Extraído do livro Antifa em quadrinhos: 100 anos de luta antifascista, de Gord Hill (Autonomia Literária 2022).
A indústria que os quadrinhos do Super-Homem ergueu durante os anos 1930 tornou-se intimamente ligada à propaganda estadunidense durante a Segunda Guerra Mundial. Enquanto a Mulher Maravilha e o Batman davam amparo aos esforços de guerra, o popular Capitão América era responsável por dar um soco na cara de Hitler ao mesmo tempo em que um intenso tiroteio cruzava o seu caminho, na capa do primeiro número da revista. Além desta história, os quadrinhos parecem mesmo terem sido feitos para socar nazistas. Em suas páginas pululam heróis maiores do que a própria vida, prontos para combater o mais maldoso dos vilões.
Nenhuma forma de arte ultrapassa a capacidade dos quadrinhos em conjurar a luta maniqueísta do bem contra o mal, e nenhum episódio cativou mais a imaginação dos estadunidenses do que a Segunda Guerra Mundial. Inúmeros romances, filmes e videogames, de Indiana Jones a Call of Duty, reciclaram este drama moral canônico para as novas gerações.
Mais de 75 anos depois do Capitão América, um tipo de herói antinazista muito diferente chamou a atenção popular. Em 20 de janeiro de 2017, dia da posse presidencial de Donald Trump, um antifascista vestido de preto golpeou o proeminente supremacista branco Richard Spencer enquanto ele começava explicar o significado do meme Pepe the Frog para uma equipe de filmagem australiana. Quando o New York Times perguntou: “Está tudo bem em socar um nazista?”, muitos daqueles preocupados com a erupção violenta de fanatismo após a vitória de Trump respondiam “Sim ou claro?”. Os especialistas liberais, no entanto, demonstraram um certo horror com essa violência antinazista.
“Hill traça artisticamente a emergência do fascismo na Itália e a resistência armada dos Arditi del Popolo, organização antifascista que pegou em rifles para enfrentar os camisas negras de Mussolini.”
Por quê? Se nossa indústria cultural nos bombardeia continuamente com a noção de que combater nazistas é a epítome da justiça, então por que tanto choque e consternação quando as pessoas se posicionam hoje? Porque eles acreditam que o fascismo está morto e desaparecido, que o nazismo foi uma aberração da “civilização” européia, que o discurso racional sempre interromperá as idéias fascistas, que a polícia nunca hesitará em frustrar a violência fascista. Fundamentalmente, eles acreditam que os 6 anos de luta contra o fascismo durante a Segunda Guerra Mundial foram inteiramente excepcionais.
A crença nesta excepcionalidade nos permite ignorar os fortes elementos de continuidade entre o fascismo e o imperialismo europeu, a eutanásia nazista e os programas de eugenia estadunidenses, o despovoamento genocida contra os povos indigenas em toda a América e a busca de Lebensraum (espaço vital) por Hitler na Europa Oriental, a construção de reservas e campos de concentração – e a supremacia branca que sustenta isto tudo. Esta crença negligencia as legiões de trabalhadores, camponeses, judeus, comunistas, homossexuais, anarquistas, maçons e outros “antifascistas prematuros” que lutaram nas décadas de 1920 e 1930, enquanto Franklin Roosevelt ainda considerava Mussolini um “admirável cavalheiro italiano”. Essa fantasia esconde os imigrantes, punks, autonomistas, hooligans antifa, sindicalistas, skinheads, guerrilheiros e outros que lutam contra o fascismo desde 1945. Os especialistas liberais perguntam: como é possível atingir um fantasma passado?
