que isso, porém, era o fato de que o esquema era tão simples que os usuários poderiam eles mesmos montar o computador sozinhos.
Um compromisso de longa data com hardware e software abertos permitiu que a invenção de Antonić se propagasse por todo o país. Isso precipitou uma pequena revolução informática, colocando em atividade uma multiplicidade de atores subculturais – programadores, jogadores, DJs, músicos e colecionadores de fanzines – que convergiam ao redor da nova combinação de coletividade, autodidatismo e tecnofilia em torno de sua máquina.
Na época da descoberta de Antonić, Dejan Ristanović – jornalista, programador de computador e prodígio no Cubo de Rubik – escreveu um artigo sobre computação que teve boa repercussão em uma revista de ficção científica iugoslava e de ciência popular chamada Galaksija. Pouco tempo depois da publicação desse artigo, o editor-chefe da Galaksija, Jova Regasek, recebeu o pedido de um leitor para que a revista dedicasse uma edição inteira aos computadores. Embora inicialmente cético, Regasek encarregou Ristanović de liderar esse projeto. Precisamente na mesma época, Antonić estava procurando um lugar para publicar os diagramas de seu novo “computador pessoal”, no estilo faça-você-mesmo. Ainda que Antonić tivesse pacotes de publicações mensais de computação doméstica como da Elektor da Alemanha e da BYTE dos Estados Unidos – publicações estrangeiras que eram caras para se adquirir – a acessibilidade era uma questão essencial para ele; a revista SAM de Zagreb era um periódico nacional que poderia fazer a publicação, mas depois que um amigo em comum o colocou em contato com Ristanović, o projeto encontrou seu lar na Galaksija.
A edição especial foi intitulada “Računari u vašoj kuć i” (“Computadores em Sua Casa”). Grande parte dela era dedicada ao computador de Antonić: incluía não apenas os diagramas, mas também instruções bem abrangentes para a montagem dos circuitos; localização de lojas para a compra de equipamentos que poderiam ser improvisados para a montagem; endereços de correio para pedidos de kits de “faça-você-mesmo” e canais por meio dos quais era possível solicitar peças e acessórias legalmente no exterior. Ristanović e Antonić decidiram dar ao projeto o nome da revista – Galaksija – e nenhum dos envolvidos pensava que o número de leitores da edição ultrapassaria a tiragem regular da Galaksija, de 30.000 cópias. Mas a resposta foi extraordinária: Regasek acabou precisando de quatro reimpressões para cobrir a demanda assustadoramente alta a cada tiragem anterior que se esgotava. Antonić se recorda de uma conversa casual do trio um dia antes do lançamento da edição, especulando sobre quantos leitores realmente tentariam montar um Galaksija; ele se lembra do palpite de que seriam no máximo uns 50 entusiastas mais empenhados. Não obstante, após uma distribuição total de 120.000 exemplares, a revista recebeu mais de 8.000 cartas diretas de entusiastas que haviam construído seus próprios Galaksijas.
Muitas vezes, são as próprias limitações de um dispositivo tecnológico o que permite que suas capacidades expressivas venham à tona. O microcomputador de Antonić continha apenas 4 Kbytes de memória para os programas – um verdadeiro pingo num balde, em comparação com qualquer laptop atual. Devido a essa restrição, o sistema só era capaz de exibir três mensagens de erro de uma palavra, esplendidamente divertidas: os usuários recebiam um “QUÊ?” se seu código em linguagem BASIC tivesse um erro de sintaxe; um “COMO?” se as entradas enviadas fossem irreconhecíveis e um “DESCULPE” se a máquina excedesse a capacidade de memória. A EPROM – sigla de “Memória Somente de Leitura, Programável e Apagável” – de 4K era tão compacta que alguns bytes tinham de ser usados para múltiplos propósitos; por meio dessa jogada, segundo Antonić, seu firmware ainda hoje permanece como uma prova de que é possível usar mais de 100% da memória de programa.
As entranhas da máquina também refletiam o meio social no qual ela prosperou. Não havia dois Galaksijas iguais: além da imprecisão orgânica que necessariamente acompanha a atividade inexperiente e propensa a erros de neófitos na soldagem de circuitos, os kits de montagem eram enviados sem um gabinete ou camada externa. Essa omissão tornou-se o estímulo para que os usuários usassem sua criatividade; muitos projetavam os seus próprios designs. Os projetos individualizados frequentemente refletiam a sobreposição estética desses novos revolucionários da computação com as subculturas em torno da New Wave e da ficção científica. Além disso, como outros computadores da época, a fita cassete era o principal sistema de armazenamento do Galaksija. Enquanto a maioria das outras máquinas executava automaticamente um programa após carregar a fita – uma proteção anti-cópia primitiva – o compromisso de Antonić com o código aberto significava que ele não desejava colocar esse tipo de proteção em nada. Depois de carregar um programa, os usuários tinham que digitar um comando “RUN” (“RODAR”) para fazê-lo funcionar. Essa etapa extra, embora sutil, atuava como um impedimento contra os programadores que impunham qualquer proteção contra a cópia em seu trabalho; a fita poderia ser facilmente inserida de maneira tão imediata quanto podia ser editada ou duplicada/reproduzida em massa. A diversão livre era encorajada implicitamente: a construção do Galaksija imbuía o compartilhamento, a colaboração, a manipulação e a proliferação de software na sua própria operação.
