UMA ENTREVISTA DE
Hugo Albuquerque e James HerminioCelso Amorim foi ministro de relações exteriores durante os dois mandatos de Luiz Inácio Lula da Silva (2003-2010), tendo amplo destaque como o chefe da diplomacia brasileira no período, o que o levou a ser tratado como o melhor do mundo em seu cargo. Eram tempos de política externa “altiva e ativa”, como ele gostava de se referir. Antes, ele já havia ocupado o cargo, de maneira breve, de 1993-1995, sob a presidência de Itamar Franco, mas essa segunda passagem pelo comando do Itamaraty foi, sem dúvida, o que o consagrou.
Eram tempos de crescimento econômico, distribuição de renda e de uma nunca antes vista atuação brasileira no cenário internacional, com o país fortalecendo ou mesmo criando mecanismos multilaterais, da formalização dos BRICS — grupo que reúne além do Brasil, Rússia, Índia, China e África do Sul, quase um terço do PIB mundial –, a formação da União Sul-americana de Nações (Unasul), o G20 — um grupo ampliado para compartilhar mais o poder global, ao invés do seleto G7 — e o fortalecimento do Mercosul.
Depois, Amorim ocupará ainda o ministério da Defesa de Dilma Rousseff durante todo o primeiro mandato dela. Hoje, ele segue como figura de destaque, como um dos principais conselheiros do agora candidato Lula em 2022, enquanto lança um novo livro, com suas memórias, desta vez a respeito da relação do Brasil com os vizinhos sul-americanos, Laços de confiança – O Brasil na América do Sul (Editora Benvirá, 2022).
Por essa razão, Hugo Albuquerque e James Hermínio Porto, da Jacobin Brasil, foram entrevistá-lo para tratar de assuntos como integração sul-americana, os BRICS em tempos de tensão de Rússia e China com o Ocidente liderado pelos Estados Unidos de Joe Biden, eleições brasileiras, os perigos do bolsonarismo e, inclusive, sobre a ligação dele com o alto cinema nacional — de sua passagem pelos sets de filmagem do Cinema Novo à sua amizade com Glauber Rocha e a presidência da Embrafilme, a extinta “Petrobrás do cinema brasileiro”.
HA/JH
O senhor é mundialmente conhecido como um grande diplomata, mas algo escapa geralmente à sua biografia, que é a sua relação com o cinema. Gostaríamos de saber sobre essa relação com o cinema, como o senhor vê o cinema nacional hoje e, também, sobre o legado do seu amigo Glauber Rocha para o cinema e para a cultura nacional.
CA
A minha ligação com o cinema começou pelo meu interesse direto no período do Cinema Novo, fui assistente de direção do Leon Hirszman e Ruy Guerra, nesse caso fui contratado como continuísta, mas acabei sendo meio assistente da direção n’Os Cafajestes.
Eu acho que o ponto alto da minha biografia não é esses que eu menciono nos livros todos, mas foi o fato de eu ter entregue a toalhinha para Norma Bengell no primeiro nu frontal do cinema brasileiro, no filme Os Cafajestes.
Nessa época, o Glauber estava montando filme Barravento, com auxílio de Nelson Pereira dos Santos, mais ou menos na mesma época que estava sendo montado Os Cafajestes, mas eu mantive a relação com ele e já assim, um pouquinho antes do golpe de 1964, eu me lembro de ter tido uma conversa com Glauber, que ele mesmo cita em uma das cartas, em que eu dizia que o Deus e o Diabo na Terra do Sol era melhor do que o filme O Bandido Giuliano, de Francesco Rossi, diretor italiano.
“É impossível deixar de lembrar do uso que Glauber Rocha faz da música clássica de Villa-Lobos, numa das cenas também muito dramáticas do Deus e o Diabo na terra do sol.”
Eu também gostava de política externa. Ainda antes do golpe de 1964, me tornei diplomata e uns quinze, vinte anos depois, eu era chefe da Divisão Cultural do Itamaraty e fui indicado para a presidência da Embrafilme, uma empresa de economia mista ligada ao Ministério da Educação e Cultura, pelo ministro Eduardo Portela. E uma das pessoas que apoiou o meu nome foi justamente o Glauber Rocha.