Ao vincular a resistência à supremacia branca e ao fascismo do passado com a do presente, Antifa em quadrinhos esmaga a presunção liberal implícita de que o fascismo e o Holocausto eram meras irregularidades na ascensão contínua e ascendente da “civilização ocidental”. Em vez disso, Gord Hill segue seu trabalho magistral na revista The 500 Years of Resistance, argumentando que, de fato, o fascismo foi “moldado por séculos de guerra, patriarcado e supremacia branca”. Hill traça artisticamente a emergência do fascismo na Itália e a resistência armada dos Arditi del Popolo, organização antifascista que pegou em rifles para enfrentar os camisas negras de Mussolini. Ele documenta como os comunistas alemães do Roter Frontkämpferbund e o Antifaschistische Aktion lutaram contra as tropas de choque nazistas nas décadas de 1920 e 1930, enquanto muitos capitalistas europeus e americanos, como Henry Ford, elogiavam o Führer.
Problemas geoestratégicos, não ideológicos
A recusa dos Estados Unidos, Grã-Bretanha e França em apoiar a República Espanhola contra o insurgente generalísimo Franco e seus aliados alemães e italianos, mostra como a elite dominante estava muito mais preocupada com a revolução social do que a promessa fascista de “lei e ordem”. Enquanto o governo da Frente Popular de esquerda na França permaneceu à margem, as Brigadas Internacionais e outros militantes antifascistas de todo o mundo viajaram para a Espanha. Muitos nunca retornaram. Os antifascistas norte-americanos da Brigada Abraham Lincoln que sobreviveram foram muitas vezes demonizados e colocados na lista negra por combater os mesmos inimigos contra os quais o embate, alguns anos depois, lhes garantiriam a alcunha de serem a “maior geração”.
Ao situar a luta contra as potências do Eixo na Segunda Guerra Mundial dentro dessa trajetória mais longa do antifascismo, Hill mostra como as potências aliadas estavam atrasadas na luta. Sua política de evitar o conflito com o fascismo a todo custo na década de 1930 revela como eles se contentariam em trabalhar com o Terceiro Reich se Hitler não tivesse dado um passo à frente ao invadir a Polônia em 1939.
“A desnazificação foi incompleta e hesitante. Ex-membros do Partido Nazista continuaram a governar a Alemanha Ocidental e o governo dos Estados Unidos recebeu 88 cientistas nazistas.”
A hostilidade Aliada ao fascismo foi o resultado de contingência geoestratégica, não ideológica. Embora os judeus do mundo inteiro soubessem da solução final, o esforço de guerra dos Aliados não foi motivado pela oposição ao racismo ou ao antissemitismo – a Grã-Bretanha e a França ainda eram as principais potências imperiais do mundo e Hitler comparou suas políticas antissemitas às leis de Jim Crow no sul americano. Enquanto Franklin Roosevelt estava afastando milhares de refugiados judeus, judeus europeus estavam travando uma guerra de sobrevivência. Hill reconta o desespero trágico dos insurgentes da revolta do Gueto de Varsóvia que sacrificaram seus corpos em nome da humanidade. Os judeus também tiveram aliados durante estes tempos. Hill destaca os estudantes membros da Rosa Branca que recusaram a se manter em silêncio diante das atrocidades de Hitler.
Antifascismo europeu
Hill também pinta retratos dos anticapitalistas Partisans na Itália, Iugoslávia, Grécia, e em qualquer lugar da Europa em que bradaram o nome da revolução contra o nazismo. Embora nem todos os partisans fossem revolucionários, para muitos o objetivo não era simplesmente expulsar os opressores estrangeiros, mas continuar a luta em direção a uma sociedade pós-capitalista. No entanto, quando a guerra terminou, as potências aliadas destruíram os comitês antifascistas revolucionários, ou antifa, que surgiram na França, Itália e Alemanha, e esmagaram a insurgência comunista na Grécia.
“O Ocidente capitalista e as potências do Eixo estavam do mesmo lado na luta de classes global.”
