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Ficha do arquivo do hospício em que Lima Barreto foi internado em 1914. Na ficha, ele é identificado como “branco” (Foto: Divulgação )

“Lima Barreto é proibido no jornal!”

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Lima Barreto, cuja morte completa 101 anos, teve a publicação de seu nome proibida ao longo de décadas num dos maiores jornais do Rio de Janeiro. Ao flertar com o anarquismo e o socialismo, o escritor negro e suburbano expõe a hipocrisia dos que defendem a liberdade de imprensa ao mesmo tempo em que tentam silenciar a voz de seus críticos.

O escritor cuja morte completa 101 anos neste 1º de novembro de 2023 faleceu muito precocemente, aos 41 anos de idade, em 1922, mas legou-nos muitas histórias importantes sobre sua própria vida e sobre a sociedade brasileira.

Histórias reveladoras do racismo que insiste em vitimar homens negros como foi Lima Barreto e histórias de quem, nessa condição, ousou tornar-se escritor enfrentando os poderosos jornais que faziam parte da grande imprensa do início do século XX. Ao agir deste modo, serve até hoje de estímulo aos que se dispõem a cultivar um olhar permanentemente crítico para os nossos meios de comunicação, verdadeiros oligopólios midiáticos que há muito tempo interferem no processo histórico de forma decisiva.

Imprensa carioca

Embora tenha se tornado mais conhecido pelos romances que publicou, Lima Barreto se fez escritor atuando intensamente na imprensa carioca. Publicou artigos, crônicas, contos e folhetins em diferentes jornais e revistas bastante conhecidos nas primeiras décadas republicanas. Um dos que mais se destacam em sua trajetória é o jornal Correio da Manhã. Fundado em 1901, por Edmundo Bittencourt, logo o diário estaria entre os mais populares e que apresentavam maior tiragem.

Foi nesse periódico que, aos 24 anos, em 1905, o jovem e desconhecido escritor, morador do subúrbio carioca, debutou na grande imprensa, publicando o folhetim intitulado Os subterrâneos do Morro do Castelo. Na época – e por muito tempo – ninguém soube que se tratava de texto de Lima Barreto, pois o jornal omitiu o nome de autor ao publicar os capítulos do folhetim. Coube a uma das maiores estudiosas do tema, Beatriz Resende, identificar, reunir e publicar em livro pela primeira vez, somente em 1997, pela Editora Dantes, os textos cuja autoria o Correio da Manhã sequer identificara.

Quando finalmente fez sua estreia na literatura, publicando em livro o romance Recordações do escrivão Isaías Caminha, em 1909, Lima Barreto caiu em desgraça perante o jornal de Edmundo Bittencourt e boa parte da imprensa do Rio de Janeiro. Ao eleger como alvo principal de suas críticas o jornalismo, satirizando com toda mordacidade o fictício O Globo, largamente inspirado no Correio da Manhã, atraiu para si o ódio e o ressentimento do seu proprietário, que se mostrou profundamente incomodado com as críticas.

Até aqui, essa é uma história já conhecida. Sabe-se que, pela abordagem demolidora que Lima Barreto fez no romance do jornal e do jornalismo – que assumia um caráter cada vez mais profissional, na medida em que alguns jornais transformavam-se em empresas -, o dono do Correio vetou a publicação do nome do escritor em suas páginas. São várias as passagens que motivaram a retaliação. Como, por exemplo:

“A Imprensa! Que quadrilha! Fiquem vocês sabendo que, se o Barba-Roxa ressuscitasse, agora com os nossos velozes cruzados e formidáveis couraçados, só poderia dar plena expansão à sua atividade se se fizesse jornalista. Nada há tão parecido como o pirata antigo e o jornalista moderno: a mesma fraqueza de meios, servida por uma coragem de salteador; conhecimentos elementares do instrumento de que lançam mão e um olhar seguro, uma adivinhação, um faro para achar a presa e uma insensibilidade, uma ausência de senso moral a toda a prova… e assim dominam tudo, aterram, fazem que todas as manifestações de nossa vida coletiva dependam do assentimento e da sua aprovação… Todos nós temos que nos submeter a eles, adulá-los, chamá-los de gênios, embora, intimamente os sintamos ignorantes, parvos, imorais e bestas…”

Em outra passagem do romance, Isaías Caminha vai à redação d’O Globo para encontrar Gregoróvitch, que haveria de ajudá-lo a conseguir um emprego na Capital Federal. Não o encontrando no local, fica aguardando por ele. A espera lhe propicia a oportunidade de observar um espetáculo revelador, capaz de desmascarar os bastidores da imprensa. Entra na redação, segundo relato de Caminha, um “grande romancista de luxuoso vocabulário, o fecundo conteur, o enfático escritor a quem eu me tinha habituado a admirar desde os quatorze anos”, conhecido como Veiga Filho (inspirado em Coelho Neto).

