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Foto de Kristina Flour por unsplash.com

Existe democracia onde há misoginia?

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A tentativa de deslegitimação da atuação feminina na política não é novidade e o aumento de 18% de representatividade no Congresso tem alguns problemas, tendo em vista que a maioria delas são de partidos de direita. Mas, ao mesmo tempo, a luta feminista ressoa com outras lutas e mostrou ser uma das principais resistências à onda neoconservadora - por isso precisamos defender e ampliar nossa bancada.

A tentativa de calar 6 parlamentares mulheres de luta


A tentativa de deslegitimação da atuação feminina na política institucional não é novidade e se manifesta de inúmeras formas. Afetos são mobilizados com frequência quando se fala da participação de mulheres na política, seja na correlação ao descontrole, a falta de racionalidade, a emocionalidade exacerbada, e devido a esses fatores, mulheres são associadas ao espaço privado, destinadas ao trabalho reprodutivo e de cuidado com os demais. O que naturaliza e reitera um estado de subserviência feminina ou uma suposta falta de aptidão para ocuparem tradicionais posições de poder.

Os últimos dois processos eleitorais no Brasil foram marcados por um ínfimo aumento de parlamentares mulheres. Nas eleições de 2018, a bancada feminina passou de 9% para 15% do montante de parlamentares – ainda que os estados do Maranhão, Sergipe e Amazonas não tenham eleito nenhuma mulher –, o aumento geral é significativo, tendo em vista o histórico de estagnação nos 9% desde a redemocratização do país. Nas eleições de 2022, houve um crescimento de 3,2%, passando para 18,2% a representatividade feminina no Congresso. Apesar do avanço, ainda que tímido, chamamos atenção para o fato de que a maioria das eleitas são de partidos posicionados na extrema e centro direita. Então, até que ponto essa presença pode ser entendida como um avanço?

A ampliação da base antifeminista evidencia que, apesar da luta sistemática dos movimentos feministas brasileiros nas últimas décadas, o conservadorismo e o autoritarismo nunca deixaram de estar fortemente presentes na sociedade. No entanto, nos últimos anos temos visto na América Latina uma ampliação do rechaço às pautas feministas manifestando-se com maior intensidade no debate público. Essa contra-ofensiva aos recentes governos de centro esquerda se instalou com uma velocidade que, às vezes, excede o tempo da reflexão e se tornou um problema complexo para a reflexão analítica.

Mulheres como motor de resistência

Na contemporaneidade, observa-se o emprego do autoritarismo como uma tática para cooptar mulheres, incentivando sua participação na esfera política institucional, a fim de fortalecer narrativas que sustentem os papéis sociais estabelecidos pelo patriarcado. Tal fenômeno torna-se evidente ao constatar que o Partido Liberal (PL), liderado pelo ex-presidente Jair Bolsonaro, possui a segunda maior representação feminina na Câmara Federal. Entretanto, é importante ressaltar que essa bancada, abertamente antifeminista, busca a apropriação do conceito de representatividade feminina, rejeitando todas as narrativas que não estejam alinhadas às expectativas sociais tradicionais e às moralidades defendidas pela extrema direita.

A ascensão de parlamentares vinculadas à extrema direita e os confrontos decorrentes desse grupo podem ser compreendidos como uma forma de “politização reativa”, resultante do aumento das discussões, políticas públicas e leis que abordam os direitos e a vida das mulheres nas últimas décadas, impulsionando uma reação contra o avanço das agendas feministas.

No entanto, esse contexto não é recebido de forma passiva. À medida que a ofensiva reacionária foi e tem avançado, movimentos feministas demonstraram o papel central das mulheres como motor da resistência. Um exemplo marcante foi a histórica manifestação do movimento #ELENÃO durante as eleições presidenciais de 2018, quando Jair Bolsonaro (PL) disputava o segundo turno com Fernando Haddad (PT). Essa manifestação foi considerada a maior mobilização de mulheres na história do Brasil, com protestos ocorrendo em cerca de 114 cidades, incluindo Nova York, Lisboa, Paris e Londres, evidenciando sua dimensão global. A manifestação começou devido às declarações degradantes proferidas por Bolsonaro em relação às mulheres, mas acabou abarcando uma gama diversificada de pautas, como a defesa da democracia, dos direitos humanos e, principalmente, a oposição a posturas e narrativas associadas ao neofascismo.