Eu mantive uma relação intensa com ele, sobretudo para a finalização do filme A Idade da terra. E ele foi muito generoso nos comentários sobre meu papel como presidente da Embrafilme. O Glauber também era uma pessoa que era um grande gênio – como normalmente acontece com os grandes gênios, não era uma pessoa fácil. A nossa relação era muito boa, não tinha nenhum atrito, mas o Glauber Rocha… Eu acho que ele já tinha dúvidas sobre A Idade da terra, então eu tive que empurrar um pouco para ele acabar a montagem do filme.
Eu acho que o Glauber deixou uma marca para o cinema mundial. Quando você pensa no cinema alemão, e até no filme do Copolla, quando você pensa naquela cena da cavalgada das valquírias em Apocalypse now… É impossível deixar de lembrar do uso que Glauber Rocha faz da música clássica de Villa-Lobos, numa das cenas também muito dramáticas do Deus e o Diabo na terra do sol. Enfim, o Glauber foi um grande cineasta, uma pessoa genial, como frequentemente acontece como muitos gênios, seus melhores filmes foram os primeiros, quando brotou, digamos assim, explodiu aquele talento e aquela criatividade.
Continuei amigo dele, acompanhei os últimos passos, fui visitá-lo em Portugal, em Sintra, um pouco antes de ele ter vindo para o Brasil, praticamente para morrer. Mas enfim, um grande gênio e apontou caminhos do cinema brasileiro.
Eu, recentemente tive a oportunidade de ler um livro extraordinário de outro gênio, uma pessoa diferente do Glauber, o Ariano Suassuna, A Pedra do reino, mas vi semelhanças com ele. Provavelmente, Glauber nunca viu Ariano, mas as semelhanças na maneira de tratar o sertão brasileiro entre eles é inegável.
HA/JH
Uma pergunta capciosa: você tem um preferido entre os filmes do Cinema Novo?
CA
Difícil dizer. Eu trabalhei n’Os Cafajestes, trabalhei com Leon. Mas se eu pegar três ou quatro filmes, não vou mencionar Os Cafajestes, que acho que é bom, mas é um filme de início. Eu falaria em três ou quatro filmes: Deus e o Diabo na Terra do Sol, certamente, Vidas secas, de Nelson Pereira dos Santos. Dos filmes do Rui Guerra, eu escolheria Os Fuzis, em que eu não trabalhei, mas foi o seguinte, eu já estava apalavrado para ser o assistente em Os Fuzis, mas depois resolvi trocar Os Fuzis pela diplomacia. E até hoje eu faço esse esforço.
E filmes extraordinários do Leon Hirszman, já não é bem propriamente o cinema novo, mas eu tive participação como produtor, porque eu era o diretor-geral da Embrafilme, o Eles não usam black-tie, dá uma seleção boa de quatro filmes de grande importância.
Claro que tem muitos outros, não mencionei nenhum dos filhos, porque não seria adequado, mas fico muito contente de ver os filmes deles, sobretudo do mais velho, porque já fez mais filmes, o Vicente, aparecerem no Mubbi e em várias projeções, entre aspas, ou sem aspas, clássicas.
HA/JH
A América do Sul, inclusive, é o tema do seu mais recente livro, Laços de confiança. Aqui, no nosso continente, testemunhamos nos últimos anos a União de Nações Sul-americanas (Unasul) sendo escanteada, logo após surgir como uma boa solução para a integração regional. Imaginamos que com o possível retorno do presidente Lula, o papel da Unasul volta a ser protagonista. Como é que o senhor vê isso de um ponto de vista realista?
CA
Eu acho que a gente tem que trabalhar em várias frentes e com coisas bastante práticas. Porque nós estamos trabalhando aqui numa realidade que tem várias dimensões. Os franceses falavam muito de uma coisa chamada integração de geometria variável. Isso envolve os papéis da Unasul e do Mercosul na integração sul-americana.