A desnazificação foi incompleta e hesitante. Ex-membros do Partido Nazista continuaram a governar a Alemanha Ocidental e o governo dos Estados Unidos recebeu 88 cientistas nazistas (alguns dos quais usaram prisioneiros do campo de concentração de Buchenwald para suas pesquisas). O Ocidente capitalista e as potências do Eixo estavam do mesmo lado na luta de classes global.
No ponto em que a história convencional termina, o paradoxo pós-guerra começa: o que significa o antifascismo na medida em que Hitler e Mussolini perderam? Embora tenham perdido, sua derrota militar não significou que todos que concordavam com eles desaparecessem repentinamente. Antifa em quadrinhos dá vida ao grupo 43, Movimento jovem de Southahll, Liga antinazista, Ação antifascista e outros grupos que foram forçados a responder ao ressurgimento do fascimo e sua mudança para o racismo anti-imigrante depois de 1945 na Inglaterra. Na Alemanha, em 1989, a queda do muro de Berlim desencadeou uma epidemia de violência neonazista que catalisou o desenvolvimento de um movimento antifascista autônomo de rua.
Neonazismo
A campanha presidência de Donald Trump e sua eventual vitória tornaram clara e cristalina uma verdade que deveria ter sido óbvia durante todo o tempo: a supremacia branca é o coração da história estadunidense e esse legado fervilha acima e abaixo da superfície política do país.
O assinato de Heather Heyer, os ataques fascistas contra DeAndre Harris e muitos outros antifascistas e antirracistas durante o comício Unite the right em Charlottesville, nos dias 11 e 12 de agosto de 2017, foram trágicos por conta própria. No entanto, esta tragédia agravou-se pelo fato de que somente uma violência flagrante foi capaz de fazer as pessoas – principalmente as brancas – aceitarem o perigo deste poder supremacista, mesmo que ele incida sobre corpos de todo o mundo. O rebranding político proporcionado pelo trumpismo e pela nova extrema direita também jogou luz nos movimentos antifascistas dos Estados Unidos.
“Se quisermos destruir o fascismo, precisamos demolir suas raízes no heteropatriarcado, na supremacia branca, capacitismo, antissemitismo, capitalismo, imperialismo e na dominação feita em todas as suas formas.”
Embora os liberais continuem a ignorar a gravidade destas ameaças até que suásticas (ou seu equivalente) sejam pintadas nos prédios do governo (alguns continuariam a ignorar), Antifa em quadrinhos presta homenagem aos heróis do passado e do presente que lutaram contra o fascismo. Entre estes heróis está o antifascista anônimo que deu um soco na cara de Richard Spencer no dia da posse de Trump. Estes antifascistas não são super-heróis. Gord Hill pinta um retrato de resistência que destaca poucos nomes. Isto não é uma coincidência. Se quisermos destruir o fascismo, precisamos demolir suas raízes no heteropatriarcado, na supremacia branca, capacitismo, antissemitismo, capitalismo, imperialismo, hierarquia e na dominação feita em todas as suas formas.
Embora os primeiros super-heróis combatessem o fascismo, eles o fizeram sob o interesse de preservar o status quo da ordem que os produziu. Além disto, desde 1950, comentaristas começaram a perceber que a noção de um homem forte que tem o direito de reprimir “degenerados” fora do sistema legal, em virtude de suas proezas sobre-humanas, possui implicações fascistas. Os quadrinhos podem ampliar o heroísmo do antifascismo, mas também podem alimentar fantasias ditatoriais. É por isso que Antifa em quadrinhos é de uma importância vital. Hill cria um hino visual capaz de mostrar os heróis do cotidiano que colocam seus corpos em risco para esmagar as ambições dos pretensos super-homens fascistas.
Sobre os autores
é historiador especialista em direitos humanos, terrorismo e radicalismo político na Europa Moderna e autor do livro "Antifa – O Manual Antifascista" (Autonomia Literária). Foi um dos organizadores do movimento Occupy Wall Street em 2011 e seu trabalho é referência mundial no debate antifascista. Atualmente é professor do Dartmouth College.