O motivo da ida do famoso romancista à redação era para checar se o jornal noticiaria uma conferência que havia proferido. Em meio à discussão sobre quem redigiria o texto dessa notícia, Caminha presenciou o secretário da redação sugerir que o próprio Veiga Filho fizesse o texto. E perplexo, viu aquele “homem extraordinário que a gente tinha que ler com um dicionário na mão” acatar a sugestão. O que se segue é descrito por Lima Barreto através do protagonista, Isaías Caminha:

“Eu demorei-me ainda muito e pude ouvi-lo ler a notícia. Começou dizendo que era impossível resumir uma conferência de um artista como Veiga Filho. Para ele, as palavras eram a própria substância de sua arte”.

“[…] Veiga Filho acabou de ler a notícia no meio da sala, cercado de redatores e repórteres. Enquanto ele lia cheio de paixão, esquecido de que fora ele mesmo o autor de tão lindos elogios, fiquei também esquecido e convencido do seu malabarismo vocabular, do sopro heroico de sua palavra, da sua erudição e do seu saber…”

“Cessando, lembrei-me que amanhã tudo aquilo ia ser lido pelo Brasil boquiaberto de admiração, como um elogio valioso, isto é, nascido de entusiasmo sem dependência com a pessoa, como coisa feita por um admirador mal conhecido! A Glória! A Glória! E de repente, repontaram-me dúvidas: e todos os que passaram não teriam sido assim?”

“Naquela hora, presenciando tudo aquilo eu senti que tinha travado conhecimento com um engenhoso aparelho de aparições e eclipses, espécie complicada de tablado de mágica e espelho prestidigitador, provocando ilusões, fantasmagorias, ressurgimentos, glorificações e apoteoses com pedacinhos de chumbo, uma máquina Marinoni e a estupidez das multidões”.

Edmundo Bittencourt

O fato é que, mesmo proscrito das páginas do Correio da Manhã, tendo proibida a publicação de seu nome, censurado pelo dono do jornal, houve pelo menos um momento em que o nome do escritor se impôs nas páginas daquele diário. Por ocasião de um rumoroso julgamento no Tribunal do Juri, em setembro de 1910, do assassinato de dois estudantes ocorrido no ano anterior, Lima Barreto voltou a figurar na cobertura que o Correio fez do episódio. O caso conhecido como a “Primavera de Sangue”, teve militares entre os acusados e na condição de réus. Já o escritor fizera parte do Juri, sendo a ele atribuído pelo Correio da Manhã um papel fundamental no julgamento que condenou os militares, em meio a enorme repercussão. Como o jornal se engajou numa campanha pela condenação dos referidos militares, viu-se na contingência de ter Lima Barreto como aliado e não pôde escapar de publicar o seu nome nas reportagens sobre o episódio.

Passado esse momento, aparentemente o Correio da Manhã não mais voltaria a imprimir em suas páginas o nome censurado por Edmundo Bittencourt. O que surpreende, em certa medida, é que mesmo décadas mais tarde, quando Paulo Bittencourt já havia sucedido o pai na direção do jornal, a proibição continuasse vigente. Pelo menos é o que sempre se disse, mas agora é possível documentar, consultando o arquivo pessoal do biógrafo de Lima Barreto, Francisco de Assis Barbosa, custodiado pela Biblioteca Brasiliana da USP.

Em 4 de maio de 1981, Barbosa recebeu uma carta de Júlio Romão da Silva. Entre outros assuntos, o remetente descreve um episódio ocorrido na redação do Correio da Manhã na década de 1950 – portanto, cerca de 30 anos após a morte de Lima Barreto:

“Comentei algo no ‘Suplemento Literário’ do Correio da Manhã a respeito do negro notável (mulato, digo), autor também de O triste fim de Policarpo Quaresma. José Conde, responsável pelo suplemento, visou a matéria e chutou para a composição. Dia seguinte, Condé levou um tremendo esculacho do Paulo Bittencourt. E eu também. O poderoso patrão aproximou-se da minha banca ao lado da de Carpeaux e me xingou:

– O senhor devia ler melhor o seu jornal e conhecer melhor a filosofia da casa”.

– Sim, senhor. Sim, senhor”, disse eu.

E Paulo explicou-me:

Desde o tempo de Edmundo Bittencourt, esse nome (Lima Barreto), não pode ser citado em seu jornal! (Correio da Manhã).

Estremeci. E depois, durante o jantar no restaurante do 4º andar Condé me explicou com aquele seu vozeirão de gozador:

– Rapaz, eu também levei uma bronca! Lima Barreto é proibido no jornal!”

Júlio Romão da Silva ainda acrescenta:

“Emetério também passou por isto; você sabe. E eu também, como disse você me comparando a ele naquele discurso ‘generoso’ no Conselho Federal de Cultura”.