É o caso, por exemplo, do Mercosul como uma união aduaneira, que é muito importante do ponto de vista comercial interno, mas ele também permite que formemos um bloco e negocie em conjunto internacionalmente como nós tentamos fazer na Área de Livre Comércio das Américas (ALCA) — pelo menos, evitando um acordo negativo — ou no dia-a-dia da Organização Mundial do Comércio (OMC), e como fazemos de maneira mais óbvia nas tratativas comerciais com a União Europeia.
Nesses dias, Lula mencionou que devemos concretizar o ingresso da Bolívia no Mercosul. Isso seria um processo muito simples, porque a Bolívia já está praticamente dentro do bloco, mas há outros países da América do Sul que têm acordos de livre comércio com os Estados Unidos ou com outros países, o que já torna mais difícil esse grau da integração.
“Na Colômbia a nova vice-presidenta Francia Márquez é uma mulher negra, muito ligada às raízes africanas e se entusiasmou com a ideia de poder trabalhar junto com o Brasil na relação com a África.”
Mas a Unasul tem seu peso muito importante em muitas outras áreas. Eu chamaria muita atenção para o que ela fez na área de saúde, na área de infraestrutura, onde a proximidade física é um elemento que conta — e como ela pode atuar, inclusive em outras questões ambientais, mudança de clima e na questão de defesa, uma vez que o conselho de defesa sul-americano é um órgão dela.
Eu sei que há uma certa resistência em alguns setores, mesmo progressistas, com a Unasul, por eventuais defeitos. O principal deles seria a forma de decisão para escolha de secretário-geral – e isso foi utilizado até como pretexto para que os países saíssem. Mas eu acho que a Unasul deve voltar. Se quer mudar o nome ou não, não tem problema. Para mim, o importante é manter a unidade sul-americana, embora ela nem sempre seja tão profunda como é dentro do Mercosul, mas é suficientemente forte para possibilitar que a Unasul tenha uma atuação no mundo.
Agora, com a eleição na Colômbia, por exemplo, a nova vice-presidenta Francia Márquez esteve aqui: ela é uma mulher negra, muito ligada às raízes africanas e a ancestralidade tem um peso muito forte na visão que ela tem do mundo. A vice-presidenta se entusiasmou com a ideia de poder trabalhar junto com o Brasil na relação com a África. Isso converge com uma antiga proposta do presidente nigeriano Olusegun Obasanjo ao presidente Lula, para que fizéssemos cúpulas Brasil-África, mas achamos que, para fomentar a integração da América do Sul, era melhor fazer cúpulas América do Sul e África.
Praticamente, levamos isso adiante sozinhos a relação entre América do Sul e África, embora o presidente Hugo Chávez tenha tido algum interesse nessa integração por questões mais geopolíticas. A Colômbia de hoje também tem. Então outros países terão em graus diversos, evidentemente. E também na geografia, porque nós temos outros mecanismos de cooperação com a África, uma zona de paz e cooperação do Atlântico Sul.
Acho que a Unasul tem uma importância muito grande. Você quando vai conversar, por exemplo, questões de segurança, eu, como ministro da Defesa, pelo menos, nunca me interessei muito por essas iniciativas do Atlântico, porque eu dizia assim: Atlântico Norte é uma coisa, Atlântico Sul é outra. O Atlântico Norte é uma área de conflito, a própria OTAN é uma organização defensiva, ou ofensiva — a depender do ângulo que você quiser –, mas de qualquer maneira ela se coloca em função de conflito. No Sul, no entanto, o que nós queremos é uma zona de paz e cooperação. Então, não tem que misturar Atlântico Norte e Atlântico Sul. São realidades geopolíticas muito diferentes.
Internamente, a Unasul serve para discutir a Amazônia. Mesmo os países da Bacia do Prata são também muito interessados nela, porque hoje em dia, sabemos que o que ocorre na Amazônia tem influência direta e objetiva na Bacia do Prata por questões hidrológicas, meteorológicas e geológicas.
Em outras questões, ficou claro que no G20 é perfeitamente possível atuar em coordenação com o México, ainda mais agora, sob um governo progressista. Mas já antes, nós tínhamos aquele mecanismo de G8+2, em que o México participava junto com o Brasil.