Embora tenha vencido as eleições em 2018, nunca houve uma manifestação dessa magnitude contra um candidato e tudo o que ele representava, destacando como a luta das mulheres ressoa com inúmeras outras lutas, conforme afirmado por Verónica Gago (2020). No ano seguinte, em 2019, o movimento feminista mais uma vez demonstrou sua força e resistência por meio da Marcha das Margaridas, que reuniu mais de 100 mil mulheres em Brasília. Essa marcha reafirmou a luta pelos direitos das mulheres do campo, das florestas, dos quilombos, das águas, bem como a defesa das práticas agroecológicas e o combate à violência de gênero, entre muitas outras pautas desmanteladas rapidamente durante  o governo Bolsonaro.

O fato é que as mulheres não abandonaram as ruas e não foram facilmente silenciadas, apesar de todas as tentativas de deslegitimar a agenda feminista e de mobilizar estratégias para excluir sua presença na política institucional ou organizada. Isso evidencia a força da coletividade. Afinal, o corpo revela-se como uma composição de afetos, recursos e possibilidades que não são individuais, mas se singularizam, pois atravessam o corpo de cada indivíduo na medida em que cada corpo nunca é apenas um, mas está sempre conectado a outros corpos e outras forças também não humana, como defende Gago.

#ELASFICAM? A perseguição às deputadas progressistas

No dia 14 de junho de 2023, uma representação coletiva foi apresentada ao Conselho de Ética e Decoro Parlamentar, pela primeira vez nos últimos vinte anos, solicitando a cassação dos mandatos de seis parlamentares brasileiras. Segundo o Partido Liberal (PL), as acusadas de quebra de decoro são: Célia Xakriabá (PSOL-MG), Sâmia Bomfim (PSOL-SP), Taliria Petrone (PSOL-RJ), Erika Kokay (PT-DF), Fernanda Melchionna (PSOL-RS) e Juliana Cardoso (PT-SP). Posteriormente, a representação coletiva foi transformada em seis processos distintos que estão atualmente em andamento.

Essas parlamentares são acusadas de protestarem durante a votação do Projeto de Lei do Marco Temporal (PL 490/07), que estabelece limites para a demarcação de terras indígenas ocupadas pelos povos originários antes de 5 de outubro de 1988. É importante ressaltar que o Presidente da Câmara dos Deputados, Arthur Lira (PL), recebeu o pedido de cassação com um tempo recorde de apenas 4 horas, o que sugere a possibilidade de interesses por trás dessa eventual cassação dos mandatos das parlamentares em questão.

As parlamentares destacam que há um tratamento desigual às suas manifestações em comparação aos colegas, já que nenhum homem de esquerda ou centro esquerda teve seu nome associado às manifestações contrárias ao marco temporal – ainda que o houvesse feito. O que demonstra que estão vivenciando mais uma manifestação da violência política de gênero que quer encaixar suas atuações políticas como inadequadas.

É importante mencionar que a Lei Nº 14.192, de 4 de agosto de 2021, define como violência política contra a mulher qualquer ação, conduta ou omissão visando impedir, obstaculizar ou restringir seus direitos políticos. A lei garante os direitos de participação política das mulheres, proibindo a discriminação e a desigualdade de tratamento com base no sexo ou raça no acesso às instâncias de representação política e no exercício de funções públicas.

Já são conhecidos por nós os traços da misoginia na política institucional ao rechaçar a atuação feminina (progressista), agravada por marcadores sociais como raça, classe, sexualidade e etc.. Não é a primeira vez que as mulheres são vítimas de discursos de ódio, pois diariamente, enfrentam inúmeros desafios para exercerem suas atividades profissionais, e no campo político não é diferente. Ao combaterem projetos políticos da extrema direita, tornam-se alvos preferenciais da narrativa moral neoconservadora. São sistematicamente associadas a pautas como a interrupção da gravidez, disseminação de fake news sobre ideologia de gênero, sexualização infantil, entre outras, sendo obrigadas a refutar essas acusações repetidamente.

Diante disso, questionamos: o que é punível, as agentes políticas que expressam suas vozes contra as opressões diárias ou o silenciamento dessas vozes? Para contestar a conduta da representação aberta contra essas políticas, a Frente Parlamentar Feminista e Antirracista lançou a campanha contra a violência política de gênero e raça no Brasil na Câmara dos Deputados, em Brasília. A campanha é representada nas redes sociais com a hashtag #ElasFicam e tem mobilizado ativistas, intelectuais e artistas, reafirmando o óbvio que precisa ser dito: lutar não é um crime!

