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Em 15 de maio de 2023, os palestinos recordam os 75 anos da Nakba ou "catástrofe": o dia recorda os acontecimentos de 1948. (Foto de Bettmann / Getty Images)

A Nakba nunca terminou

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Tradução
Gercyane Oliveira

Nesta semana completa 75 anos da Nakba, ou "catástrofe", um acontecimento histórico onde mais de 750 mil palestinos foram expulsos de suas terras e mais de 500 cidades e vilarejos sumiram do mapa. A expansão dos assentamentos e da limpeza étnica continuam, expondo a realidade que Israel impõem na região até hoje: a Nakba nunca terminou de fato.

Em 15 de maio de 2023, os palestinos recordam os 75 anos da Nakba ou “catástrofe”. O dia recorda os acontecimentos de 1948 que levaram mais de 750.000 palestinos ao exílio e mais de 500 cidades e vilarejos palestinos a serem apagados do mapa.

Mas também reconhece a realidade da Nakba em curso – o processo de desapropriação, limpeza étnica e colonização que levou a um sistema de opressão em toda a Palestina histórica. Esse sistema agora está sendo reconhecido pela sociedade civil internacional como um regime de apartheid.

No Reino Unido, a Nakba terá como marco uma marcha nacional em Londres, organizada pela Palestine Solidarity Campaign – um ato anual de solidariedade que, neste ano, tem uma urgência ainda maior. Isso porque, em outubro, Israel elegeu o governo de extrema direita mais radical da história do Estado, que está intensificando o ataque aos direitos dos palestinos.

“63 palestinos foram mortos nesses territórios nos dois primeiros meses de 2023, mais de um por dia.”

Após um ano em que as forças israelenses mataram mais de 170 palestinos na Cisjordânia ocupada e em Jerusalém Oriental, mais do que em qualquer outro ano desde 2005, o novo governo israelense aumentou essa violência brutal. 63 palestinos foram mortos nesses territórios nos dois primeiros meses de 2023, mais de um por dia.

Em março, gangues de colonos israelenses invadiram a aldeia palestina de Huwara, perto de Nablus, na Cisjordânia, e a incendiaram, ferindo dezenas de moradores e matando um deles. Esse ato – que muitos, inclusive comentaristas da mídia israelense, descreveram como um pogrom – aconteceu enquanto as forças israelenses observavam estáticas.

Apenas alguns dias após os acontecimento em Huwara, Bezalel Smotrich, ministro das finanças do governo de extrema direita de Netanyahu, declarou que a cidade deveria ser “exterminada”. Essa tarefa essencial, segundo ele, estava sendo deixada para os colonos como cidadãos, mas precisava ser realizada pelo Estado.

Violência dos colonos

O ataque a Huwara – e seu endosso por um ministro do governo – foi amplamente condenado. No entanto, os esforços da mídia para retratar esses atos como “sem precedentes” e como uma função apenas do extremismo do novo governo israelense são exagerados. Embora estejamos vendo uma intensificação da violência, ela está longe de ser um desvio da norma.

Essa narrativa “excepcional” tem sido central nos recentes protestos em larga escala em Israel por aqueles que se consideram à esquerda do espectro político. Esses protestos também foram refletidos em críticas públicas sem precedentes aqui no Reino Unido por parte de sionistas liberais, que geralmente relutam em criticar Israel publicamente.

Embora essas vozes destaquem aspectos do ataque de Israel aos direitos dos palestinos como parte do léxico de acusações contra o governo de Netanyahu, elas tendem a enquadrar os ataques aos palestinos como algo indireto. A preocupação principal é o ataque à “democracia” israelense devido aos planos de longo alcance para reformas judiciais, sociais e culturais.

Certamente é verdade que esse novo governo atacou os direitos dos cidadãos judeus de Israel, mas para os palestinos, é preciso deixar claro, Israel nunca foi uma democracia de verdade. Como o Comitê Palestino de Boicote, Desinvestimento e Sanções (BDS) argumentou recentemente, a reconfiguração do regime colonial de colonos de Israel que está começando a tomar forma simultaneamente consiste em uma diferença de tipo para os israelenses judeus, mas uma diferença de grau para os palestinos.

