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Cena do desenho animado Os Jetsons, criado pelo estúdio Hanna-Barbera na década de 60.

O que é comunismo de luxo totalmente automatizado

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Tradução
Everton Lourenço e Melanie Castro Boehmer

Embora no capitalismo a produção se torne cada vez mais eficiente e o lazer seja valorizado, o aumento da produtividade não leva a mais tempo livre, mas apenas à produção de mais bens e serviços e a enormes níveis de sofrimento e exploração. Em outro sistema isso poderia ser uma oportunidade histórica.

Adaptado a partir da publicação original como capítulo no livro Comunismo de luxo totalmente automatizado (Autonomia Literária, 2023).


O objetivo do futuro é o pleno desemprego, para que possamos aproveitar. 

Arthur C. Clarke

Por que CLTA?

Por que “comunismo de luxo totalmente automatizado”? Por que essas palavras e nessa sequência? Afinal, muitas pessoas enxergam o comunismo como nada além de um experimento fracassado do século XX, que não mereceria nossa atenção, exceto para aprendermos com seus erros. Alguns podem admitir que o capitalismo possui inúmeras falhas e que pode realmente vir a acabar um dia, mas consideram que se o comunismo for o que vem a seguir, isso não constituiria um avanço.

Embora seja verdade que vários projetos políticos tenham se rotulado como comunistas ao longo do último século, essa aspiração não era totalmente adequada e nem – como veremos mais adiante – tecnologicamente possível. A palavra “comunismo” é utilizada aqui em benefício da precisão; a intenção é denotar uma sociedade em que o trabalho seja eliminado, a escassez seja substituída pela abundância e onde trabalho e lazer se misturam numa coisa só. Dadas as possibilidades decorrentes da Terceira Ruptura [1], com o surgimento de uma oferta extrema de informações, mão-de-obra, energia e recursos minerais, essa deve ser vista não só como uma ideia adequada ao nosso tempo, mas também anteriormente impossível. O CLTA não está nos alicerces das tendências da Terceira Ruptura – pelo contrário, representa a conclusão delas.

Se for isso o que desejamos.

Choque do futuro, 1858

Não importa como as pessoas respondam à palavra “comunismo”, ela está associada a uma pessoa em particular – Karl Marx. Foi ele quem afirmou ver os contornos de um novo mundo no exato momento em que o capitalismo industrial fulgurava com seu maior brilho.

Isso não quer dizer que Marx foi o único a pensar que o capitalismo chegaria ao fim, ou que o sistema entraria em transição para outra coisa. A esse respeito a ele se juntaram, entre outros, dois pensadores do século XX, John Maynard Keynes e Peter Drucker, que, apesar de serem seus críticos, tinham pontos de vista semelhantes sobre como o capitalismo poderia levar a um sistema para além dele. Ao colocarmos Marx ao lado de ambos os pensadores, examinando como cada um enxergava a relação da escassez com o capitalismo e a utopia, podemos começar a criar uma imagem mais nítida do que ele queria dizer com comunismo.

***

Um aspecto do pensamento de Marx que permanece pouco enfatizado é como ele reconhecia a tendência do capitalismo de progressivamente substituir a mão de obra – animal e humana, física e cognitiva – por máquinas. Em um sistema repleto de contradições, era essa em particular que o tornava uma força de potencial libertação. Isso está delineado de maneira mais explícita no “Fragmento Sobre as Máquinas”, um trecho curto, mas importante, dentro dos Grundrisse. O motivo pelo qual você provavelmente nunca ouviu falar de nenhum dos dois antes, ao contrário dos mais conhecidos Manifesto Comunista e O Capital, é que os Grundrisse não foram publicados em alemão até 1939. Pior ainda, o texto não foi traduzido para o inglês até 1973. Como resultado, suas observações prescientes exerceram pouca influência sobre os projetos comunistas no século XX.

Isso foi uma tragédia, porque no interior dos Grundrisse encontramos não apenas as primeiras análises sobre a evolução tecnológica no capitalismo, mas também sobre as oportunidades que ela cria. Como Marx colocou de maneira tão memorável no “Fragmento”:

O capital só emprega a máquina, melhor dizendo, na medida em que ela capacita o trabalhador a trabalhar uma parte maior do seu tempo para o capital, a se relacionar a uma parte maior do seu tempo como não pertencente a ele, a trabalhar mais tempo para o outro. Na verdade, por meio desse processo o quantum de trabalho necessário para a produção de certo objeto é reduzido a um mínimo, mas só para que, com isso, um máximo de trabalho seja valorizado em um máximo de tais objetos. O primeiro aspecto é importante, porque o capital aqui – de forma inteiramente involuntária – reduz o trabalho humano […] a um mínimo. Isso beneficiará o trabalhador emancipado, e é a condição de sua emancipação.

