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(Imagen de Sandro Mezzadra en Traficantes de Sueños (Madrid): foto de Irene Oliva Batanero)

Sem as lutas é impossível imaginar um sentido prático para a palavra comunismo

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O pensador e militante operaista italiano Sandro Mezzadra veio pela primeira vez a São Paulo, onde discutiu, sob as cinzas da gigantesca queimada que aturdiu o Brasil, temas como a crise da Europa, a reaparição do fascismo no mundo, e a emergência da China e do Sul Global na luta transicional para o comunismo.

UMA ENTREVISTA DE

Hugo Albuquerque

Professor da Universidade de Bolonha na Itália e com um intenso trânsito pela Europa e pelo mundo, Sandro Mezzadra é um dos expoentes da tradição do operaísmo italiano, que inclui figuras como Toni Negri, Michael Hardt e Mario Tronti. Nos últimos anos, ele tem se dedicado a decifrar as mudanças do capitalismo, sobretudo após a crise de 2008, se voltando também a temas como a migração e o trabalho metropolitano – sem perder de vista o horizonte comunista.

Embora já tenha vindo algumas vezes ao Brasil, Mezzadra nunca tinha estado em São Paulo antes, metrópole que identifica como um “organismo, ao mesmo tempo, enfermo e muito vivo”. Aqui, ele discutiu aquilo que ele define como “conjuntura de guerra” e abordou os impasses que giram em torno da crise climática – que se projeta sobre todos nós como um espectro sombrio e onipresente, exigindo respostas organizativas.

Em seus escritos mais recentes, o que inclui um ensaio em O renascimento de Marx (Autonomia Literária, 2023) Mezzadra enfoca a necessidade de um novo internacionalismo, que precisa operar dentro de uma nova ordem global marcada pelo deslocamento do Ocidente do seu protagonismo. Isso envolve as experimentações latino-americanas, mas também tem a ver com a ascensão da China e as experimentações pelo Sul Global.

Nesta conversa com a revista Jacobina, ocorrida na Casa do Povo, no cosmopolita bairro paulistano do Bom Retiro, se deu enquanto as cinzas da Amazônia e do Cerrado, recém-vítimas de uma mega queimada, poluíam os ares da cidade. Nela, Mezzadra abordou muitos dos problemas que atravessam a Europa como o fascismo, a OTAN, mas também abordou as transforções na China, sempre pelo viés das lutas e suas possibilidades, assim como a questão da transição ao comunismo.


HA

Quais suas primeiras impressões e olhares sobre o Brasil neste momento, neste mundo em guerra e às voltas com um apocalipse climático? Qual é sua percepção de visitar uma cidade como São Paulo, que neste exato momento está, literalmente, sob as cinzas da destruição da Amazônia?

SM

Bem, não é a primeira vez que eu viajo ao Brasil. Nos últimos 15 anos, viajei bastante pela América Latina e, assim, assumi uma perspectiva específica e que é muito importante para mim, porque aqui faz parte do meu trabalho teórico e das minhas reflexões políticas. Aqui há uma dimensão que se sobressai no processo de organização entre os espaços regionais no mundo. A América Latina nos últimos anos tem sido uma região onde se desenvolveu um movimento social com lutas muito originais, mirando articular a política em nível regional. 

Naturalmente, estou muito impressionado com São Paulo. É a primeira vez que viajo para cá, e eu tenho a impressão de estar em um organismo, ao mesmo tempo, enfermo e muito vivo. É um paradoxo, é óbvio – mas é um paradoxo que diz muito sobre a situação do mundo neste momento que se vê de maneira muito clara nesta cidade. Isso tem muito a ver com as mudanças climáticas. 

Você mencionou a Amazônia, o que sem dúvida é muito importante, mas a vitalidade daqui nos dá a possibilidade de construir mundos alternativos dentro desta temporalidade marcada pela enfermidade climática. Mas também há a desigualdade e a injustiça social e tudo mais que se pode ver, imediatamente, passeando por este bairro [Bom Retiro].

HA

Sobre a Europa, a guerra e as tensões sobre a Rússia, muitas vezes os partidos social-democratas normalizam a presença da Organização do Tratado do Atlântico Norte (OTAN).  E muitas vezes também, os mesmos que falam da Ucrânia são aqueles que estão contra os palestinos…

SM

Eu diria que há uma conjuntura de guerra. Você mencionou a Ucrânia. Evidentemente, para a Europa, a guerra na Ucrânia tem sido um desastre. Esse evento desafiou a própria Constituição da União Europeia. Se pensarmos sobre a posição que tem hoje a Alemanha, vemos que ela é muito débil do ponto de vista econômico e isso tem a ver com essa guerra. Mas a França também vive uma crise política e econômica muito profunda – e França e Alemanha são, historicamente, o eixo de integração europeia, que hoje em dia está fraturado. 

