Dia 7 de julho de 2024, a França escolherá um novo destino, bem distinto dos últimos 20 anos. Há menos de um mês atrás, o presidente francês Emmanuel Macron dissolvia a Assembleia Nacional francesa, equivalente da nossa Câmara de Deputados, na mesma noite que ele perdeu as eleições europeias.
O panorama político francês, dividido em três blocos desde 2017, se recompunha para consagrar a ascensão do Rassemblement Nacional (Reunião ou Reagrupamento Nacional, RN) de Marine Le Pen e Jordan Bardella – que com seus aliados teve 33% dos votos totais do primeiro turno –, a queda vertiginosa da direita macronista – para 20% e da direita tradicional – para míseros 6,5%.
A maior parte das forças de esquerda, reunidas na Nova Frente Popular (NPS), obteve 28%, reunindo o Partido Socialista (PS), de centro-esquerda, os Ecologistas, o Partido Comunista Francês (PCF), a França Insubmissa (FI) de Jean-Luc Mélenchon e até a extrema esquerda, com o Novo Partido Anticapitalista (NPA).
Qual teria sido o plano de Macron?
A notícia da súbita dissolução surpreendeu, e os analistas políticos franceses tentam desesperadamente encontrar a racionalidade que levou a esta decisão precipitada de Macron. Podemos nos arriscar e tentar desenvolver três hipóteses referentes à estratégia obscura do presidente francês:
1. Sem governabilidade na Assembleia, e percebendo que a esquerda estava dividida nas eleições europeias, talvez Macron quisesse criar uma aliança com a direita tradicional gaulista e com a direita do Partido Socialista francês. Duplo erro: metade da direita de Ciotti fez aliança com a extrema direita, e o Partido Socialista integrou a Nova Frente Popular, deixando o partido de Macron isolado.
2. Quis dividir a esquerda, e isolar a potente França Insubmissa, acusando-a de antissemitismo por causa do apoio à Gaza, estigmatizando pela mesma ocasião a população francesa muçulmana, alvo preferencial do discurso racista e xenofóbico da extrema-direita. Mais um erro: a França Insubmissa integrou a Nova Frente Popular.
3. Macron pode ter considerado que o risco maior era a conquista da Presidência da República pelo RN em 2027. Com a dissolução da Assembleia, Macron talvez tenha avaliado, muito perigosamente, que o menor mal seria ter um primeiro-ministro do RN sob seu controle, sem maioria absoluta para governar, apostando num suposto desgaste da extrema-direita no poder, reforçando assim seu campo político para as eleições presidenciais de 2027 – talvez por isso, Marine Le Pen está fazendo pressão no eleitorado, ao afirmar que pode não aceitar compor um governo sem maioria absoluta na Assembleia.
Claro que essas três hipóteses não são excludentes, e que cada uma deve ter contribuído na decisão aparentemente irracional de dissolver a Assembleia. Macron claramente não vislumbrou a possibilidade de vitória de uma Nova Frente Popular, que é a possibilidade cada vez mais concreta para as eleições do domingo, dia 07 de julho.
O enigma das 577 cadeiras
Esse número corresponde às circunscrições eleitorais francesas, de onde virão os deputados que irão compor a futura Assembleia, a partir da segunda-feira 8 de julho. Os resultados nacionais em termos percentuais que apresentamos acima têm uma relevância relativa: o que importa é a vitória local em cada uma das 577 circunscrições.
Tivemos, então, 577 pleitos distintos em primeiro turno, o que só não se repetirá onde já houve vitória em primeiro turno, o que dificulta extraordinariamente a previsão do desfecho nacional e da capacidade de cada aliança vencer suficientes circunscrições para, assim, poder enviar seu líder político ao palácio de Matignon, sede do gabinete do primeiro-ministro francês.
Para um leitor brasileiro, esse sistema eleitoral pode parecer esotérico. Inicialmente, o primeiro-ministro representa a maior aliança presente na Assembleia, independentemente de qualquer incompatibilidade ideológica com o presidente.
Essa aliança pode obter maioria absoluta, 289 deputados eleitos, o que facilita a governabilidade, caso dos primeiros-ministros do Macron entre 2017 e 2022, mas também pode ter uma maioria relativa, obrigando-o a compor alianças a cada projeto legislativo, ou a governar autoritariamente com recursos constitucionais (49-3, 47-1, etc.), até ser derrubado por nova aliança ou nova dissolução.
É provável que, nas condições político-eleitorais atuais na França, nenhuma aliança política consiga a maioria absoluta. A aliança reunida pelo RN passou nos últimos quatro dias de uma previsão de 280 assentos a cerca de 200. O partido do Macron passou de 85 assentos a 120.