Marx não poderia ter sido mais explícito: a concorrência obriga os capitalistas a inovar na produção; isso leva à permanente experimentação com processos de trabalho e tecnologias, tudo em busca de uma eficiência cada vez maior. A lógica da demanda de mercado significa que os capitalistas precisam produzir bens e serviços o mais barato possível, os forçando a reduzir constantemente suas despesas gerais, o que por sua vez cria um ciclo interminável de automação, abrangendo tarefas e até empregos inteiros – substituindo trabalhadores por máquinas. Embora no capitalismo esse processo gere enormes níveis de sofrimento e exploração, sob outro sistema isso representaria uma oportunidade histórica.

Em 1987, a Academia Nacional de Ciências dos EUA publicou um relatório intitulado Tecnologia e Desemprego , que reafirmava quase palavra por palavra a crítica de Marx sobre a mudança tecnológica no capitalismo, com a principal diferença de que os autores do relatório consideravam essa mudança totalmente positiva:

Historicamente e, acreditamos, por todo o futuro previsível, as reduções nas necessidades de mão de obra por unidade de produção, resultantes de novas tecnologias processuais, foram e serão compensadas pelos efeitos benéficos sobre o emprego advindos da expansão do total de produção que geralmente ocorre.

Assim, embora a produção se torne cada vez mais eficiente e o lazer seja valorizado como um bem social, o aumento da produtividade não leva a mais tempo livre, mas simplesmente à produção de mais bens e serviços. Para ser justo com aqueles que a defendem, tal visão não estava fundamentada apenas na ortodoxia econômica, mas também em dois séculos de transformações observáveis sob o capitalismo. A diferença com Marx nos Grundrisse é que ele pensava que havia uma alternativa e que apenas a perseguindo os seres humanos poderiam alcançar a liberdade.

Comunismo: um mundo para além da escassez

Ainda que o comentarista político médio goste de retratar Marx como um sonhador idealista, o homem em si repetidamente declarou sua aversão em descrever como poderia ser o aspecto do comunismo na realidade – o que ele chamava de escrever “receitas para as cozinhas do futuro”. Embora um tanto admirável em sua humildade, essa disposição também irrita, já que uma das maiores mentes a descrever as deficiências do sistema em surgimento estava bem posicionada para pelo menos sugerir o que poderia vir a substituí-lo. A visão de Marx, no entanto, era que os trabalhadores na sua luta estariam em uma posição única para chegar a soluções concretas.

Ele estava convencido sobre algumas características da nova sociedade, porém. Uma delas era que a chegada do comunismo anunciaria o fim de qualquer distinção entre trabalho e lazer. De maneira mais fundamental, seria um sinal da saída da humanidade daquilo que ele chamava de “reino da necessidade” e de sua entrada no “reino da liberdade”.

Mas o que isso significa? Para Marx, o reino da necessidade era onde o ser humano “precisa lutar com a natureza para satisfazer suas necessidades, para conservar e reproduzir sua vida” – em outras palavras, era um mundo definido pela escassez, algo que nos confrontou desde a época de nossos ancestrais hominídeos. Na época de Marx, ela constituía a questão central da Economia Política clássica: como alocar os recursos de maneira eficiente e eqüitativa em um mundo onde eles são limitados?

Para Marx, o reino da necessidade tinha um alcance tão abrangente que englobava até o socialismo. Isso porque, como o capitalismo, o socialismo ainda teria características como trabalho e escassez – conquanto em um sistema sujeito ao controle democrático, esses aspectos seriam racionalizados e socialmente mais justos. Mesmo que certamente fosse preferível ao capitalismo, e algo pelo qual vale a pena lutar ativamente, o socialismo para Marx seria um degrau na escada para outra coisa: o comunismo e o reino da liberdade.

