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Um tribunal judicial condenou a vice-presidente Cristina Kirchner a seis anos de prisão. (Tomas Cuesta / Getty Images)

A condenação de Cristina Kirchner representa um futuro incerto para a esquerda argentina

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Tradução
Sofia Schurig

Com sua condenação mês passado, a ex-presidente argentina Cristina Kirchner se tornou a última vítima do “lawfare” de direita na América Latina. Após a decisão, ela disse que não concorrerá mais a cargos públicos - ligando o alerta sobre o que pode acontecer quando uma única pessoa encarna um movimento político.

No início de dezembro, a felicidade argentina ao vencer a Copa do Mundo foi interrompida por uma única manchete. A ex-presidente argentina, Cristina Fernández de Kirchner (ou CFK, conforme é chamada na imprensa local), foi considerada culpada em meio a um escândalo de corrupção por lavagem de dinheiro durante seu mandato como presidente de 2007 a 2015, e condenada a seis anos de prisão.

Na decisão final é dito que CFK canalizou conscientemente mais de US$ 1 bilhão para uma construtora do empresário Lázaro Báez, amigo e aliado dela e de seu marido, o ex-presidente Néstor Kirchner, durante suas presidências.

Durante seu mandato como governador do Estado de Santa Cruz, bem como durante seus mandatos presidenciais, Báez lavou mais de US$ 55 milhões dos governos provincial e federal para a construção, inclusive para o mausoléu de Néstor Kirchner. Atualmente, o empresário está cumprindo uma pena de 12 anos por esse escândalo, condenado em fevereiro de 2021.

A recente sentença de CFK é um resultado dessas mesmas investigações, mas Kirchner não é apenas uma política — ela é a representante central do movimento popular que atualmente detém a presidência. Sua sentença tem, portanto, ramificações políticas maciças para o povo e para a política da Argentina.

“A acusação e sentença de Kirchner levantam questões importantes para as forças progressistas não apenas latino-americanas, mas em todo mundo.”

Em sua resposta em vídeo à decisão, a ex vice-presidente argumentou que “Eles [o tribunal] não estão vindo por mim. Eles estão vindo por você”, se referindo ao povo. Em outras palavras, Kirchner alega que o escândalo é um embuste destinado a impedir os progressistas peronistas e a coalizão que os mantém unidos, apontando as conexões entre os juízes que a sentenciaram e a oposição de direita.

Na Argentina, sentenças penais são emitidas antes que juízes apresentem argumentos ao seu favor. Temos relativamente poucos detalhes sobre a fundamentação legal da decisão dos juízes, além das acusações da promotoria que houve conversas de funcionários públicos sobre “limpeza” de sua corrupção antes do final de sua presidência.

Kirchner nega que houve lavagem de dinheiro e sustenta que ela e seus aliados são alvos de um sistema injusto de perseguição judicial. Mesmo assim, a maioria dos observadores independentes concorda que a CFK tem mais dinheiro do que ela pode razoavelmente explicar, mesmo que o caso apresentado contra ela é questionável, no mínimo.

É razoável criticar o caso contra a CFK, claramente motivado politicamente. Mas também é razoável criticá-la por corrupção — e por se deixar desnecessariamente seu movimento vulnerável ao ataque da direita.

Peronismo moderno

Há mais de vinte anos na política argentina, Cristina Kirchner é uma figura poderosa que começou sua carreira como aliada política de seu marido, Néstor, presidente da Argentina entre 2003 e 2007. Ele se afastou em 2007 para permitir que a CFK se candidatasse à presidência, mas permaneceu como conselheiro durante sua presidência — surgindo comparações do casal com os Clintons como um casal de poder paradigmático.

Em 2010, a morte inesperada de seu marido fez com que ela se tornasse a líder das forças populares e progressistas no país. CFK foi eleita para a presidência em 2011, mas seu sucessor derrotado em 2015 pelo candidato neoliberal Mauricio Macri.

Kirchner retornou ao poder executivo como aliada do atual presidente argentino, Alberto Fernández, ambos como membros do partido Frente de Todos — a atual representação do movimento peronista argentino.

O peronismo sempre foi uma coalizão complexa que mistura elementos da esquerda e da direita, desde sua fundação sob Juan e Eva Perón nos anos 1940 até o presente. Os peronistas adotaram posturas políticas que vão do fascismo ao socialismo, sempre com uma vertente anti-elitistas e populistas.

CFK e seu falecido marido representam um populismo de centro esquerda. Ela passou grande parte de sua presidência legislando contra o capitalismo “imperialista” dos EUA. O casal fez múltiplas medidas para implementar as medidas comerciais mais protecionistas possíveis na economia e para limitar o acesso ao dólar em um esforço para estabilizar a economia do país e proteger a subsistência dos pobres.

Os Kirchners se identificaram como políticos diretamente preocupados com as perspectivas econômicas do país, assim como o próprio Perón havia feito, mas o peronismo é maior do que o casal. A Frente de Todos, o partido atual de Cristina, é um partido de unidade peronista projetado para unir a formação progressiva de CFK com os peronistas mais centristas e de direita.

“Tudo foi transmitido ao vivo, e clipes do evento mostram nitidamente o brasileiro Fernando André Sabag Montiel apontando uma arma para a cabeça da ex-presidente.”

O próprio presidente Alberto Fernández é um intermediário para essas facções e intermediou uma aliança com um dos maiores rivais peronistas de Kirchners, Sergio Massa, para se juntar ao governo para derrotar o então presidente Macri.

