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Ursula K. Le Guin, fotografada em 2016.

As utopias radicais de Ursula Le Guin continuam ressoando

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Tradução
Everton Lourenço

Ursula K. Le Guin, nascida neste dia em 1929, usava a ficção científica para explorar as falhas da sociedade capitalista - e os mundos alternativos que poderíamos construir em seu lugar.

“Vocês não podem comprar a revolução, não podem fazer a revolução. Vocês só podem ser a revolução.” Este é o cerne da mensagem que o anarquista Shevek proclama para uma manifestação em massa de trabalhadores sindicalistas e socialistas reunidos na Praça do Capitólio na cidade de Nio Esseia no planeta de Urras no clássico romance utópico publicado por Ursula le Guin em 1974, Os despossuídos.

Na minha opinião, em vez de tentar desvendar a mistura de anarquismo, taoísmo e feminismo que permeia a visão de mundo de Le Guin, é melhor começar com esta passagem endereçada diretamente ao leitor se quisermos pensar sobre a relevância contínua de Le Guin para os socialistas. A ênfase aqui não é apenas na responsabilidade moral pessoal, embora essa seja uma característica constante da filosofia de Le Guin, mas na necessidade imperativa de integrar valores individuais e coletivos, recusando binariedades e hierarquias de pensamento fáceis.

Longe de ser uma celebração do mundo natal anarquista de Shevek, Anarres, Os despossuídos representa aquilo que o crítico Tom Moylan chamou de uma “utopia crítica”, explorando as possibilidades e as limitações de tal sociedade. Uma das maneiras pelas quais o romance é capaz de expandir seu quadro de referência além de uma investigação interna de um possível modelo de sociedade anarquista é por meio do enredo paralelo da viagem de Shevek a Urras.

Quando Shevek pergunta aos socialistas de Nio Esseia o que Anarres (que eles vêem como sua “lua”) significa para eles, eles respondem que toda vez que olham para o céu noturno, eles são lembrados de que existe uma sociedade sem governo, sem polícia, e sem nenhuma exploração econômica e que ela não pode ser descartada como uma mera fantasia utópica. Em outras palavras, tanto Shevek quanto os leitores de Le Guin percebem que a política não gira apenas em torno da adoção de práticas corretas, mas também depende de significados simbólicos para os outros.

Le Guin teve uma longa carreira e toda a sua obra vale a leitura, mas os livros que cimentaram sua reputação foram escritos entre o final dos anos 1960 e meados dos anos 1970, durante um período de ansiedade da Guerra Fria e de aguda crise social e cultural nas sociedades ocidentais. Dentro desses contextos, romances como Os despossuídos e A mão esquerda da escuridão (1969) ganharam reconhecimento imediato pela clareza da visão pela qual diagnosticavam os males da época e ofereciam visões de valores e sociedades alternativos que pareciam alcançáveis através do trabalho duro e de um auto-exame convicto. Os romances foram rapidamente estabelecidos como clássicos do gênero, mas essa não é necessariamente uma vantagem a partir da perspectiva de hoje.

Em sua introdução a uma reedição recente de A mão esquerda da escuridão, China Miéville observa que “os livros mais azarados são aqueles que são ignorados ou esquecidos. Mas guarde um pensamento também para aqueles fadados a se tornarem clássicos. Um clássico é muitas vezes um volume que todos pensam que conhecem.” Existe algum desincentivo maior para se ler um livro do que o conhecimento de que ele é visto como uma obra valiosa e inovadora, importante para a sua época? Para Miéville, a desfamiliarização do gênero realizada no romance o torna inquestionavelmente um precursor das teorias e movimentos queer de gênero e fluidez sexual do nosso presente no século XXI, mas isso ainda deixa em aberto o pensamento de que poderia ser melhor ler livros mais recentes.

De qualquer maneira, como ele reconhece, A mão esquerda da escuridão nem sempre foi visto sob uma luz tão radical. O uso universal que Le Guin faz de pronomes masculinos para denotar uma sociedade sem uma divisão sexual permanente e, portanto, sem uma divisão de gênero, levou Joanna Russ, entre outros, a criticar o romance por na prática conter apenas homens. Por muitos anos, persistiu a ideia de que os romances de Le Guin eram sinceros e bem-intencionados, mas não estariam na vanguarda radical do campo.

Uma maneira de desafiar essa percepção residual de Le Guin como escritora de clássicos valiosos, mas embotados, é considerar um romance menos célebre escrito no mesmo período, A curva do sonho (1971). Em vez da abordagem comedida e repleta de nuances pela qual ela é geralmente conhecida, este livro é estruturado no estilo excêntrico e irrestrito de Philip K. Dick como um passeio selvagem por uma sequência de realidades em colapso.