O reino da liberdade, em contraste, seria marcado não só pela ausência de conflito econômico e trabalho, mas por uma abundância espontânea semelhante à Era Dourada de Hesíodo e Telecleides, ou ao Éden bíblico. Ao contrário da poesia grega clássica ou das escrituras religiosas, para Marx, entretanto, esse era um projeto a ser visado como objetivo, e não um passado lendário a ser reverenciado. Um reino de abundância além da imaginação não era algo para se recordar ou desfrutar na vida após a morte – era um projeto político a ser buscado no aqui e agora. Esse projeto político era o comunismo.

***

Apesar da afirmação de que Marx era favorável à uma revolução violenta, a verdade é que ele nunca acreditou que a transição para além do capitalismo seria um processo exclusivamente político – algo tão simples de se alcançar que exigiria simplesmente a substituição de um grupo de governantes por outro. Certamente isso implicaria em luta de classes e na conquista do poder político pela classe trabalhadora, mas também seriam necessárias novas idéias, tecnologias e relações sociais. Marx considerava a classe trabalhadora como sendo a chave para uma sociedade futura, mas apenas porque sua revolução teria a capacidade única de eliminar o trabalho e, por conseguinte, acabar com todas as distinções de classe.

Assim, apesar das repetidas convocações para que a classe trabalhadora liberte a si mesma, Marx não acreditava que o trabalho nos torna livres – nem que a sociedade do trabalho amplia o escopo da possibilidade humana. Pelo contrário, sua visão era que o comunismo só seria possível quando nossa atividade laboral – a maneira como misturamos nossos esforços cognitivos e físicos com o mundo – se tornar uma rota para o autodesenvolvimento ao invés de um meio de sobrevivência. Marx via essa condição como dependendo da transformação tecnológica: quanto mais desenvolvidas as forças de produção, maior sua capacidade de oferecer um novo tipo de sociedade onde trabalho e lazer se fundiriam em um só:

Numa fase superior da sociedade comunista, quando tiver sido eliminada a subordinação escravizadora dos indivíduos à divisão do trabalho e, com ela, a oposição entre trabalho intelectual e manual; quando o trabalho tiver deixado de ser mero meio de vida e tiver se tornado a primeira necessidade vital; quando, juntamente com o desenvolvimento multifacetado dos indivíduos, suas forças produtivas também tiverem crescido e todas as fontes da riqueza coletiva jorrarem em abundância, apenas então o estreito horizonte jurídico burguês poderá ser plenamente superado e a sociedade poderá escrever em sua bandeira: “De cada um segundo suas capacidades, a cada um segundo suas necessidades!”

Com a chegada do comunismo, qualquer distinção entre trabalho físico e mental desapareceria, com a atividade laboral se tornando algo mais parecido com uma brincadeira. Significaria também uma sociedade com maior riqueza coletiva, onde todos os desejos essenciais, bem como os desejos criativos, seriam satisfeitos. É aí que entra a questão do luxo: o conceito, em condições de escassez, expressa aquilo que está além da utilidade, um excesso para além do necessário na sua própria essência. Assim, à medida que informação, trabalho, energia e recursos minerais se tornarem permanentemente mais baratos – e que sejam deixados para trás o trabalho e os limites do velho mundo – resulta que não apenas poderemos satisfazer todas as nossas necessidades, mas também dissolver qualquer fronteira entre o que é útil e o que é belo. O comunismo será luxuriante – ou não será comunismo.

Pós-capitalismo sem comunismo: J. M. Keynes

Marx não estava sozinho ao afirmar que o capitalismo cria as condições para uma sociedade para além dele. Na verdade, ele foi acompanhado pelo economista mais influente do século XX, John Maynard Keynes.

Keynes não era nenhum radical, muito menos um revolucionário. Ainda assim, em 1930, após o colapso de Wall Street e o início do que viria a ser a Grande Depressão, ele escreveu o tratado mais otimista de sua época, Carta sobre as Possibilidades Econômicas de Nossos Netos.

Nesse breve ensaio tão seguro de si, Keynes esboçou os contornos de uma nova sociedade que ele via não só como desejável, mas inevitável. Como Marx nos Grundrisse, ele acreditava que tal transformação prefiguraria um mundo irreconhecível em relação ao seu próprio, mas que também expressaria o seu mais completo desenvolvimento:

Chego à conclusão de que, supondo que não haja guerras importantes e nenhum aumento populacional muito intenso, dentro de cem anos o problema econômico pode estar resolvido, ou pelo menos estar com uma solução ao alcance da visão. Isso significa que o problema econômico não é – se olharmos para o futuro – o problema permanente da raça humana […] assim, pela primeira vez desde sua criação, o ser humano será confrontado pelo seu problema verdadeiro e permanente – como usar sua liberdade em relação a preocupações econômicas urgentes, como ocupar seu tempo livre, quais ciências e quais conjuntos de interesses o conquistarão, para que possa viver de maneira sábia, agradável e boa.