“O Atlântico Norte é uma área de conflito, a própria OTAN é uma organização defensiva, ou ofensiva – a depender do ângulo que você quiser -, mas de qualquer maneira ela se coloca em função de conflito.”
Nós temos que ter a noção dessa geometria variável. A integração mais profunda é o Mercosul, é a que nos permite fazer acordos comerciais, econômicos; em uma área maior de cooperação, mas com muita coisa em comum, você tem a Unasul. Depois, a própria América Latina e Caribe como um todo.
Especificamente sobre a Unasul, acho que tem que conversar com os outros. O Brasil não pode impor, ele tem que conversar com a Argentina, Chile e os demais países. Uma das características da Unasul é que ela é plural. A expressão “laços de confiança”, nome do meu recente livro, veio à minha cabeça depois de uma conversa com o ex-presidente colombiano Álvaro Uribe, que pensava de maneira muito diferente da nossa, mas havia uma relação de confiança que nos permitiu várias vezes atuar de forma pacificadora na região.
HA/JH
Uma das grandes conquistas do governo do presidente Lula, com o senhor à frente da nossa diplomacia, foi a criação dos BRICS. Porém, hoje a gente vive naquele mundo, em grande medida, conflagrado entre Norte e Sul e Oriente e Ocidente. Então, o que vai ser dos BRICS neste mundo rachado, em uma disputa extremamente violenta e preocupante? E o que vai ser a participação do Brasil nos BRICS neste contexto?
CA
Não só conflagrado, o pior de tudo é que ele está em guerra. Evidentemente, porque sem a paz nada mais é possível. Mas também a questão climática, em outras questões de pandemias e etc., o mundo precisa de cooperação e, ao contrário da cooperação, está em guerra. A pergunta não é bem o que vai ser dos BRICS, a gente tem que perguntar o que vai ser do mundo.
Eu acho que os BRICS continuarão a ter um papel muito importante. Na realidade, quando nós criamos os BRICS, era um fórum, como nós tínhamos feito antes do IBAS, Índia, Brasil, África do Sul, que era muito importante.
No caso específico dos BRICS, eles contribuíram de maneira muito forte para o maior equilíbrio nas discussões econômicas, sobretudo depois da crise do Lehman Brothers. Os BRICS, as pessoas pensam que foram criados em 2009, que foi a primeira cúpula, mas o grupo já existia. O grupo foi criado em 2006, em 2008 teve a primeira reunião ministerial, em 2009 a primeira cúpula.
“O mundo precisa de cooperação e, ao contrário da cooperação, está em guerra.”
Mas ele já foi muito ativo no final de 2008, antes, portanto, da primeira cúpula, que também foi em Ecaterimburgo, na reunião do G20 — e contribuindo efetivamente para se levar em conta os interesses dos países em desenvolvimento dos países emergentes dentro do conjunto de medidas necessárias para sair da crise. Por exemplo, foi a primeira vez que houve uma reforma, ainda que modesta, no sistema de cotas do FMI e do Banco Mundial.
Hoje em dia a guerra é o que há de pior. É a destruição, a morte provocada pelo ser humano contra os seres humanos. Estados contra Estados. Nós temos uma situação de guerra entre a Rússia e a Ucrânia, mais diretamente, mas no fundo é uma guerra que envolve a Rússia e o Ocidente.
Quando eu falo de Rússia e Ocidente, inevitavelmente me lembro de Arnold Toynbee, um grande historiador britânico que não era, absolutamente, um homem de esquerda, nem simpatizava em nada com a União Soviética, mas reconhecia também a importância da Rússia e das preocupações que a Rússia tinha com o Ocidente.
Isso tudo é preciso pensar hoje. É preciso pensar, porque nós, o presidente Lula e eu, condenamos a ação russa de ter iniciado uma operação militar.
Essa é uma linha vermelha que você não pode passar. Não há como ultrapassar, porque o que temos hoje, os esforços que vêm desde o início do século passado para limitar, conter ou não ter as guerras. Está centrado nisso: na renúncia ao uso da força, salvo em situações especiais, quando autorizado pelo Conselho de Segurança, ou em legítima defesa.
