Décadas após o período intenso da “segunda onda” do feminismo nos Estados Unidos, é angustiante reconhecer que o momento revolucionário do movimento se trata de uma memória turva, enquanto que aspectos-chave do feminismo liberal foram incorporados à agenda da classe dominante. Idéias do feminismo liberal têm sido mobilizadas para dar suporte a uma série de iniciativas neoliberais, incluindo austeridade, guerra imperialista e ajuste estrutural.
Sem dúvida, é importante entender como isso ocorreu, mas algumas explicações recentes por estudiosas e estudiosos feministas nos apontam para uma direção infeliz. Essas autoras e autores argumentam que o feminismo da segunda onda, com sua ênfase exagerada em direitos legais e no trabalho assalariado como um caminho para a igualdade, mesmo sem querer acabou pavimentando o caminho para o neoliberalismo. É reconfortante pensar que feministas radicais tinham esse nível de controle sobre o resultado de nossas lutas – pois, se fosse verdade, poderíamos agora corrigir nossos erros, mudar nossas idéias e recuperar nossa posição revolucionária.
Pretendo trazer um argumento diferente: a incorporação parcial do feminismo liberal na ordem econômica, política, cultural e social neoliberal é melhor explicada pelo surgimento de um regime de acumulação de capital que reestruturou os fundamentos das economias tanto no norte global quanto no sul.
No norte global, esse novo regime foi introduzido pela investida dos patrões contra a classe trabalhadora, o Estado de Bem-Estar Social e as instituições históricas de defesa da classe trabalhadora – os sindicatos e os partidos social-democratas. Esse ataque acarretou no neoliberalismo, o contexto político da revanche bem sucedida contra as demandas radicais de feministas, ativistas anti-racistas, povos indígenas e outros.
Embora o neoliberalismo tenha extinguido a promessa radical da segunda onda feminista, ele também criou a base material para a renovação e disseminação de movimentos feministas socialistas liderados por mulheres da classe trabalhadora – estejam elas empregadas na economia formal ou informal, no campo, ou fazendo trabalho não remunerado.
Além disso, os discursos políticos e as estratégias de organização do feminismo socialista do século XXI são um recurso importante para uma esquerda em dificuldades. Muitos têm a sensação de que as velhas formas de política de esquerda não serão o bastante; nesta busca por alternativas, o feminismo socialista tem muito a oferecer.
O discurso político feminista dominante na segunda onda não era o feminismo liberal-clássico – isto é, um feminismo que deseja eliminar quaisquer impedimentos ao exercício dos direitos individuais das mulheres -, mas sim o que eu chamaria de feminismo do bem-estar social. (Fora dos EUA, onde havia verdadeiros partidos de esquerda e onde discursos políticos socialistas eram mais acessíveis para militantes feministas, essa política poderia ser chamada de feminismo social-democrata.)
As feministas do bem-estar social compartilham o compromisso do feminismo liberal com os direitos individuais e a igualdade de oportunidades, mas vão muito além disso. Elas buscam um Estado expansivo e militante que aborde os problemas das mulheres trabalhadoras; que alivie o fardo da dupla jornada feminina; que melhore a posição das mulheres e especialmente das mães no mercado de trabalho; que forneça serviços públicos que socializem o trabalho de cuidados das crianças, idosos e outros membros da família; e que expanda a responsabilidade social por esse cuidado (por exemplo, através da licença maternidade/paternidade remunerada e de remuneração para as mulheres que cuidam de pessoas com deficiência na família).
As mulheres na ponta rica da classe profissional/administrativa são a base social do feminismo liberal-clássico. A política feminista do bem-estar social encontra sua base social predominantemente na outra ponta da classe administrativa profissional, especialmente entre mulheres empregadas nos setores de educação, serviço social e saúde. Profissionais/administradoras não-brancas estão mais propensas a ser empregadas nessas indústrias do que no setor privado. As militantes sindicais também desempenharam um papel significativo na liderança e na organização do feminismo do bem-estar social.
Se formos generosos, podemos caracterizar como ambíguas as relações entre as mulheres da classe trabalhadora/pobres e as profissionais de classe média cujo trabalho é influenciar e regular aqueles que vem a ser definidos como problemáticos – os pobres, os doentes, os que não se encaixam culturalmente, os sexualmente divergentes, aqueles que tiveram pouco acesso à educação. Essas tensões de classe vazam para a política feminista, conforme militantes feministas da classe média afirmam representar as mulheres da classe trabalhadora.