Keynes criticava Marx abertamente, apesar de também afirmar nunca tê-lo lido. Mesmo assim, neste ponto é possível enxergar paralelos notáveis entre os dois. Para Marx, o comunismo será uma condição de abundância, uma sociedade onde o trabalho e o lazer se dissolverão um no outro, e onde nossa natureza se desenvolverá de maneira compatível com o entretenimento. Seria um mundo onde a escassez – ou, como Keynes se refere a ela, “o problema econômico” – finalmente estaria vencida. Em 1930, Keynes especulou sobre algo notavelmente semelhante e, surpreendentemente, até se sentiu confiante o bastante para estabelecer uma data – prevendo a chegada da pós-escassez para 2030.

Além do desdém declarado de Keynes pela política de classes de Marx, que segundo ele “prefere a lama ao peixe”, o que exatamente separava os dois? A resposta é a relação entre progresso e política. Ao contrário de Marx, Keynes acreditava que o capitalismo inevitavelmente se modificaria rumo a uma maior abundância, como resultado de sua capacidade de se tornar cada vez mais produtivo ao longo do tempo, enquanto reduz também a demanda por mão de obra. Em Possibilidades Econômicas, ele alegou que isso se traduziria em uma semana de trabalho mais curta, com as melhorias na produtividade beneficiando os trabalhadores, à medida que a tecnologia seguir progredindo. Em outras palavras, o tempo livre estaria destinado a aumentar enquanto a necessidade por trabalho lentamente desapareceria de vista.

Marx, que de forma semelhante insistia na capacidade do capitalismo para aperfeiçoar a produtividade, acreditava que sob o status quo isso não beneficia ninguém, exceto os ricos – apesar da possibilidade de beneficiar a todos. Embora Marx tenha observado a mesma tendência para uma potencial abundância, ele a enxergava como um território de disputa política – com os despojos indo para a maioria da sociedade apenas se esta for bem sucedida na luta por eles no conflito entre as classes.

***

A história do século XX parecia dar razão a Keynes: nas cinco décadas que se seguiram a 1927, apesar da Grande Depressão, os salários reais dos trabalhadores sem qualificação na indústria manufatureira dos Estados Unidos cresceram 350%, ao passo que os salários dos trabalhadores qualificados aumentaram em quatro vezes. Como hoje sabemos, essa foi a era de ouro do capitalismo, com os ganhos de produtividade e o alto crescimento levando ao aumento dos salários e à redução da jornada de trabalho. Quer você fosse um funcionário ou um industrial, era do seu interesse racional proteger o sistema.

Esse período acabou abruptamente no início dos anos 1970, quando os salários foram desvinculados dos incrementos na produtividade – que passaram a apenas alimentar os rendimentos de quem já ganhava muito dinheiro. Esse fenômeno se estendeu para além dos Estados Unidos. Um relatório de 2014 mostrou como por 40 anos a taxa de crescimento real dos salários na Grã-Bretanha foi marcada por uma tendência decrescente, com os salários aumentando 2,9% ao ano nas décadas de 1970 e 80, 1,5% nos anos 1990 e 1,2% nos anos 2000. Depois da crise de 2008, esse declínio na taxa de incremento entrou em queda livre, com os salários reais das famílias na Grã-Bretanha caindo 10,4% entre 2007 e 2015, algo totalmente sem precedentes.

***

Essa situação já terrível está a caminho de apenas se deteriorar ainda mais. Após o lançamento do orçamento britânico para o Outono de 2017, a Resolution Foundation, um think tank com sede em Londres, previu que a década de 2010 seria o pior decênio para o crescimento salarial no Reino Unido desde o final do século XVIII. Em outras palavras, a Grã-Bretanha se encontrava diante de uma estagnação nos padrões de vida nunca vista desde o surgimento da Segunda Ruptura (a Revolução Industrial). Embora Keynes estivesse correto em observar a possibilidade do capitalismo criar uma tal abundância que poderia nutrir um sistema para além de si, ele não conseguiu prever nada disso.