Quem sou eu para julgar meu amigo [Sergey] Lavrov, com quem eu trabalhei por muito tempo, mas a Rússia não podia fazer isso. Para resolver o problema você tem que entender as raízes profundas, que têm a ver com a expansão da OTAN e com vários outros fatores. Só que eu acho que, apesar de difícil, a Rússia tinha que ter levado isso pela via da negociação.
No entanto, você só termina com a guerra de duas maneiras: uma rendição total, como no caso da Segunda Guerra Mundial, ou pela negociação, que pode provir do cansaço e de vários fatores. Mas por negociação é preciso que os dois lados façam concessões, e nisso não pode ter todos que estão a favor de um dos contendores na guerra, é preciso ter quem seja capaz também de ter poder de persuasão do outro lado, e nisso acho que os BRICS poderiam ser importantes.
“Temos uma situação de guerra entre a Rússia e a Ucrânia, mais diretamente, mas no fundo é uma guerra que envolve a Rússia e o Ocidente.”
Claro que a Rússia é parte do conflito, mas a China pode ter uma influência muito grande, e essa influência seria mais bem-vinda e mais aceita se a Rússia não for isolada — e se a solução envolver outros países em desenvolvimento, e não só os BRICS, como, por exemplos, a Turquia e até mesmo a União Africana, que também tem um interesse muito grande em resolver o problema dessa guerra.
Só para terminar, eu mencionei a guerra, mas eu poderia mencionar o clima, as pandemias. E tudo isso exige muita cooperação e não conflito.
HA/JH
Nós testemunhamos, recentemente, a visita de Nancy Pelosi à ilha de Taiwan. Por se tratar da presidenta da Câmara dos Deputados dos Estados Unidos, isso provocou bastante incômodo em Pequim. Tudo porque a questão de Taiwan pertencer à China está pacificada tanto pelo direito internacional, quanto pela própria relação bilateral sino-americana. Os chineses responderam de uma maneira diferente dos russos, mas não totalmente. Eles foram fustigados no tabuleiro geopolítico. O que o senhor pensa dessa questão?
CA
Os chineses mostraram seus músculos. Eles não chegaram a tomar nenhuma ação imediatamente bélica, mas eles mostraram o que podem fazer no futuro. Acho tudo isso perigosíssimo, evidentemente. Eu me concentrei mais na Ucrânia e na Rússia, porque lá tem um conflito aberto, mas eu acho que, de certa maneira, o próprio conflito da Rússia e da Ucrânia está envolvido nessa questão mais ampla: a postura de confrontação do Ocidente ampliado, liderado pelos Estados Unidos, contra a Eurásia — um confronto no qual não sabemos muito bem onde ficará a Índia, que tem conflitos e disputas fortes com a China, mas tem também uma percepção de país em desenvolvimento, além de ter sofrido como colonialismo.
“Estão chamando para o fórum da OTAN, por exemplo, países que não têm nada a ver com o Atlântico Norte.”
Não é tão simples assim, porque há divisões internas, mas o Ocidente liderado pelos Estados Unidos está se expandindo. Estão chamando para o fórum da OTAN, por exemplo, países que não têm nada a ver com o Atlântico Norte — como, recentemente, aconteceu na Conferência de Madri.
Tenho respeito por várias coisas que o presidente Biden tem feito internamente nos Estados Unidos. Elas podem não ser perfeitas, mas há avanços em termos da utilização da capacidade do Estado, questões sociais e etc. Mas tenho dúvidas sobre alguns aspectos da política externa. Um desses aspectos duvidosos é esse de ver o mundo como uma rivalidade e, pior, como uma luta por hegemonia entre um lado bom e outro mau. É uma coisa perigosa.
A China não tem pretensões expansionistas, sob qualquer ponto de vista, ela só defende seu interesse. Mas mesmo disputas deste tipo no passado levaram a guerra — como nos casos da Inglaterra contra a Espanha ou dos conflitos entre o Ocidente e o Império Otomano. Naquela época não havia conflito ideológico como na Guerra Fria, mas houve guerra mesmo assim.