Por outro lado, há uma guerra em Gaza e há uma concatenação dessas duas guerras – e a guerra é um assunto onipresente na Europa neste momento. É claro, o tema da Otan é chave. Principalmente, porque o significado da guerra na Ucrânia para a Europa passa, hoje, pela submissão da política externa da União Europeia à Otan – o que significa uma submissão da Europa aos Estados Unidos, que se acelerou nos últimos dois anos por meio da Otan.

Assim, hoje em dia uma perspectiva de autonomia estratégica da Europa, como antes dizia Emmanuel Macron, não é mais possível. É preciso fazer um movimento contra a guerra para romper essa situação. A saída da Otan é muito importante, mas ao mesmo tempo muito difícil. Mas do ponto de vista político, esse deve ser o horizonte.

HA

No Brasil, historicamente olhamos muito para a França, mas não muito para a Alemanha, onde há um grande crescimento da extrema direita, cujos dirigentes muitas vezes vieram da juventude ou de quadros intelectuais da Democracia Cristã. Na própria questão francesa, Macron antes era um tipo liberal que, pelo menos, combatia a extrema direita, mas hoje ele está formando um gabinete de ministros junto com ela. Então, o fascismo que hoje emerge na Europa não está nela em potência?

SM

Bom, vamos começar pela França. Quando se vê a possibilidade de crescimento da esquerda, a burguesia se une. O que se opera hoje é um esquema clássico, no contexto de uma crise muito profunda do projeto do bloco burguês – da própria possibilidade da política burguesa – na França. Isso ocorre dentro de uma situação em que a esquerda está crescendo, apesar de ter muitas diferenças e problemas, mas conseguiu formar a Nova Frente Popular (NFP), tornando a extrema direita uma opção na Assembleia Nacional para o bloco burguês.

A esquerda na França cresce, porque ela tem sido uma exceção na Europa nos últimos anos, com uma proliferação de lutas e movimentos sociais. Isso tem um marco que foi o movimento contra a reforma trabalhista francesa em 2016, chegando a luta contra a reforma previdenciária de 2023. Assim, houve uma acumulação de forças em razão dessas lutas, com a disponibilidade de lutas e mobilização. 

Creio que o ponto mais importante disso é, justamente, manter aberta uma dialética entre esse tipo de mobilização, movimentos, lutas e comportamentos de insubmissão por um lado, mas com a política dos partidos de esquerda por outro lado. Se a NFP conseguir fazer isso nos próximos meses, poderemos ver algo interessante acontecer na França nos próximos meses, não?

Agora, passemos a Alemanha, que é um caso bem diferente. Quando você diz que muitos dirigentes da extrema direita alemã vieram da Democracia Cristã, é preciso entender o que se passou na Alemanha nos últimos 30 anos. Primeiramente, a linha majoritária dos partidos de massa é, ainda, não colaborar com a extrema direita, embora ocorram exceções regionais. No entanto, há uma crise do modelo econômico alemão e muito tem a ver com a conjuntura de guerra em curso.

Então, passamos pelas relações da Alemanha com a Rússia, mas também com a questão do intercâmbio comercial e de investimentos com a China – que está imersa em tensões geopolíticas com os Estados Unidos. Esses eram os dois pilares da economia alemã nos últimos anos. Houve, portanto, uma ruptura do modelo econômico alemão. 

No contexto dessa conjuntura de guerra, há o tema do antissemitismo, que na Alemanha é algo impressionante por razões históricas, mas que hoje está sendo operacionalizado como acusação contra qualquer pessoa que critique o governo de Benjamin Netanyahu em Israel. É quase impossível organizar uma marcha em solidariedade de Gaza hoje na Alemanha.

Essa é a imagem das sociedades francesa e alemã hoje: marcadas pelo medo e paralisadas. Seja pela dinâmica econômica ou política. E estamos falando dos dois países mais importantes da Europa hoje, os dois motores da integração europeia, o que implica no futuro da própria União Europeia.

HA

No que envolve a questão alemã, ainda temos o legado da antiga Alemanha Oriental. As recentes eleições estaduais de lá ocorrem em lugares que fizeram parte do antigo Estado socialista: Turíngia, Saxônia e Brandemburgo, onde as pessoas votavam pela Democracia Cristã ou pela Social Democracia – e até pela esquerda radical – após a chamada “reunificação”, mas agora estão cada vez mais votando na extrema direita, talvez por se sentirem traídas.