Isso porque ele não pensava que sua visão de uma sociedade para além do capitalismo – de alta produtividade, automação e tempo livre – fosse internamente contraditória. Assim, onde Marx enxergava um problema intratável, entre um sistema baseado no trabalho e na provisão por meio do mercado de um lado e a abundância do outro, Keynes via uma procissão suave de um mundo para o outro.

A cada dia que passa, principalmente desde a crise de 2008, parece cada vez mais óbvio que Marx estava certo. Das duas uma: ou as cinco crises deste século representarão uma ameaça existencial para a humanidade ou as dores do parto de algo melhor.

A despeito do que Keynes previu, nenhuma das opções é inevitável.

Pós-capitalismo e informação: Peter Drucker

Diferente de Marx e Keynes, Peter Drucker não era um economista político, mas um teórico da área de Administração. Como eles, entretanto, ele acreditava que o capitalismo é um sistema contingente e finito, que possui um ponto final distinto. Ele chamou esse ponto final de “pós-capitalismo” e, como no pensamento de Marx e Keynes, esse ponto representaria o pleno desenvolvimento da modernidade.

Praticamente ao mesmo tempo que o HTML era lançado publicamente, Drucker identificou como a informação se tornara o principal fator de produção – mais do que o trio histórico de trabalho, terra e capital. Como escreveu em 1993, “o fato do conhecimento ter se tornado o grande recurso, em vez de um dos recursos, é o que torna nossa sociedade pós-capitalista […] isso cria uma nova dinâmica social; cria uma nova dinâmica econômica; cria uma nova política.”

Drucker acreditava que a sociedade passa por tais rearranjos regularmente, com a história ocidental apresentando uma “transformação acentuada” a cada período de algumas centenas de anos. Tudo isso significaria que em poucas décadas, “a sociedade se reorganiza – sua visão de mundo; seus valores básicos; sua infraestrutura social e política; suas artes; suas principais instituições. Cinquenta anos depois, há um novo mundo”. Drucker acreditava que a mudança para o pós-capitalismo era uma dessas transformações.

Na periodização histórica de Drucker, as rupturas são vistas como acontecendo com mais regularidade do que como nós as compreendemos, com as implicações de cada uma tendo um menor alcance. Não obstante, sua visão de transformação histórica, onde as relações materiais da sociedade influenciam as idéias e a realidade social, inegavelmente se assemelha à de Marx. As palavras abaixo são de Marx, escritas em meados do século XIX, mas poderiam facilmente ter sido proferidas por Drucker no início dos anos 1990:

“Em uma certa etapa de seu desenvolvimento, as forças produtivas materiais da sociedade entram em contradição com as relações de produção existentes […] abre-se, então, uma época de revolução social. A transformação que se produziu na base econômica transforma mais ou menos lenta ou rapidamente toda a colossal superestrutura.”

Taylorismo e a revolução da produtividade

Para Drucker, o conhecimento e sua aplicação foram transformados de maneira significativa com a chegada da Revolução Industrial e do capitalismo, passando de um bem privado a um bem público, algo aplicado ao fazer ao invés de ao ser. Com a máquina a vapor de Watt e a nova sociedade que ela fomentou, o significado e o propósito do conhecimento mudaram de maneira fundamental. À medida que o conhecimento era aplicado a ferramentas, processos e produtos, começou a surgir a própria noção da tecnologia como um campo distinto. Em torno da década de 1870, foi essa relação entre conhecimento e tecnologia que impulsionou aquilo que Drucker chamou de “Revolução da Produtividade”.

O pai dessa revolução foi Frederick Taylor, um engenheiro mecânico estadunidense, pioneiro na administração científica. Antes de Taylor, cuja vida profissional decolou durante a década de 1880, o método científico nunca havia sido aplicado no estudo do trabalho a fim de maximizar a produção. No entanto, em poucas décadas, isso se tornou um dogma – expandindo maciçamente a produtividade e melhorando o padrão de vida do trabalhador médio. Após a ascensão do “Taylorismo”, pelo menos de acordo com Drucker, o valor teria passado a estar mais relacionado com o contínuo refinamento e aplicação de informações do que com trabalho, terra ou capital.