E a ideologização desses conflitos estratégicos os torna mais perigosos, porque fica mais difícil recuar e agir de uma maneira razoável. Em vez da disputa ser um tabuleiro de xadrez, isso se torna uma rinha de galos. Creio que vai acabar prevalecendo o bom senso, mas vivemos um risco enorme. Eu sou bastante idoso, tenho oitenta anos e vi, por exemplo, a crise dos mísseis em Cuba — e como foi tudo resolvido, mas não é fácil, não é simples.
HA/JH
O senhor vê com bons olhos a ampliação dos BRICS?
CA
Vejo. Acho que isso é uma questão que tem que ser gradual. Tem que ser bem executada, porque também há problemas se você expandir demais.
Por exemplo, por que nós criamos o IBAS? Naquela época havia um grupo chamado G15, que, na verdade, tinha 17 ou 18 países, que não conseguiam consensos sobre coisas importantes, só em generalidades. Por isso ninguém ouvia muito muito o G15. Então a África do Sul, que não tinha entrado no G15, surgiu com uma ideia diferente, de ter um grupo de seis ou sete países.
No segundo dia do governo Lula, a ministra de relações exteriores da África do Sul, Nkosazana Dlamini-Zuma, propôs isso, que o Brasil participasse desse novo grupo, que incluiria países em desenvolvimento, mas não a Rússia e a China.
Eu disse a ela “mas, ministra, vamos fazer o seguinte, vamos fazer um grupo menor que possa ter eficiência”. Então sugeri a ela que a gente fizesse um grupo pequeno, olhando as coisas como eram na época, três democracias, três países multiétnicos, multiculturais, um em cada região do mundo em desenvolvimento. E assim foi feito.
Voltando à pergunta, os BRICS têm muito mais poder, mas vejam vocês, mesmo em questões importantes, políticas e de segurança, eles não estiveram sempre de acordo. Inclusive, obviamente, por visões diferentes sobre a ampliação do Conselho de Segurança. Só que Índia, Brasil e África do Sul, a visão sobre esse tema é muito semelhante, mas com Rússia e China, especialmente com a última, não são iguais — por razões que não têm a ver diretamente com o Brasil, imagino. A China, por exemplo, não favorece a ampliação do Conselho de Segurança, na prática, não disse que não favorece. Mas ela faz de tudo para que isso não ocorra. O que, publicamente, tem mais a ver com uma reforma que leva à entrada do Japão.
“Nunca houve qualquer outro tipo de golpe sem o apoio de 3 setores muito importantes, que são a elite econômica, os grandes meios de comunicação de massa e o país hegemônico do capitalismo mundial.”
Agora, eu me pronunciei explicitamente – pessoalmente, não estou falando em nome do PT, do Lula – em favor da entrada da Argentina nos BRICS. Não tomei a iniciativa, mas como isso foi aventado, eu acho que é uma boa ideia. Eu acho que a entrada da Argentina fortaleceria a presença sul-americana, em um grupo de grande importância. Agora, sou contra a eventual entrada de países que já trazem alguma carga de conflito.
HA/JH
O bolsonarismo tem se mostrado bastante resiliente e muito reativo frente à perspectiva da derrota eleitoral. O senhor acha que em caso de tentativa de golpe, ele conseguiria ter sustentação internacional? Como o senhor avalia isso?
CA
Eu não acho que o quadro internacional vá impedir que alguma loucura seja tentada, mas eu acho que, dificilmente, essa loucura teria durabilidade. E eu costumo dizer isso lembrando o passado do Brasil. Um golpe de Estado requer, a médio prazo, uma participação militar, seja por participação, seja por omissão. E nunca no Brasil houve qualquer outro tipo de golpe sem o apoio de três setores muito importantes que se ligam, que são a elite econômica brasileira, os grandes meios de comunicação de massa e o país hegemônico do capitalismo mundial, os Estados Unidos.
Em 1964, havia apoio total de todos esses setores ao golpe. Os Estados Unidos chegaram a mandar até uma parte da esquadra aqui para a costa brasileira, para atuar na hipótese de uma guerra civil, que eles não descartavam que ocorresse.
