Deveríamos estar preocupados com a inflação?
Sim. O aumento do custo de vida prejudica lares da classe trabalhadora e a principal resposta política é aumentar as taxas de juros e desemprego. Nada disso é bom.
Por que temos inflação no momento?
A essa altura, a resposta pode mudar diariamente, mas a história começa com a pandemia e as privatizações. De repente, o vírus afetou tudo o que vinha conspirando há décadas para manter os preços estáveis. Cadeias de fornecimento incrivelmente complexas, que haviam permitido entregas de bens produzidos a preços baixos seguindo o modelo “just in time“, não tiveram a menor chance de sobreviver a uma revolução dessa escala. A este ponto de tensão acrescenta-se o aumento da demanda por bens duráveis por consumidores presos em casa, consumidores esses que passaram a utilizar menos serviços. Inevitavelmente, isso levaria a estrangular o gargalo em alguns setores, enquanto outros, como hotéis, bares e restaurantes, operavam bem abaixo da lotação, quase vazios. Por esses motivos, desde o final do ano passado a inflação de bens ficou cerca de quatro vezes acima da de serviços, diferença impulsionada em grande parte pelo setor automobilístico.
Parecia razoável imaginar que essas tensões se atenuariam um pouco conforme padrões de consumo retornassem aos níveis pré-pandemia, porém isso não está acontecendo como o esperado, e a última onda de COVID na China e a guerra na Ucrânia não ajudaram. É possível ainda que estes não sejam meros contratempos, mas prévias do que está por vir, conforme mudanças climáticas e tensões geopolíticas que impõem ainda mais restrições nas cadeias de fornecimento e contribuem para o aumento no preço da energia e de outros bens primários.
Qual o papel da manipulação de preços nisso?
Tem sido bom ver tanta atenção focada no papel do lucro. Quaisquer que sejam as dinâmicas estruturais em jogo, a inflação no fim das contas é um mecanismo de transmissão de reivindicações conflitantes sobre a renda e é, portanto, sempre uma questão de distribuição. Na maior parte do tempo, os comentaristas de economia se concentram exclusivamente nos salários, então a narrativa sobre o poder corporativo é muito bem-vinda. Em algumas áreas, como no transporte de mercadorias, a concentração de poder é um fator inflacionário. E a manipulação de preços de processadores de carne, empresas farmacêuticas etc. é o que atinge com mais força o orçamento dos lares de classe trabalhadora, ainda que seu efeito na inflação de maneira geral seja modesto.
Ainda assim, enquanto uma revitalização da fiscalização de antitrustes poderia ajudar um pouco, não seria tão eficiente – e tem verdadeiras desvantagens. Para começar, mais competição nem sempre tem efeitos positivos sobre a taxa de desemprego, como trabalhadores da indústria de confecção da metade do século XX ou manicures de hoje podem comprovar. Além disso, um problema maior que o poder de estabelecer preços é o do controle corporativo sobre investimentos. Porque é o abastecimento que influencia a natureza da inflação atual – que, mais uma vez, pode piorar com a mudança climática e as guerras comerciais – e fica claro que a solução real é uma expansão da nossa capacidade produtiva. E isso requer um papel maior do estado em direcionar os investimentos. Pelo menos o programa da ONU Build Back Better [Reconstruir Melhor] colocou isso na pauta política pela primeira vez em muito tempo.
Vamos ver algo parecido com a estagflação da década de 1970?
Há alguns meses, a ideia de uma estagflação no horizonte me faria rir. Agora já não tenho mais tanta certeza. A narrativa convencional do que aconteceu em 1970 é oriunda da teoria de Milton Friedman de que keynesianos delirantes acharam que conseguiriam manter o desemprego abaixo de sua “taxa natural”, um esforço que aumentou a expectativa de inflação e foi o estopim para uma década de espiral inflacionária. O controle da situação só foi retomado quando o presidente do FED, Paul Volcker, assumiu o compromisso implacável de aumentar o desemprego através de altas taxas de juros. Essa história omite o que muitos economistas de hoje e de então já perceberam ser a raiz da crise: que os impactos nas cadeias de fornecimento, especialmente de petróleo e comida, aliados a um declínio secular da produtividade contribuíram para o aumento de preços e desaceleração do crescimento.