Um entusiasta da computação desde 1979, Zoran Modli entrou na onda do Galaksija após a publicação da Computadores em Sua Casa. Como apresentador e DJ no Ventilator 202 – um renomado programa de rádio de New Wave na Rádio Beograd 202, na Sérvia – Modli era meio que uma pequena celebridade na Iugoslávia. Era o período em que a fita cassete compacta começava a usurpar do disco de vinil de 12 polegadas a posição de meio preferido dos audiófilos; gravadores portáteis de bolso como o Walkman da Sony estavam em ascensão. Percebendo uma oportunidade nessa transição entre mídias, Regasek ligou para Modli um dia, no outono de 1983, com uma proposta para um segmento radicalmente novo para o programa Ventilator. Como todos os computadores da época executavam seus programas a partir de fitas cassete, incluindo o Galaksija, Regasek imaginou que Modli poderia transmitir programas de computador por meio das ondas de rádio na forma de áudio durante seu show. A ideia era que os ouvintes pudessem gravar em fita os programas em seus receptores de rádio à medida que eram transmitidos e depois carregá-los em suas máquinas pessoais.
Uma sensação noturna, esta prática rapidamente se tornou um dos elementos principais do programa de Modli. Nos meses seguintes, o Ventilator 202 transmitiu centenas de programas de computador. Durante o programa, Modli anunciava quando estava chegando a hora desse segmento, sinalizando aos ouvintes que era hora deles buscarem seu equipamento, marcar uma fita e se preparar para pressionar o botão de gravação. Os fãs começaram a escrever programas de computador com a intenção expressa de enviá-los pelo correio à estação de rádio para serem transmitidos durante esse segmento. Esses programas incluíam gravações de áudio e vídeo, mas também revistas, listas de shows, convites para festas, dicas de estudo, simuladores de voo e jogos de ação e aventura. No caso dos jogos, os usuários “baixavam” os programas do rádio e os alteravam – inserindo seus próprios níveis, desafios e personagens – e depois os enviavam de volta para Modli para serem retransmitidos. Na prática, tratava-se de uma transferência de arquivos muito antes do advento da World Wide Web, um protocolo de pirataria anterior à Internet.
Em meados da década de 1980, a Iugoslávia entrou em um período de profunda incerteza política e social; várias guerras sangrentas e uma espiral econômica acabaram com a cultura New Wave e com o vibrante cenário da computação. A essa altura, as restrições e tarifas de importação foram relaxadas e os computadores de fabricação ocidental passaram a ser bem-vindos no país tanto para empresas e órgãos governamentais quanto para os consumidores. Por um breve período, versões pré-montadas do Galaksija foram fabricadas em massa, encontrando lugar nas salas de aula de algumas escolas e universidades da Iugoslávia. Em 1995, Antonić jogou fora todos os seus cinco protótipos pessoais do Galaksija porque, a essa altura, lamenta ele, simplesmente ninguém mais se importava com eles.
Todavia, uma espécie de nostalgia pela obsolescência tecnológica surgiu nos últimos anos e – além de encontrar velhos Galaksijas sendo vendidos nas redes sociais mais caros do que muitos laptops modernos – Antonić foi abordado pelo Museu de Ciência e Tecnologia de Belgrado há vários anos para participar de uma exposição de computadores anteriores à virada do milênio. Para a ocasião, ele afirma ter vasculhado e encontrado um Galaksija esquecido em seu sótão, um exemplar que está em exibição naquele museu até hoje. Além disso, há pouco tempo Antonić foi contatado com um pedido semelhante pelo Museu da História da Computação, no Vale do Silício, a algumas horas de carro de sua casa atual em Pasadena, Califórnia.
A razão para esse ressurgente interesse no Galaksija talvez se deva ao fato de que esse episódio estimulante e pouco conhecido na história da ciência da computação está repleto de um potencial contrafactual. O Galaksija incorpora uma desestratificação da hierarquia tecnológica atual, uma afirmação ideológica tácita de que as máquinas de computação devem ser voltadas às massas, baratas e disponíveis para todos, e que nem dinheiro nem conhecimento técnico precisam ser barreiras à entrada na área. Paralelamente à alternativa iugoslava à ordem mundial bipolar, a saga do Galaksija sinaliza para os tecnólogos não iniciados que modos alternativos de práticas são possíveis, caminhos totalmente separados daqueles dos senhores industriais ocidentais como IBM, Microsoft, Hewlett-Packard ou Apple.
Nesse sentido, o esquema de Antonić de 1983 era mais do que apenas um microcomputador no estilo faça-você-mesmo. Por meio de suas capacidades virtuais para a conexão – entre seus circuitos e componentes, bem como entre os agentes e forças que o moldaram como um fenômeno cultural – o Galaksija se ergue como um monumento a um tipo diferente de vida tecnológica, repleta de exploração, experimentação e de espírito comunitário.
Sobre os autores
é um escritor e pesquisador de Arte Contemporânea e Cultura Digital, que vive em Nova Iorque.