Mais uma vez, são nítidas as semelhanças entre o pensamento de Drucker sobre o assunto e o de seus predecessores, especialmente Marx. Como Marx escreveria nos Grundrisse:

No entanto, à medida que a grande indústria se desenvolve, a criação da riqueza efetiva passa a depender menos do tempo de trabalho e do quantum de trabalho empregado que do poder dos agentes postos em movimento durante o tempo de trabalho, poder que – sua “poderosa efetividade” – […] depende, ao contrário, do nível geral da ciência e do progresso da tecnologia, ou da aplicação dessa ciência à produção.

Notavelmente, Marx ainda acrescenta como esse processo mina a mão de obra como o fator central da produção:

Não é mais o trabalhador que interpõe um objeto natural modificado como elo mediador entre o objeto e si mesmo; ao contrário, ele interpõe o processo natural, que ele converte em um processo industrial, como meio entre ele e a natureza inorgânica, da qual se assenhora. Ele se coloca ao lado do processo de produção, em lugar de ser o seu agente principal.

Assim como Drucker, Marx acreditava que essa tensão, entre o conhecimento se tornando um fator de produção central e um sistema econômico baseado em atividade laboral, inevitavelmente significaria uma transição. Só que para ele o resultado seria um conflito inexorável, com o novo sistema só podendo substituir o velho como resultado da luta de classes. De acordo com Marx, mesmo com o maquinário mais desenvolvido, o trabalhador poderia muito bem ser forçado a “trabalhar agora mais tempo que o fazia o selvagem ou que ele próprio com suas ferramentas mais simples e rudimentares”. A tecnologia transforma o trabalho e pode melhorar a vida das pessoas, mas apenas se estiver associada a uma política adequada.

Para Drucker, entretanto, a transformação não parou com Taylor. Ele observou um papel cada vez mais central para o conhecimento à medida que o capitalismo se transformava ao longo do século XX. Assim, embora o período que se seguiu à década de 1880 tenha presenciado uma revolução de produtividade e as décadas posteriores a 1945 tenham representado uma “revolução gerencial”, era na “revolução da informação” que ele via a produção sendo cada vez mais baseada na “aplicação do conhecimento ao conhecimento”. Ainda que o conhecimento sempre tenha sido importante (no fim das contas, a essência da Primeira Ruptura residia no domínio do conteúdo informacional sobre o cultivo e os animais por meio da reprodução seletiva), com o surgimento da digitalização e da tecnologia da informação, Drucker enxergava esse processo como atingindo algum tipo de ponto final, com a mão de obra, a terra e o capital ficando criticamente marginalizados como fatores de produção.

***

Em Marx, Keynes e Drucker, são oferecidos três futuros, cada um deles articulando uma sociedade para além do capitalismo tornada possível apenas pelo seu desenvolvimento mais completo. Por mais que pudesse parecer o contrário durante grande parte do século passado, hoje, com relação ao declínio dos padrões de vida, independentemente das melhorias na produtividade, parece que Marx estava certo e Keynes, errado. As mudanças tecnológicas possuem o potencial de nos levar à abundância, como Keynes previu de maneira tão audaciosa em 1930, mas somente se estiverem acompanhadas de uma política que exija esse desfecho. E quanto a Drucker? O que ele compreendeu corretamente foi aonde, cada vez mais, o valor estaria localizado – nas informações.

Mas o que nenhum dos três esboçou nitidamente é a maneira exata como esse novo modo de produção se costuraria no tecido do presente. Notavelmente, a pessoa que o fez – quase que sem saber – mais tarde se tornaria o economista-chefe do Banco Mundial. Seu nome é Paul Romer.

Os bens de informação querem ser livres – de verdade

Em 1990, com apenas 35 anos, Romer escreveu um artigo acadêmico, hoje famoso, intitulado Mudança Tecnológica Endógena, onde de maneira efetiva cristalizou aquilo que Drucker escreveria poucos anos depois, destacando a nova e crítica importância do conhecimento para o crescimento econômico.

Compreender os elementos que se correlacionam com o crescimento é uma obsessão para os economistas, principalmente porque ao avaliar os co-fatores para o crescimento seria possível inferir o que o teria causado – taxas de poupança, crescimento populacional, aumento de salários – e realizar uma engenharia reversa a fim de se chegar a uma receita para a prosperidade. Antes do artigo de Romer, a mudança tecnológica era considerada “exógena”, uma variável externa constante semelhante a um ruído de fundo e, portanto, sem relevância. Mas Romer discordava, alegando que, como as próprias forças de mercado impulsionam a inovação, a mudança tecnológica deveria ser compreendida como um dos principais motores do desenvolvimento capitalista. A questão era como isso funcionava e com quais consequências.