Recentemente, figuras importantes do judaísmo britânico, como Margaret Hodge e Simon Schama – que apoiam veementemente o direito “irrestrito” de Israel de existir – manifestaram preocupação com o governo de Netanyahu. Mas suas críticas merecem uma análise mais cuidadosa.

“A noção de que Israel está se afastando do que antes eram fundações democráticas só é plausível se você for deliberadamente cego com a história palestina e a devastadora limpeza étnica.”

Depois de uma visita a Israel, Hodge descreveu o tempo que passou em Sheikh Jarrah, onde “sentou-se no jardim de uma família de 20 palestinos, que também vivia em sua modesta casa há três gerações e que agora estava ameaçada de despejo pelos judeus israelenses”. Essa simpatia pelos palestinos é positiva, mas enquadra o deslocamento forçado como se fosse um novo desenvolvimento vinculado apenas ao atual governo de extrema direita.

Isso esconde a realidade de que as famílias palestinas têm liderado protestos contra as tentativas de desalojá-las de Sheikh Jarrah, em Jerusalém Oriental, há mais de uma década, inclusive sob os chamados governos israelenses “moderados”. E isso levanta uma outra questão: onde está a condenação dos 750.000 deslocados de suas casas para fundar o Estado de Israel? Ou os milhares e milhares de pessoas deslocadas desde então, muitas delas de Jerusalém Oriental?

Infelizmente, o que pareceu irritar Hodge não foi a realidade atual da limpeza étnica. Em vez disso, foi a visão de um ministro do governo, Itamar Ben-Gvir, montando um gazebo como escritório em frente à casa da família para provocá-los diariamente com a realidade de sua expulsão iminente. Deve-se presumir que isso é “um passo muito grande”. Mas, na verdade, é apenas o mais recente em mais de 75 anos de expulsões forçadas, que são comemoradas por Israel.

Ilusões liberais

Em outro artigo recente do The Observer, Simon Schama é citado expressando consternação com a “completa desintegração do pacto político e social” que, segundo ele, sustenta o Estado de Israel. Ele continua expressando a preocupação de que o novo governo esteja colocando Israel em risco de se tornar uma “teocracia nacionalista”.

A noção de que Israel está se afastando do que antes eram fundações democráticas só é plausível se você for deliberadamente cego com a história palestina e a devastadora limpeza étnica sobre as quais o Estado de Israel foi fundado – além das leis introduzidas após seu estabelecimento para negar aos palestinos o direito de retorno e seu direito coletivo à autodeterminação.

Schama faz questão de frisar que suas críticas “não são uma traição a Israel”, mas sim “uma declaração apaixonada de apoio ao enorme número de pessoas” que se sentem “angustiadas” com o novo governo. Por mais genuíno que seja esse sentimento de angústia, ele não dá o direito de ocultar a história e vender fantasias em seu lugar.

Infelizmente, essas fantasias reconfortantes são a marca registrada do sionismo liberal. De que outra forma Margaret Hodge poderia descrever o deslocamento brutal de 750.000 pessoas como “os sonhos dos sionistas idealistas do pós-guerra que buscavam construir uma nova Jerusalém no Oriente Médio?” É revelador o fato de que, 75 anos após a Nakba, tais declarações ainda apareçam em jornais liberais.

“O estabelecimento de Israel implicou a divisão geográfica da Palestina e seu apagamento do mapa mundial.”

Vamos lembrar da história real. O estabelecimento de Israel implicou a divisão geográfica da Palestina e seu apagamento do mapa mundial. Em 1948, a Faixa de Gaza ficou sob administração egípcia e a Cisjordânia, incluindo Jerusalém Oriental, foi anexada pela Jordânia, enquanto os palestinos que conseguiram permanecer em suas terras em Israel foram submetidos a um regime militar por quase duas décadas e tiveram negada a cidadania igual à dos judeus israelenses.

