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Rafaela Felicciano/Metrópoles

Bolsonarismo “gandhiano”

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O “bolsonarismo gandhiano” é perigoso. Há nele uma disposição anárquica em apenas respeitar o Estado quando se quer, somada a predisposição ao vigilantismo, potencialmente violento.

Mohandas Gandhi, o principal líder popular na luta pela independência da Índia, é conhecido ao redor do mundo por sua teoria da resistência não-violenta, considerada por muitos ingênua — e, por muitos outros, uma ideologia conformista que nos impediria de enfrentar a violência do Estado e de outros poderes estabelecidos. Mas pouco de seu anarquismo, que consiste em um dos elementos centrais de sua teoria da não-violência.

Em uma entrevista de 1934, Gandhi insiste que o “Estado representa a violência de forma concentrada e organizada” e que “não pode”, portanto, “se livrar da violência a qual deve sua própria existência”. Para Gandhi, não há como viver de forma não-violenta sob um Estado. Gandhi concebe a Índia pós-colonial como uma federação de vilarejos em que a representação política seria abolida. A desobediência civil como forma de resistência não-violenta buscaria, para Gandhi, realizar tal projeto de abolição do Estado e de suas instituições.

Geralmente, fora da Índia, a recepção das ideias de Gandhi abandonaria tais elementos radicais de seu pensamento, que um dos pais fundadores da Índia independente, Bhimrao Ramji Ambedkar, chamava de “gramática da anarquia”.  Não é essa a concepção de desobediência civil que chegou aos nossos dias e se tornou influente, graças a ativistas afro-estadunidenses como A. Philip Randolph, Bayard Rustin e Martin Luther King Jr, que acreditavam que a desobediência civil deveria buscar antes aperfeiçoar o Estado — nunca o abolir ou derrubar o governo que o rege.

Em seus escritos do início da década de 1920, Gandhi propõe, todavia, que a desobediência civil deveria ser durante o processo de descolonização completa ­— muito além de uma forma de resistência contra leis e políticas de governo injustas, a desobediência civil deveria se dirigir contra todas as leis promulgadas pelo Estado. 

Na prática, é, de fato, impossível desobedecer a todas as leis: em toda e qualquer situação, estamos obedecendo ao menos a algumas. E, para Gandhi, não deveríamos desobedecer a leis que garantem uma convivência social pacífica e não-violenta. A desobediência civil completa é, contudo, completa, porque, mesmo quando o indivíduo obedece a determinadas leis, ele o faz não porque ele respeita as leis, o direito ou o Estado.

Ele respeita a letra de tais leis ou porque elas representam princípios morais e religiosos (“Não matarás”, por exemplo) ou porque ele julga necessário de um ponto de vista tático ou estratégico obedecer a determinadas leis em determinados contextos. Ele não respeita, contudo, o espírito da lei, porque, para ele, a lei não tem espírito. Sua tarefa, constante, consiste em — através de meditações, jejuns e outras práticas espirituais — decidir que leis merecem ser obedecidas. Sua obediência não se dirige, assim, ao Estado e ao estado democrático de direito, mas a Deus, à humanidade ou outros ideais universais.

Durante a pandemia da COVID-19, muitos apoiadores do presidente Jair Bolsonaro recorreram ao conceito de “desobediência completa” e “desobediência total” para justificar sua recusa em respeitar as políticas públicas implementadas por prefeitos e governadores no combate ao coronavírus. Em uma lógica muito semelhante à do anarquismo gandhiano, tais ativistas recusavam deferência a instâncias do Estado que eles consideram ilegítimas. Convocados por líderes da extrema direita ou, no caso de muitos, agindo por inspiração ou instrução divinas, eles pregavam uma recusa radical ao uso da máscara, aos toques de recolher e a qualquer tentativa de implementar um confinamento estrito.

Embora muitos mobilizem Gandhi em seus discursos, esses apoiadores de Bolsonaro não são, contudo, defensores da ideia gandhiana de não-violência. E isso talvez revele o quão perigoso tal “bolsonarismo gandhiano” pode ser. Perigoso, porque, como ideologia, ele combina uma disposição anárquica — o indivíduo só respeita o Estado e o governo se ele quiser e quando ele bem entende — com uma predisposição ao vigilantismo, potencialmente violento — o indivíduo se outorga o direito de fazer justiça com suas próprias mãos.

É essa postura libertária face às leis, ao direito e ao Estado que continuamos a observar nos protestos golpistas que, apesar dos esforços do STF, continuam a ser uma constante na vida nacional desde a eleição de Lula. E é essa mesma postura que provavelmente marcará a resistência bolsonarista — e de extrema direita — nos anos por vir.

Sobre os autores

é escritor e doutorando em filosofia na Universidade Paris 1 Panthéon-Sorbonne. Seu trabalho já foi publicado pelo Washington Post, World Politics Review, The Philosopher, entre outras revistas e jornais.

Cierre

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Published in Cultura, História, Política and Sociologia

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