E a Nova Frente Popular, contrariando qualquer prognóstico, passou de 145 a 180. Aposto (e espero) que essas tendências irão continuar neste sentido até domingo. Claro, nada exclui a possibilidade de o Rassemblement Nacional vencer, mas também a hipótese de uma vitória da esquerda unida ganha cada dia em materialidade nas intenções de voto.
O complexo xadrez do segundo turno
Tudo dependerá do comportamento eleitoral dos 33% de abstencionistas, bem como dos eleitores e eleitoras cujos candidatos não se qualificaram ao segundo turno. Essas eleições legislativas francesas, majoritárias e distritais, têm uma configuração institucional bem peculiar que não é simples de entender.
Caso um candidato chegue em 3º ou 4º lugar no primeiro turno, mas conseguir reunir os votos de 12,5% dos eleitores inscritos, ele poderá se manter na competição eleitoral de segundo turno, no domingo.
No total, 54% das circunscrições tinham possibilidade de eleições com mais de dois candidatos competindo: 306 “triangulares” (com três candidatos podendo competir) e até cinco “quadrangulares”. Frente à possibilidade da vitória eleitoral da extrema direita, a tradição republicana na França prevê que os candidatos menos bem colocados desistam da competição.
Os eleitores de esquerda já consolidaram essa tradição, desde o segundo turno da eleição presidencial entre Jacques Chirac e Jean-Marie Le Pen em 2002, permitindo a Chirac vencer por mais de 82% dos votos naquela ocasião.
Foi justamente Jean-Luc Mélenchon, líder da França Insubmissa, que alguns minutos depois do resultado do primeiro turno, dia 30 de junho, anunciou que os candidatos de seu partido desistiriam da competição sem condições prévias, caso a manutenção de seus candidatos no segundo turno significasse algum risco de eleger um deputado de extrema direita.
Ele foi seguido prontamente por todos os partidos da Nova Frente Popular. Do lado macronista, essa tradição foi parcialmente respeitada. Apesar do atual primeiro-ministro Gabriel Attal ter sido bastante claro, apelando para a desistência dos seus candidatos caso outro candidato de direita ou esquerda estivesse em maiores condições de vencer a extrema direita, alguns políticos macronistas recusaram a se retirar do pleito em benefício de um candidato da França Insubmissa.
A tradicional “Frente Republicana”, como sempre, foi muito mais respeitada pela esquerda de que pela direita. No final das contas, o segundo turno ainda contará com 94 “triangulares” (um quinto das circunscrições). Todavia, foram 217 desistências no total, isto é, 70% das “triangulares” inicialmente previstos não acontecerão, para tentar barrar a ascensão da extrema direita ao poder.
Dessas 217, foi a Nova Frente Popular que fez o maior esforço republicano, com 130 desistências que, provavelmente, levarão à vitória eleitoral de candidatos de direita macronista ou tradicional. Isto permitirá ao partido do Macron manter um bom número de deputados. De uma previsão de 70 ou 80 deputados na noite do primeiro turno, a coalizão macronista poderia finalmente chegar a 125 assentos na próxima Assembleia, graças aos votos dos eleitores de esquerda.
Do lado da esquerda, a disciplina eleitoral contra a extrema-direita é bastante alta, e deixa pouco lugar à incerteza na transferência de votos para candidatos de direita capazes de vencer a extrema-direita. Infelizmente, a transferência republicana dos votos de eleitores da direita para candidatos de esquerda contra o RN é muito mais incerta, e será uma chave central do resultado das eleições neste domingo 7 de julho.
Caso essa transferência seja maciça, e complementada por uma maior participação eleitoral dos abstencionistas a favor da Nova Frente Popular, o próximo primeiro-ministro francês será um homem ou uma mulher de esquerda. Caso os eleitores do Macron se recusarem a votar pelos candidatos da Nova Frente Popular, então o Macron chamará Jordan Bardella, o jovem presidente do RN, para compor um governo.
Agora, ainda resta a possibilidade de E. Macron convocar novas eleições legislativas a partir do 8 de julho de 2025, um ano antes das eleições municipais de 2026 e dois anos antes das eleições presidenciais de 2027. O quadro político na França, como podemos observar, está bastante indefinido.
2002 e o início desse capítulo da ruptura social francesa
Para entender “como a França chegou nesta situação”, temos de voltar pelo menos 22 anos atrás, em 2002. No seu discurso de vitória com 82% dos votos contra o pai de Marine Le Pen, na simbólica Praça da República em Paris, o dia 5 de maio desse ano, Jacques Chirac, que tinha diagnosticado uma ruptura social no país, anunciou ter ouvido e entendido o apelo dos Franceses “para que a República viva, para que a Nação se una, para que a política mude”.