O protagonista do romance, que atende pelo ressonante nome George Orr, tem sonhos indesejados que mudam a realidade. Seu psiquiatra, Haber, ao invés de tentar curá-lo, busca usar esse poder indiretamente para transformar o mundo para o benefício da humanidade. Claro, toda tentativa de transformação para o bem é sempre acompanhada por alguma consequência monstruosa inesperada.

[Os próximos 3 parágrafos apresentam detalhes do enredo que podem ser vistos como spoilers de A curva do sonho]

Por exemplo, ao tentar resolver o problema de superpopulação, Haber instrui Orr a sonhar com um mundo cheio de espaço por onde se mover – e então este sonha com uma pandemia e acorda para descobrir que “reduziu” a população mundial em seis bilhões de vidas. Como Haber começa a perceber, Orr só consegue sonhar com “conceitos utópicos baratos, ou talvez conceitos anti-utópicos carregados de cinismo”.

Por um lado, é uma piada às custas do homônimo de Orr, George Orwell: em uma das muitas histórias alternativas do livro, a Constituição dos EUA é reescrita em 1984 para formar um estado policial. No entanto, também há algo de valioso na resistência de Orr à vontade de poder de Haber. Quando este último exige a paz mundial, Orr sonha que alienígenas pousaram na lua, fazendo com que os povos da Terra se unam em oposição. Então, quando ordenado a sonhar que os alienígenas deixaram a lua, Orr sonha que eles invadem a Terra.

Os alienígenas telepatas ensinam a Orr que “tudo sonha”, até as pedras, e que, portanto, a única maneira de viver em harmonia com o que de outra forma seria o caos é sintonizar-se conscientemente com o todo. O romance termina com uma resolução digna de Philip K. Dick, na qual Orr, não mais atormentado pelos seus sonhos efetivos, agora está feliz trabalhando com o projeto de utensílios de cozinha alienígena. É difícil não ver esse final como uma brincadeira com a ideia de “trabalho alienado”: seria uma espécie de “negação da negação” se o trabalho fosse conduzido para benefício mútuo com alienígenas com os quais o trabalhador estivesse telepaticamente sintonizado.

A curva do sonho ilustra a importância de pensar sobre livros esteticamente, tanto quanto  julgá-los ideologicamente. Como observou o crítico Fredric Jameson, o romance pode ser lido como uma expressão da ansiedade liberal em face da transformação revolucionária, mas, esteticamente, está preocupado com seu próprio processo de produção.

As tentativas mal sucedidas de Orr em sonhar com a Utopia refletem as tentativas de Le Guin de escrever a Utopia; um processo que é, dessa maneira, reconhecido como sendo impossível. Ainda assim, na própria maneira como o romance explora as contradições em se tentar produzir uma Utopia, a narrativa é escrita – e, de alguma forma, uma versão da Utopia acaba sendo produzida.

Embora nem Os despossuídos nem A mão esquerda da escuridão sejam simplesmente sátiras divertidas, compará-los com A curva do sonho abre algumas possibilidades para se pensar neles como mais do que apenas clássicos do seu tempo. Por exemplo, podemos enxergar a aparente incongruência no uso universal de pronomes masculinos em A mão esquerda da escuridão como uma exposição deliberada da impossibilidade de se narrar o gênero fora da estrutura binária à qual nossa linguagem frequentemente nos limita.

De maneira semelhante, Os despossuídos especificamente coloca em primeiro plano a impossibilidade temporal de se pensar o futuro no interior da mentalidade do presente. Em outro momento-chave de discurso em segunda pessoa falando diretamente ao leitor, Shevek diz ao embaixador terráqueo em Urras: “Você não compreende o que é o tempo”.

O que experimentamos como o presente não é real ou estável: é o produto de uma mudança constante. Somente a realidade do passado e do futuro, mantida na memória e nas intenções humanas, torna o presente real. A ficção de Le Guin não só simboliza a possibilidade de mudanças para os leitores socialistas, portanto: ela também fornece uma ideia do próprio grau de trabalho mental necessário para compreendermos a diferença radical que seria acarretada por essas mudanças.

Sobre os autores

é professor de inglês moderno e contemporâneo na Brunel University. Seu último trabalho, Growing Old with the Welfare State, foi publicado pela Bloomsbury.

Cierre

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Published in Cultura, Livros, Perfil and Sociologia

One Comment

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