Os últimos anos têm sido difíceis para Kirchner e sua coalizão. Apesar de serem membros do mesmo partido e, ostensivamente, ambos peronistas, CFK e Fernández tiveram discordâncias públicas e agora mal se falam. Para piorar, os problemas legais da ex-presidente vieram após ela sobreviver a uma tentativa de assassinato. Em setembro de 2022, após discursar no bairro burguês de Recoleta, em Buenos Aires, um integrante da extrema direita tentou atirar no rosto dela.

Tudo foi transmitido ao vivo, e clipes do evento mostram nitidamente o brasileiro Fernando André Sabag Montiel apontando uma arma para a cabeça da ex-presidente. CFK apenas foi salva porque a arma do terrorista disparou incorretamente. O processo legal contra Sabag Montiel e seus comparsas que auxiliaram no planejamento do atentado, uma rede de supremacistas brancos e neonazistas, está em andamento na justiça argentina.

Futuro incerto

A sentença de Kirchner também lhe garantiu apoio de outros políticos na esquerda latino-americana que identificam sua acusação como parte de uma tendência “anti-política” maior.

Essa tendência foi designada como “lawfare”, um termo cunhado na década de 2010 para se referir às forças políticas conservadoras e de direita usando cuidadosamente sistemas legais para atacar os líderes dos movimentos populistas e de esquerda. Especialistas concordam que a lei se tornou uma forma popular de as forças conservadoras e de direita da região se livrarem dos opositores políticos sem encenar golpes de Estado ou apoiar revoltas populares.

Um exemplo proeminente da atuação do “lawfare” foi a remoção de Dilma Rousseff, a primeira mulher presidente do Brasil, do poder em 2016. Ela foi deposta no que é atualmente chamado “golpe parlamentar”, no qual membros do parlamento votaram por sua remoção e instalaram seu vice de direita Michel Temer como titular até as eleições dois anos depois.

O impeachment abriu o caminho para a vitória de Jair Bolsonaro em 2018 o candidato que substitui o ex-presidente Luiz Inácio Lula da Silva, preso ilegalmente, Fernando Haddad. Rousseff esteve entre os primeiros políticos de destaque na América Latina a expressar solidariedade com CFK sobre sua sentença, traçando paralelos entre os casos.

“Embora não seja uma surpresa para a coalizão peronista, a sentença de Kirchner é um duro golpe para instável aliança entre as forças progressistas argentinas.”

Outros políticos de esquerda e centro esquerda na América Latina seguiram o exemplo, chamando a sentença de CFK de um ato de violência política contra o povo da Argentina e da América Latina em geral. Lula e o ex-presidente boliviano Evo Morales, ambos em posições semelhantes, expressaram sua solidariedade.

Como geralmente ocorre em casos de alta visibilidade envolvendo políticos, esse escândalo de corrupção provavelmente não colocará a CFK na cadeia tão cedo. Sua posição como ex-presidente a protege legalmente, dando-lhe imunidade até 10 de dezembro de 2023, quando seu mandato com Fernández termina. Ela também possui o direito de recorrer à decisão, o que provavelmente atrasará qualquer condenação definitiva por alguns anos, se não décadas.

No entanto, as consequências imediatas desta decisão são mais políticas do que jurídicas. Embora não seja uma surpresa para a coalizão peronista, a sentença de Kirchner é um duro golpe para instável aliança entre as forças progressistas argentinas. CFK disse que, como consequência dessa última decisão, ela não buscará um segundo mandato como presidente, nem se candidatará a qualquer outro cargo público.

Ao empurrar para fora da política uma das figuras mais populares, apesar de polêmica, do país, o caso abre novas possibilidades para a coalizão peronista e progressista argentina para as próximas eleições de 2023. Isso levantou a especulação de que possivelmente haverá mais lutas internas entre os peronistas sobre quem irá buscar a presidência em 2023.

Fernández afirmou que buscará a reeleição, mas isso provavelmente não impedirá seus companheiros peronistas de lutar pela mesma posição. Outros prováveis candidatos incluem Eduardo de Pedro, atualmente Ministro do Interior do governo Fernández, e Massa, atualmente Ministro das Finanças do país e ex-candidato à presidência com seu próprio partido peronista centrista.

A acusação e sentença de Kirchner levantam questões importantes para as forças progressistas não apenas latino-americanas, mas em todo mundo. Como figura de um movimento populista, ela conseguiu se enriquecer sabendo que teria milhões de apoiadores caso fosse processada, incluindo pessoas que compreendem que dependem de Kirchner para a manutenção do seu capital político e próprio bem-estar.

Que esse caso particular possui um alvo judicial é óbvio, mas o problema é que o tipo de irregularidade financeira em que o tribunal argumenta muito provavelmente aconteceu em algum momento da carreira da ex-presidente. A sentença da Kirchner, e os danos que provavelmente causará às forças progressistas no país, é mais do que uma condenação a ela como presidente ou ator político — é um aviso sobre o que pode acontecer quando uma única pessoa encarna um movimento político.

Sobre os autores

Craig Johnson

tem um doutorado em história pela Universidade da Califórnia Berkeley, onde seu trabalho focalizou a ala direita e a Igreja Católica na Argentina, Brasil, Chile e Espanha. Ele apresenta um podcast chamado Quinze Minutos de Fascismo, um programa semanal de notícias e análises cobrindo a ascensão global da direita radical.

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Published in América do Sul, Análise, Legislação and Política

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