Apesar de ter sido eleito por muitos eleitores de esquerda, Chirac fez uma política típica de direita, uma das mais duras jamais experimentadas na França até então, tanto economicamente quanto socialmente e penalmente, esquecendo de seu compromisso de união e de mudança, e estigmatizando imigrantes e residentes de periferia, que chegaram a incendiar o país em 2005.
Entre 2007 e 2012, o presidente Sarkozy acelerou as políticas antipopulares, implementando em parte o programa da então Frente Nacional de Marine Le Pen. Devido ao fracasso evidente desta política, o líder do Partido Socialista, François Hollande, se tornou presidente da República entre 2012 e 2017.
No entanto, apesar das promessas de “enfrentar o mundo das finanças”, Hollande implementou uma política de direita, com o auxílio de Macron como ministro das finanças e de Manuel Valls como ministro da nacionalidade e segurança.
Hollande negou o direito do solo, com cinco séculos de antiguidade, para o acesso à nacionalidade francesa, quebrou as leis trabalhistas protetivas, e negou por inteiro o mandato recebido dos eleitores de esquerda. Com a confusão criada por Hollande entre a esquerda e a direita, Macron, ex-banqueiro de Rothschild, apareceu como o homem novo, “nem de direita, nem de esquerda”.
Evidentemente, a política seguida por Macron foi de direita, quebrando ainda mais as leis trabalhistas, dificultando o acesso ao seguro-desemprego, desinvestindo na saúde pública e na educação pública, adiando a idade da aposentadoria, ignorando as demandas dos Franceses em relação ao poder de compra e ao Estado de Bem-Estar Social. Macron enfrentou duramente o movimento dos coletes amarelos entre 2018 e 2019, e ignorou e reprimiu o movimento contra a reforma da previdência em 2023.
A esse quadro de descrença jogado nos últimos 20 anos sobre os governos de direita, e o governo supostamente de esquerda do Hollande, podemos acrescentar um sentimento geral de descrença em relação às instituições francesas e europeias, cada vez mais consideradas antidemocráticas.
Por exemplo, o povo francês se lembra muito bem ter votado contra um projeto de constituição europeia em 2005, o qual foi promulgado pelos parlamentares franceses dois anos depois, sem consulta popular, sob a forma do Tratado de Lisboa. O povo francês se lembra que ele foi duramente reprimido nas suas demandas sociais e nas suas reivindicações por mais democracia durante os movimentos dos coletes amarelos e contra a reforma da previdência.
O povo francês tende a pensar, depois do governo do presidente socialista Hollande, que a “esquerda”, o centro macronista ou a direita de Sarkozy, fazem a mesma política antipopular. O Estado francês aparece como repressor, e nunca encarna uma ferramenta comum de justiça, igualdade e de seguridade. Evidentemente, isso desqualifica qualquer discurso de esquerda referente ao uso do Estado para o bem comum.
Nessas condições, o que resta ao povo francês senão votar pela extrema-direita? A ascensão do Rassemblement nacional, nessas condições, não pode nos surpreender. Uma vitória da extrema-direita neste domingo não seria mesmo uma surpresa, ainda mais porque ela tem sido amplamente apoiada pela mídia televisual francesa, toda ocupada a demonizar a esquerda de ruptura, personificada pela França Insubmissa e seu líder Mélenchon.
A mídia também normalizou o partido de Marine Le Pen, que não pretende mudar radicalmente o projeto político-governamental, já que é a própria política dela que tem sido implementada por Macron desde o fim da pandemia.
Resta apenas uma esperança para que, dia 14 de julho que vem, pelos 235 anos da Revolução Francesa, não tenhamos que amargar um governo fascista comemorando, o que equivaleria à negação completa do projeto revolucionário de Liberté-Égalité-Fraternité.
As chaves do palácio de Matignon estão nas mãos dos eleitores de direita, caso prefiram aderir ao projeto fascista do RN em vez de votar pela esquerda nas circunscrições onde seus candidatos foram alijados do segundo turno, e nas mãos dos abstencionistas, que podem deixar de votar se entregando ao destino.
Ao ouvir a mídia de massa, o RN já ganhou, mas quem sabe a França da Résistance não vença domingo uma nova França de Vichy de triste memória. A vitória da Nova Frente Popular abriria então nova fase para a causa popular, que teria uma chance ímpar, após 22 anos, de demonstrar o bem que faz, para um país, ter um governo que cuida e une, em vez de reprimir e dividir.
Sobre os autores
é professor de Ciência Política na Universidade Federal do Pará e conselheiro eleito da Assembleia dos Franceses do Estrangeiro e militante do movimento Franca Insubmissa e da Nova União Popular Ecológica e Social (Nupes), agora ampliada na forma da Nova Frente Popular.