Romer definia a mudança tecnológica como “uma melhoria nas instruções sobre como misturar as matérias-primas”. Talvez contra-intuitivamente, a mudança tecnológica seria, portanto, imaterial – correspondendo a nada mais que uma reorganização atualizada de informações anteriores. “As instruções para se trabalhar com matérias-primas são inerentemente diferentes de outros bens econômicos”, concluiu Romer. Assim, com o tempo, conforme a tecnologia se desenvolve, o valor deriva crescentemente das instruções em relação aos materiais, e não dos próprios materiais.

***

Só que havia um problema: o que agora era identificado como o aspecto mais valioso de uma mercadoria também era – tecnicamente, pelo menos – passível de replicação infinita quase sem nenhum custo: “uma vez que o custo de criação de um novo conjunto de instruções tenha incidido, essas instruções podem ser usadas inúmeras vezes sem nenhum custo adicional. Desenvolver novas e melhores instruções equivale a incorrer em um custo fixo.” Romer não fez menção nenhuma ao movimento hacker, mas estava começando a soar de maneira muito semelhante à conclusão de Stewart Brand de que “a informação quer ser livre”, cerca de seis anos antes.

Essa contradição era particularmente assombrosa para o capitalismo de mercado. Como Larry Summers e J. Bradford DeLong escreveriam em agosto de 2001, apenas um mês depois do serviço de compartilhamento de arquivos Napster ter sido retirado do ar, “a condição mais básica para a eficiência econômica … [é] que o preço seja igual ao custo marginal”. Eles prosseguiam: “com os bens de informação, o custo social e marginal de distribuição é próximo de zero.” Isso vale não apenas para filmes, música, livros e artigos acadêmicos, mas também para o projeto de um robô industrial ou de um medicamento. Na verdade, como outros capítulos do livro deixarão claro, isso é válido para setores cada vez mais amplos da economia. É aí que reside o paradoxo para o capitalismo, um sistema no qual as coisas são produzidas para troca e pelo lucro.

Se os bens de informação devem ser distribuídos pelo seu custo marginal de produção – zero – eles não podem ser criados e produzidos por empresas empreendedoras que usam as receitas obtidas das vendas aos consumidores para cobrir seus custos. Se for para os bens de informação serem criados e produzidos […] (as empresas) devem ser capazes de antecipar a possibilidade de venda de seus produtos com lucro para alguém.

Surpreendentemente, dois dos mais conceituados economistas do mundo estavam admitindo uma verdade notável: o mecanismo de preços estava quebrado para aquilo que deveria ser a parte mais valiosa da mercadoria – suas instruções. O pensamento econômico, por tanto tempo obcecado com a questão de como lidar com a escassez, começou a vislumbrar algo para além dela – com o único problema de que isso quebrava o sistema de incentivos pelo qual se espera que as pessoas criem coisas no capitalismo, ou seja, o lucro.

A solução proposta por eles – de exclusão e criação de escassez artificial – era superficial, mas reveladora. Isso seria alcançado por meio da criação de arquiteturas fechadas (como a Apple faria mais tarde com seus produtos, por exemplo), mudanças nas leis de direitos autorais e a promoção ativa de monopólios – algo que antes seria considerado incompatível com mercados saudáveis e funcionais. Summers e DeLong chegaram a admitir até esse ponto quando escreveram que

poder de monopólio temporário e lucros de monopólio temporários são a recompensa necessária para estimular a iniciativa privada […] a maneira ideal de se pensar sobre esse complexo conjunto de questões não está nítida, mas está claro que o paradigma competitivo não é totalmente apropriado […] ainda não sabemos qual será o paradigma substituto correto.

Quase duas décadas depois e ninguém tinha sido capaz de responder essa pergunta.

Pelo menos até agora.


Notas

[1] A “Terceira Ruptura” seria o processo atual (e que deve ser aprofundado durante as próximas décadas) pelo qual a tecnologia vem impulsionando uma oferta extrema nas áreas de informação, energia, mão de obra, entre outras. A “Primeira Ruptura” teria sido a adoção da Agricultura, e a Segunda, a industrialização.

Sobre os autores

é escritor, apresentador e co-fundador da Novara Media. É o autor de Comunismo de Luxo Totalmente Automatizado (Autonomia Literária, 2023).

Cierre

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Published in Análise, Economia, Política and Tecnologia

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