Esse regime militar foi uma estrutura legal que, mais tarde, garantiria mais discriminação sistemática contra os palestinos após a ocupação militar de Israel (e depois a colonização) da Cisjordânia e de Gaza em 1967. Essas medidas incluíram restrições de movimento, sistemas de identificação escalonados, direitos civis limitados, detenções arbitrárias e prisões ilegais, expropriação de terras, negação do direito ao trabalho e à educação e várias outras condições que atendem à definição formal de apartheid.

Embora os sionistas liberais estejam atualmente criticando a impossibilidade política de uma solução de dois Estados, e o novo governo de Netanyahu esteja sendo criticado por ameaçar a anexação formal da Cisjordânia, é importante lembrar que ele foi eleito exatamente com base nessa plataforma – e que Israel vem realizando uma anexação há anos. O que é ainda mais impressionante é a continuidade entre as ações históricas de Israel e seu novo governo de extrema direita.

Na verdade, apesar das fantasias reconfortantes que muitos de nós consumimos sobre esse “conflito”, nunca houve a intenção de permitir a criação de um Estado palestino por parte dos principais políticos de Israel. Os programas de assentamentos na Cisjordânia e em Gaza não foram promulgados por extremistas de direita, mas, principalmente, por governos supostamente de esquerda que os sionistas liberais consideravam aliados democráticos.

“Não será possível manter um apoio confiável a Israel como uma democracia – mesmo uma democracia de colonos que pratica o apartheid em relação aos palestinos.”

Na verdade, Yitzak Rabin – que é louvado como um “guerreiro que se tornou pacificador” e cujo assassinato é frequentemente descrito como o descarrilamento de uma solução de dois Estados – disse ao Knesset [parlamento israelense], um mês antes de ser morto, que sua visão era dar aos palestinos “uma entidade que é menos do que um Estado”. Essa realidade só foi ocultada daqueles que se recusam a enxergá-la.

Nesse contexto, o perigo no momento atual é que as vozes dos sionistas liberais como as de Hodge e Schama dominem o discurso sobre como se deve reagir ao novo governo de Israel. A exigência deles é que a única maneira de Netanyahu e sua coalizão serem responsabilizados é apoiando os protestos atuais e se aliando às vozes dissidentes em Israel. Essa perspectiva deixa pouco espaço para as preocupações reais dos palestinos.

Moderação fracassada

Durante anos, Israel foi protegido da responsabilização por um discurso que enquadra o Estado como uma democracia liberal que está, na pior das hipóteses, supervisionando uma ocupação militar temporária. Mas essa narrativa só é viável para aqueles que se contentam em tornar os palestinos invisíveis.

As vozes sionistas liberais que têm sido parte integrante dessa mentalidade são agora confrontadas com sua falência ideológica. Não será possível manter um apoio confiável a Israel como uma democracia – mesmo uma democracia de colonos que pratica o apartheid em relação aos palestinos – enquanto Netanyahu acaba com os direitos democráticos que existem para os judeus israelenses.

Como resultado, há um esforço para estabelecer uma nova narrativa que descreve Israel como uma sociedade democrática que atualmente é governada por um governo antidemocrático. As deficiências desse governo não devem ser tratadas por medidas de responsabilidade em apoio à lei internacional e aos princípios universais dos direitos humanos, mas pelo apoio aos israelenses moderados que seriam alienados por boicote, desinvestimento ou sanções (BDS).

Dizem que não se pode esperar que esses moderados apoiem medidas de responsabilização em conformidade com o direito internacional e os princípios universais dos direitos humanos, muito menos ideias realmente “radicais” como a igualdade para todos os que residem entre o Rio Jordão e o Mar Mediterrâneo.

O objetivo da nova narrativa é permitir que Israel retorne a um status quo no qual os direitos dos judeus israelenses sejam protegidos. Quanto aos palestinos, eles devem ser incentivados não a resistir, mas a participar de projetos de coexistência nos quais possam aprender a conviver melhor com as mesmas forças que – dia após dia e semana após semana – os expulsam de suas terras, negam seus direitos e os oprimem violentamente.