SM

Quando falamos da antiga Alemanha Oriental, estamos tratando de regiões grandes para os padrões europeus e, também, muito heterogêneas. Se olharmos para as cidades, temos uma situação muito diferente do que se passa no interior – e a esquerda foi bem nas cidades, apesar do crescimento geral da extrema direita. Mas sim, podemos dizer que há uma sensação de traição muito difundida em todas as partes.

Essa traição se estrutura no fato de que não há perspectiva de futuro. Assim como o tema russo é sentido mais agudamente no que foi parte da Alemanha Oriental do que no resto da Alemanha, inclusive por uma questão de proximidade geográfica. Mas tudo isso passa pelo descumprimento de uma promessa. Se olharmos para os dados econômicos, seja de salários e empregos, constatamos que há uma diferença muito grande entre o que foi a Alemanha Oriental e o resto da Alemanha. Assim, fica claro a questão da traição, somada às outras crises que mencionamos.

HA

O que você pensa do racha do Linke, o partido da esquerda radical alemã?

SM

Não vejo isso com bons olhos. Na Alemanha, existe uma larga tradição de nacionalismo na esquerda socialista e isso é perigoso. Então, combinar políticas sociais de esquerda com políticas migratórias de direita me parece problemático – e isso por várias razões, a primeira é que  o tema da migração é chave para qualquer intenção de reimaginar e reorganizar a esquerda, mas também porque para mim não funciona a ideia de que há uma oposição entre o tema classe de um lado e direitos civis do outro.

Essa racha começou há dez anos, quando Sarah Wagenknecht disse que o Linke abandonou a classe operária e se converteu em partido liberal, por focar em temas como direitos das mulheres, dos imigrantes, de minorias sexuais etc. Eu creio que hoje em dia em qualquer cidade, em qualquer metrópoles, não somente em São Paulo, mas também em Leipzig e Dresden, os temas dos direitos se cruzam com a composição de classes, do trabalho… 

HA

No Brasil, historicamente, se olha para a Europa e para os demais países ricos para se pensar não só o “desenvolvimento”, mas, também, uma transformação social de ruptura. Só que sempre houve uma esquerda que olha para o Oriente ou para o antigo Terceiro Mundo, embora nunca tenha sido majoritária, nem mesmo agora, mas hoje ela é que tem mais esperança. E isso envolve a África, a China, para além das institucionalidades, como um movimento transversal que se projeta dali e atravessa o mundo. O que você pensa dessas possibilidades?

SM

É uma pergunta fundamental e acabo de publicar um livro com um companheiro australiano, Brett Nielson, cujo título é The Rest and West [O Resto e o Ocidente]. E haverá um capítulo, por coincidência, com a resposta que elaboramos para essa sua pergunta. 

Podemos desenvolver um novo olhar, digamos, internacionalista, desafiando a rigidez das divisões entre Norte e Sul globais. Uma nova linguagem para uma política de libertação capaz de conectar lutas, movimentos em lugares distintos, sem negar a especificidade de cada movimento para construir um marco comum.

Esse livro que eu coescrevi se chama assim porque, já há muito tempo, existe uma fórmula que circula no mundo de língua inglesa que é o inverso disso, isto é, The West and the Rest [O Ocidente e o Resto]. Então, nós retomamos o tema, invertendo essa fórmula, porque a tese do nosso trabalho é, justamente, que hoje em dia somos confrontados com um deslocamento da Europa e de todo o Ocidente da centralidade do mundo – e temos de refletir sobre isso.

Temos que pensar sobre isso na Europa. Eu vivo na Europa, então vivo isso, mas temos que pensar sobre isso ocorre também na África, como se dá esse deslocamento da Europa e do Ocidente. Isso representa perigos, também porque a situação de guerra em que vivemos faz parte deste deslocamento, mas isso também abre oportunidades, possibilidades de conexões como as que você mencionou. 

Temos de ver isso para além de regimes políticos e pensar isso em termos sociais e políticos. A China hoje é um país, que em termos simples, é muito interessante de ler para além da política do regime – que, no entanto, pode ter aspectos interessantes. 

Mas não temos de ajudar os regimes sem olhar para suas dinâmicas sociais e políticas. Temos de fugir a uma tendência política que se pode chamar de “campismo” – e creio que o melhor exemplo disso é a República Islâmica do Irã, que é vista como parte de um campo anti-imperialista porque tem um conflito com Israel e  com Estados Unidos.

Sim, temos de considerar isso como parte da conjuntura. Há que se ter em conta esse conflito, mas ao mesmo tempo, não podemos esquecer o que é a República Islâmica do Irã: ela não pode ser nosso modelo político, podemos dizer isso de maneira simples. Isso é o que nos lembra os milhares de exilados políticos iranianos de esquerda.