Se os impactos na cadeia de abastecimento que começaram com a pandemia continuarem, e se piorarem com a situação climática (assim como uma menor dependência de energias não-renováveis) e a reestruturação do comércio internacional, é capaz de estarmos diante de uma jornada difícil. Um aumento estrutural de preços pode enfraquecer o potencial de crescimento, e a resposta padrão ao movimento inflacionário – austeridade, de uma forma ou de outra – teria efeitos adversos sobre a taxa de desemprego mas pouco impacto positivo nos preços. São esses os ingredientes para uma estagflação.
Como deveríamos encarar a atitude adotada pelo Fed recentemente?
É impossível ganhar esse jogo – ainda mais quando as taxas de juros não resolvem os problemas de abastecimento e talvez os tornem mais difíceis de resolver -, mas podia ter sido pior. O anúncio feito em março de 2022 pelo Comitê Federal de Livre Mercado de que eles tinham planos de aumentar as taxas de juros e diminuir o saldo geral representa uma mudança substancial, capaz de pôr empregos em risco. Faz pouco tempo, em setembro de 2021, eles haviam anunciado que os juros se manteriam estáveis no ano, e que haveria apenas aumentos modestos em 2023. Agora, eles esperam ajustes trimestrais constantes pelos próximos tempos, e alguns dos bancos mais linha-dura estão pedindo mais. Nada disso é irrisório.
Ainda assim, o plano de ir de quase zero a cerca de 2,5% é bem diferente da reação dos anos 1970 e 1980, quando Volcker aumentou para quase 20% a taxa básica de juros para os fundos federais (e as taxas de juros já estavam altas mesmo antes disso). Na época, a ordem de grandeza também era outra, pois o equilíbrio das forças de classe era diferente: a intenção de Volcker era que sua política monetária fosse uma arma na guerra contra um movimento trabalhista ainda muito influente, que ele via como o principal fator inflacionário (mesmo motivo que o levou a comemorar o ataque de Ronald Reagan ao PATCO, o sindicato dos controladores de tráfego aéreo).
Enquanto o atual presidente do Fed, Jerome Powell, tem que se preocupar com carência de mão-de-obra, pelo menos ele não tem que bater de frente com sindicatos capazes de exercer poder em escala macroeconômica. E os gerentes de ativos como BlackRock, de suas altas posições de comando no capitalismo global, não ligam para um pouco de inflação, o que provavelmente vale de alguma coisa. Então, pelo menos por enquanto, não precisamos nos preocupar com um Choque de Powell.
O que fazer?
O que deveria ser feito e o que temos o poder de fazer são duas questões distintas, mas deveríamos começar por uma tentativa de entender a inflação em termos de classe social: só pode ser resolvida, ou até evitada, através de um papel ativo do estado no gerenciamento das divisões de renda. Por décadas, isso foi feito através de medidas monetárias e fiscais que visavam a criação de insegurança empregatícia e a limitação do crescimento salarial. Nem preciso dizer que essa abordagem teve consequências trágicas.
Uma alternativa poderia ser o controle de preços – que chegou a ser quase uma ideia convencional na metade do século XX – ou impostos sobre lucros excessivos. Mas para essa investida contra as tarifas corporativas e lucros seria necessário confrontar o problema do investimento. Economistas ortodoxos sabem o que estão dizendo quando dizem que suprimir preços impede que empresas aumentem o fornecimento, e resulta em desabastecimento. Mas mesmo sem entrar num enfrentamento sobre lucros, o fato de a atual inflação ser tão relacionada à demanda também salientou a importância dos investimentos. Então talvez seja melhor pensarmos sobre a inflação da mesma maneira como encaramos as outras crises da nossa era, como a mudança climática, a estagnação secular e a desigualdade econômica: lidar com ela de maneira justa requer planejamento democrático, investimento público e redistribuição de bens.
Sobre os autores
é um historiador que mora em Los Angeles.