É importante ressaltar também que nenhuma parlamentar de direita ou extrema direita se manifestou em defesa das deputadas progressistas acusadas. Isso contrasta, por exemplo, com a situação em que Joice Hasselmann, ex-deputada federal, sofreu violência política de gênero ao se distanciar do bolsonarismo, recebendo repúdio e solidariedade de diversos setores políticos feministas. Essa postura diferenciada demonstra uma política que prioriza a construção de alianças, levando em consideração as diferenças e conflitos, mas que tem como ponto de partida a luta contra o patriarcado. É importante compreender que são projetos políticos com finalidades completamente distintas. 

Não descartamos a necessidade de divergências, pelo contrário. Em uma perspectiva agonística, como defende Chantal Mouffe em Agonística: pensar o mundo politicamente [sem tradução em Português], o conflito é uma premissa inerente ao jogo político e por isso ao invés de buscar uma neutralização de diferenças, é preciso encontrar uma forma de democracia que reconheça e canalize os antagonismos de maneira produtiva.

Compartilhando a leitura de Chantal Mouffe, partimos do entendimento de que a democracia deve reconhecer a pluralidade de interesses e visões de mundo que compõem a sociedade. Para isso, é necessário a fomentação de espaços políticos onde as diferentes perspectivas possam ser expressas, contestadas e negociadas de maneira respeitosa, legítima e confrontativa. O conflito deve, assim, ser expresso de maneira legítima e dentro dos limites do respeito mútuo – não tolerando violência e discursos de ódio.

Um pré-requisito para a validação do processo democrático é partir do pressuposto de que os opositores políticos serão encarados como adversários legítimos e não como inimigos. Mas o que fazer quando uma parcela da população (feminina) enfrenta diversas barreiras, acessa o campo político formal e não obtém o reconhecimento de suas agências como pares legítimos para atuar nesse espaço? 

O encerramento do diálogo com os movimentos de mulheres e a desumanização das militantes feministas fazem parte do projeto político da extrema direita. Em outros termos, interpretamos que a estratégia do neoconservadorismo através de seus discursos violentos, é justamente contornar as formas de tratamento respeitoso (ainda que conflitivo) entre os pares  – agentes políticos. Portanto, nos questionamos se essas assimetrias no espaço do poder, acentuadas pela deslegitimação constante das mulheres progressistas na Câmara Legislativa brasileira, não devem ser entendidas como uma afronta direta aos princípios democráticos.

Existe democracia onde há misogênia

Não muito distante, em 2016 com a interrupção do mandato de Dilma Rousseff (PT) a democracia no país entrou em processo de erosão, uma vez que por circunstância dos interesses de elites políticas e financeiras, foi retirada do poder a única mulher que ocupou o cargo Executivo Nacional. Não é de espantar que também se trate de uma mulher progressista. Áurea Carolina, Carol Iara, Duda Salabert, Erika Hilton, Isa Penna, Marielle Franco, Marina Silva, Manuela D’Ávila, Maria do Rosário, Mônica Seixas, Natália Bonavides, Sônia Guajajara, e tantas outras, todas essas políticas de grande projeção têm em comum o fato de em algum momento terem suas agências questionadas, seja por violência política material ou simbólica.

Agora, soma-se Célia Xakriabá, Sâmia Bomfim, Taliria Petrone, Erika Kokay, Fernanda Melchionna e Juliana Cardoso que estão prestes a terem seus mandatos julgados por uma bancada majoritariamente masculina (20 homens e apenas uma mulher) e de centro direita ou extrema direita. O que está em risco não é somente a atuação de nossas parlamentares, mas sim, a presença ativa de mulheres comprometidas com uma visão de mundo mais igualitária, combativa, que problematiza as desigualdades sociais. O que está em questão é a possibilidade do ser, agir e participar das mulheres no jogo político. Ou seja, o que está em jogo é o sistema democrático e a participação de seus cidadãos e cidadãs em plena condições de igualdade.

Por isso, lutemos. 

Elas ficam e a democracia também.

Sobre os autores

é pesquisadora do Laboratório Filolab – Philisophy and public controversies, doutoranda em sociologia pela Universidade de São Paulo (USP) com período de doutorado-sanduíche (CAPES-Print) pela Universidad de Granada (Espanha).

Camila Galetti
Cierre

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Published in América do Sul, Direitos Humanos, Ideologia and Política

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