HA

Mas há uma contradição muito perturbadora, a qual é o antagonismo do sistema global contra o Irã. Como podemos elaborar uma linha de fuga para essa contradição, para não nos paralisarmos com ela?

SM

É uma pergunta chave. Não é fácil apresentar uma resposta de maneira abstrata. Sim, claro, mas para mim o ponto é justamente articular um, digamos assim, duplo olhar: por um lado há que se ter em conta os conflitos que formam parte da conjuntura em que vivemos, mas sem perder isso de vista, por outro há que se olhar mais além dos Estados. No caso do Irã há uma diáspora em Paris que é anti-imperialista, comunista e está na primeira linha da solidariedade com Gaza ao mesmo tempo que denuncia o regime iraniano.

HA

A China é um tema muito recorrente no Brasil de hoje. Ela é a maior parceira comercial do Brasil como, ainda, existe uma enorme comunidade chinesa aqui em São Paulo, mas se compreende muito pouco a respeito dela, por isso desperta muita curiosidade. A China é um continente e o Partido Comunista de lá tem quase cem milhões de militantes, e embora se possa apontar várias questões em torno dele, ele mostra capacidade de se adaptar às novas situações e produzir novas políticas. O que podemos aprender com essa capacidade, com essa flexibilidade?

SM

É outra boa pergunta. A China me interessa muito e já viajei para lá várias vezes, tenho relações lá, já organizei seminários e posso começar pelo que você dizia sobre o partido. Temos de considerar que com a chegada de Xi Jinping ao poder, o Partido volta ao centro das dinâmicas sociais e políticas da China. Antes, havia uma situação um pouco distinta. E essa mudança de liderança está vinculada a mudanças no modelo de desenvolvimento da China.

Até o final da década de 2000, a China era, em termos vulgares, a fábrica do mundo. Mas naquele período irromperam uma série de greves, a começar pela que aconteceu na fábrica da Honda em Foshan com quase um milhão de operários, algo impressionante. Mas temos de nos lembrar que isso vem na esteira da crise mundial de 2008, e como nesse contexto de crise e greves a China apresentou respostas.  Há lutas sociais na China inclusive envolvendo entregadores de aplicativo, no que não é diferente de cidades como Bolonha ou São Paulo, embora tenha suas peculiaridades.

Isso leva a uma mudança no modelo de desenvolvimento chinês. Sim, a China ainda tem muitas fábricas, mas o modelo hoje se volta mais ao mercado interno, dentro do sistema da Dupla Circulação e na ambição de assumir a liderança mundial em tecnologias digitais, inteligência artificial. Isso foi positivo. Mas isso é só o início de uma reflexão sobre as transformações profundas de um país como a China.

HA

Um último recado: o que podemos dizer sobre o futuro do comunismo?

SM

Estamos vivendo uma conjuntura muito complicada, muito pesada: crise climática, guerra. Eu creio que para imaginar o futuro do socialismo e do comunismo a referência fundamental segue sendo o desenvolvimento das lutas sociais. Para mim é o método fundamental. 

Eu me defino como um comunista, mas levo em conta que sem as lutas sociais é impossível imaginar um sentido prático para a palavra comunismo, pois ela não tem um sentido trans-histórico. Bom, é claro, ela se refere a uma história, mas também havemos que inventá-la cada vez de maneira nova. Assim, temos que olhar as lutas que se produzem em distintos territórios, sobre diversos temas para a imaginar a possibilidade de uma transição ao comunismo.

Enfatizando um pouco essa referência das lutas sociais, por exemplo, vemos que hoje há gente que trabalha sobre o tema da crise ecológica, imaginando uma saída socialista tecnocrática, mas aí eu volto ao que dizia inicialmente: São Paulo é um organismo, ao mesmo tempo, enfermo e muito vivo. Temos que trabalhar na dimensão da vida para reinventar temas de transformação para além do capital.

Sobre os autores

é publisher da Jacobin Brasil, editor da Autonomia Literária, mestre em direito pela PUC-SP, advogado e diretor do Instituto Humanidade, Direitos e Democracia (IHUDD).

Sandro Mezzadra

é militante comunista, da tradição do operaísmo italiano. Atualmente é professor de teoria política na Universidade de Bolonha, do Instituto de Cultura e Sociedade da Western Sydney University e do Centro de Pesquisa e Desenvolvimento Cultural da Lingnan University, Hong Kong. Seu trabalho recente se concentrou nas relações entre globalização, migração e capitalismo, no capitalismo contemporâneo, bem como na crítica pós-colonial. É autor de diversos livros, inclusive de um ensaio para a coletânea O renascimento de Marx (Autonomia Literária, 2023).

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Published in América do Sul, Entrevista, Europa, História, Livros and Teoria

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