Hoje não tem nada disso. Ao contrário, você vê o secretário de Defesa dos Estados Unidos, até para manter um mínimo de coerência com esse discurso das democracias, chegar aqui e dizer “não, tem que respeitar o processo eleitoral e o sistema eleitoral brasileiro”.
E não foi só ele, foi uma nota oficial do Departamento de Estado norte-americano. O sistema eleitoral brasileiro é um exemplo para o hemisfério e para o mundo, reconhecendo que é um exemplo até para eles, nos Estados Unidos. O mainstream do pensamento dos Estados Unidos ecoa que o sistema eleitoral brasileiro é muito menos vulnerável a algo como o que Trump tentou [no Congresso dos Estados Unidos, a famosa revolta de 06 de janeiro, que visava impedir a ratificação da vitória de Joe Biden], porque ele é rápido. Alguém pode tentar alguma coisa, mas eu acho que não passa.
Eu acho que, mesmo que tentem, mesmo que ocorra algo, eu acho que as Forças Armadas não vão querer entrar nessa, mas mesmo que ocorra, a meu ver, não terá sustentabilidade.
E aí, nessa questão da sustentabilidade, entra o quadro internacional. Porque é claro que você tem os empresários enlouquecidos, que estão pagando caravanas para haver manifestações em Brasília. Mas eu acho que isso não é representativo e não tem o mesmo grau de apoio na sociedade que os empresários que apoiaram o golpe de 1964. Em 1964, se você fosse olhar a posição do Judiciário, embora o Supremo tenha tido ministros cassados pelo regime depois, em princípio ele não se manifestou — hoje, isso é bem diferente nesse aspecto também.
“O que poderíamos definir como classe dominante está muito dividida — e isso torna muito difícil o golpe de Estado — e os que apoiariam um golpe estão em uma posição frágil.”
Para falar de uma maneira mais simplificada, o que poderíamos definir como classe dominante está muito dividida — e isso torna muito difícil o golpe de Estado — e os que apoiariam um golpe estão em uma posição frágil.
HA/JH
Como o senhor tem visto a campanha de Lula de um modo geral? Como avalia esse momento da campanha? Está otimista?
CA
Olha, eu sou otimista, mas com um otimismo cauteloso, porque nós vimos o que aconteceu no passado, com as redes sociais. A gente viu o que aconteceu no Chile, embora as pesquisas já apontassem a provável vitória do rechaço à nova Constituição, ele ocorreu por uma margem maior do que se esperava. Eu acho que precisamos de cautela e não podemos parar de trabalhar.
Eu acho que nós temos um grande trunfo na campanha, que se chama Luiz Inácio Lula da Silva. É a pessoa que se comunica com o povo e com os vários setores oprimidos da sociedade brasileira. E, ao mesmo tempo, é uma pessoa que, pelas características de conciliador e de buscar soluções negociadas — como faz desde a época que era líder sindical.
“Nós falamos muito da guerra, que é importante, mas a questão da mudança climática tem que ter hoje uma centralidade que não tinha.”
Lula também não assusta os setores mais conscientes, ou pelo menos mais comprometidos com o desenvolvimento nacional, do empresariado. Então, eu acho que esse trunfo é importante. Ele demonstrou essa flexibilidade a priori, já escolhendo o ex-governador Alckmin como seu companheiro de chapa, o que também tranquiliza uma boa parte do empresariado.
HA/JH
Obrigado, ministro. Um último recado?
CA
Eu gosto de estar com jovens, que sempre nos obrigam a pensar e a enfrentar novas situações. Não pensar que o futuro é só repetir o passado. O passado é importante, mas tem que estar sempre adaptado aos novos desafios. Só para falar de um tema que certamente interessa a todos os jovens. Nós falamos muito da guerra, que é importante, mas a questão da mudança climática tem que ter hoje uma centralidade que não tinha.
Nós atuamos bem positivamente, com a atuação do presidente Lula em Copenhague, é a maior demonstração disso, mas não tinha essa centralidade, eu estava mais preocupado com a OMC do que com o clima como ministro das Relações Exteriores. Hoje eu acho que tem que ser diferente.