“Quando a Grã-Bretanha prometeu “um lar para o povo judeu” na Palestina, ela só poderia fazer isso negando o direito à autodeterminação de 94% da população nativa da Palestina.”

Infelizmente, a abordagem de Keir Starmer no Partido Trabalhista britânico é orientada por essa nova narrativa e pelas preocupações dos israelenses “moderados”. Isso foi evidenciado pelos acontecimentos recentes. Seu gabinete não só se recusou a se envolver com os relatórios recentes da Anistia Internacional e dos Direitos Humanos, que concluíram que Israel era um Estado de apartheid, como também censurou o deputado trabalhista Kim Johnson por ousar usar esse termo na Câmara dos Comuns.

A resposta não pode ser simplesmente lidar com os “excessos” do atual governo e retornar a uma normalidade em que Israel é protegido da responsabilização por seus ataques aos palestinos, permitindo que ele use novamente a máscara da democracia. Essa máscara caiu para alguns liberais ocidentais, mas nunca existiu para os milhões de palestinos que enfrentaram o exílio, a prisão, a discriminação e a opressão em primeira mão.

Solidariedade internacional

No Reino Unido, há uma camada diferente de responsabilidade enraizada na história imperial que lançou as bases para as injustiças que os palestinos continuam enfrentando. A Declaração de Balfour de 1917 representou uma adoção aberta de um projeto colonial de colonização: um projeto fundado na premissa de direitos baseados na supremacia étnica, nacional e religiosa.

Quando a Grã-Bretanha prometeu “um lar para o povo judeu” na Palestina, ela só poderia fazer isso negando o direito à autodeterminação de 94% da população nativa da Palestina. Essa foi a fantasia reconfortante original e preparou o terreno para a brutalidade que se seguiu há 75 anos, quando os britânicos encerraram seu mandato em maio de 1948.

Ze’ev Jabotinsky, padrinho do sionismo revisionista que inspira Netanyahu e seu governo, articulou abertamente as brutais realidades necessárias para realizar o projeto sionista. Em seu ensaio “The Iron Wall” (A cortina de ferro), escrito em 1923, ele reconheceu que os árabes palestinos não concordariam com uma maioria judaica na Palestina e que, na verdade, não se deveria esperar que eles o fizessem.

“A colonização sionista”, concluiu ele, “deve parar, ou então prosseguir, independentemente da população nativa. O que significa que ela só pode prosseguir e se desenvolver sob a proteção de um poder que seja independente da população nativa – por trás de uma cortina de ferro, que a população nativa não pode romper”.

Visto nesse contexto, a orientação de Bezalel Smotrich para que Huwara seja “exterminada” não é uma aberração ou mesmo um desvio. Ela está totalmente de acordo com a onda de violência de 1948, que destruiu 531 vilarejos e cidades palestinas e limpou etnicamente seus habitantes, expulsando muitos de sua terra natal para sempre.

“É hora de aceitar a realidade da Nakba em andamento. Ela não terá fim a menos que a resistência palestina seja apoiada por esforços no mundi todo.”

O que os palestinos exigem daqueles que querem demonstrar verdadeira solidariedade pode ser encontrado no apelo do BDS feito em 2005 e repetido por Omar Barghouti nessa questão.

É hora de aceitar a realidade da Nakba em andamento. Ela não terá fim a menos que a resistência palestina seja apoiada por esforços no mundi todo – esforços que possam isolar Israel e acabar com o apoio militar, econômico e político cúmplice que damos ao seu regime de apartheid.

Para que a comunidade internacional enfrente a ameaça representada pelo novo governo de forma significativa, ela precisa entender o que o movimento BDS quer dizer com “diferença de grau”. O governo de Netanyahu é um governo novo e perigoso, mas não é um governo que possa ser enfrentado com analfabetismo histórico. É a intensificação de um processo que está em andamento desde a “catástrofe” palestina, há 75 anos.

Sobre os autores

é o Diretor da Campanha de Solidariedade à Palestina.

Cierre

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Published in Análise, Guerra e imperialismo, História and Oriente Médio

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