Portanto, podemos afirmar que o veto à publicação do nome de Lima Barreto perdurou por muito tempo, como confirma o testemunho consignado nesta carta, que ainda sugere outras questões. Afinal, o remetente foi um jornalista e intelectual negro, tal como o autor de Clara dos Anjos. Do mesmo modo, se o Emetério citado é Hemetério dos Santos (1851-1939), conforme consta na carta, era “um preto retinto, brigão como ele só” – segundo Nei Lopes -, restando saber se também teve seu nome proibido no jornal ou se foi advertido por ter publicado o nome de Lima Barreto no mesmo jornal.

À despeito da perseguição ao seu nome, observada ainda na década de 1950, Lima Barreto se impôs com altivez em busca do reconhecimento dos seus escritos. Certamente suas posições políticas – além das críticas à imprensa, a seus proprietários e certos modos de fazer jornalismo – provocaram a reprovação de muita gente. Ao se aproximar do ideário anarquista e socialista que circulava no país no início do século XX, pode ter incomodado gente com o perfil de Edmundo Bittencourt.

Barreto e Buarque

Lima Barreto foi um homem negro determinado a viver da sua produção literária. E ser um escritor negro e periférico – morador do subúrbio de Todos os Santos – há cerca de um século não era uma condição desprovida de atribulações. Disso nos dá testemunho outra carta do mesmo arquivo, dirigida a Francisco de Assis Barbosa. O remetente foi um historiador pioneiro na abordagem da literatura, autor de um livro que hoje pode ser considerado um clássico. Refiro-me a Nicolau Sevcenko no seu Literatura como missão: tensões sociais e criação cultural na Primeira República.

Em 28 de julho de 1982, Sevcenko descrevia para Barbosa parte da arguição que Sérgio Buarque de Holanda fez sobre sua tese, depois publicada com o título acima. O destinatário queria saber o que o célebre historiador havia dito sobre Lima Barreto por ocasião da defesa da tese realizada na USP. Sérgio Buarque conheceu pessoalmente Lima na passagem nos anos 1910 para os anos 1920, representando a revista paulista Klaxon. “Lembrou então, que o contato pessoal com Lima Barreto era um tanto difícil, pois o escritor tinha uma personalidade desconfiada e áspera. Embora nunca tivessem se tornado íntimos, o autor do Policarpo Quaresma parecia simpatizar muito com o então jovem representante da intelectualidade paulista”.

Em outra passagem desta carta, Sevcenko apresenta um relato ainda mais pungente e revelador de Sérgio Buarque sobre as condições de vida do escritor carioca que foi tema de sua tese de doutorado:

“Lima Barreto levava essa atitude de desprezo pelas elegâncias e conveniências realmente a fundo, a ponto de entregar-se a um total desmazelo e desconsideração pela sua própria aparência. E exibia esse relaxamento como um desafio, mesmo contra os seus amigos e pessoas que lhe eram mais íntimas. A esse respeito, o Prof. Sérgio relatou um incidente, que considerou como extremamente desagradável, ocorrido certa vez entre ele e o escritor. Estando a passear com uma sua namorada, moça muito educada e de elevada condição social, deparou-se com o literato num cruzamento de uma das ruas próximas da Av. Rio Branco. Lima Barreto, afirmou, estava bêbado e sem camisa e dirigiu-se aos dois de forma rude e deselegante, em tom de desafio quanto à sua situação e desalinho, o que a ambos deixou vexados e constrangidos. O tom melancólico da voz do arguidor parecia confirmar que a mera evocação do incidente ainda lhe despertava uma sensação desconfortável. Contudo, ele ainda ressaltou que era necessário compreender que essa deselegância e desmazelo do amanuense foram-lhe impostas originalmente pela própria situação de penúria e as reais dificuldades financeiras em que o autor vivia”.

O fato é que essa imagem tão dolorosa e inquietante de Lima Barreto embriagado e sem camisa, em plena avenida Rio Branco – a principal avenida do centro do Rio de Janeiro na época -, é também a imagem do escritor que teve a coragem de enfrentar o poderoso proprietário do Correio da Manhã. É a imagem do mesmo Lima que, de peito aberto no meio da rua, conquistou a parceria de muitos colegas, obteve o reconhecimento de alguns de seus pares ainda em vida e, na mesma década de 1950 em que se insistia em censurar a publicação de seu nome nas páginas do referido diário, teve suas obras publicadas em 17 volumes pela Editora Brasiliense (em 1956), numa edição organizada pelo mesmo Francisco de Assis Barbosa, que trazia a público também a biografia A vida de Lima Barreto (em 1952).

Desde então, o escritor carioca foi objeto de incontáveis estudos que ganharam a forma de artigos, dissertações, teses e muitos livros, tornando-se um dos literatos brasileiros mais frequentados por leitores comuns e pesquisadores de diferentes áreas. O Correio da Manhã deixou de circular em 1974. No embate travado com Lima Barreto, o jornal foi derrotado. O escritor segue vivo entre nós através de sua obra, já Edmundo e Paulo Bittencourt…

Sobre os autores

Denilson Botelho

é historiador e professor do Departamento de História da Universidade Federal de São Paulo – Unifesp.

Cierre

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Published in América do Sul, Análise, História, Humanos and Livros

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