A forma como essas tensões de classe se expressam é condicionada consideravelmente por outras dimensões de localização de classe, como raça/etnia, sexualidade, nacionalidade e condições físicas/mentais. De maneira crucial, a política das feministas de classe média também se transforma dependendo dos níveis de militância, auto-organização e de força política das mulheres nas classes trabalhadoras.
Um exemplo fascinante dessa dinâmica pode ser visto na primeira metade dos anos 70. No contexto político da luta dos negros e negras por justiça econômica, impulsionada pela classe trabalhadora negra e pelo movimento dos direitos sociais – a vanguarda feminista da classe trabalhadora no Movimento dos Direitos Civis – as feministas do bem-estar social adotaram um programa visionário e de base ampla pela expansão do suporte estatal para o trabalho de cuidados.
Por exemplo, em 1971, uma coalizão de organizações feministas e de direitos civis conquistou uma lei que estabeleceria a creche como um serviço de desenvolvimento financiado pelo governo federal, disponível para todas as crianças que precisassem dele. Embora as feministas, sem dúvida, considerassem essa lei como algo crucial para o emprego das mães, elas não limitavam o benefício apenas às mães assalariadas. O programa incluía provisões para serviços médicos, nutricionais e educacionais para crianças desde a infância até os catorze anos de idade, e os preços dos serviços deveriam ser baseados na capacidade de pagar das pessoas atendidas. O presidente Nixon vetou o projeto, mas a organização em torno dele continuou durante toda a década de 1970.
A Organização Nacional dos Direitos do Bem-Estar Social (NWRO) impulsionava e difundia a política do feminismo do bem-estar social. O que é mais interessante sobre a NWRO era sua capacidade de combinar alegações que filósofos, advogados e acadêmicos tendem a ver como concorrentes entre si. Em suma, elas quebravam a distinção entre conversas sobre “necessidades” e sobre “direitos”.
Discursos políticos maternalistas são exemplos por excelência de “conversas sobre necessidades”: neles, a defesa das propostas é feita com base nas necessidades das crianças e na habilidade única das mães para satisfazer essas necessidades. Por outro lado, a demanda por práticas de empregabilidade sem discriminação por gênero, ou o acesso igualitário à educação profissional são “conversas sobre direitos” por excelência, insistindo na extensão para as mulheres de direitos individuais que já são concedidos aos homens.
A NWRO defendia uma renda mínima garantida e incondicional para mães solteiras. As mulheres pobres deveriam poder escolher como educar seus filhos e ter a certeza de que elas seriam as únicas autoridades apropriadas para definir as necessidades deles. Elas deveriam receber apoio econômico e de serviços sociais, fossem elas mães donas de casa ou se trabalhassem fora.
As ativistas dos direitos de bem-estar social também criticavam os programas de empregos da “guerra contra a pobreza” por encaminharem mães solteiras para treinamento para empregos tradicionalmente femininos, mal pagos e de colarinho rosa (ou seja, relacionados com cuidados). Por fim, elas amarravam a sua exigência de que a maternidade seja reconhecida como um trabalho valioso à autonomia econômica das mulheres e ao seu direito à autodeterminação.
Essa política de “direitos mais necessidades” também se refletia na objeção das mulheres não-brancas ao movimento pró-escolha. Enquanto as alas radicais e liberais do movimento feminista se concentravam nos direitos das mulheres à sua autonomia corporal – e no seu direito de recusar a maternidade -, as mulheres pobres não-brancas enfrentavam um ataque bem diferente: a esterilização forçada nos hospitais públicos onde elas davam à luz. Além disso, o movimento pelos direitos de bem-estar social estava organizando as mulheres pobres, e especialmente as mulheres negras, para desafiar a difamação de sua maternidade e a estigmatização de sua sexualidade.
Incorporando as idéias das militantes não-brancas da classe trabalhadora, as feministas socialistas articularam uma política sobre direitos reprodutivos que ultrapassava a linguagem sobre escolha. Para elas, os “direitos reprodutivos” incluíam o direito de ser mãe e de criar filhos com dignidade e saúde, em bairros seguros, com renda e abrigo adequados.
Essa variedade de direitos reprodutivos constitui um programa de “reformas não-reformistas”. É possível lutar por algumas dessas demandas e conquistá-las sob o capitalismo – por exemplo, a proibição da esterilização racista ou da discriminação contra mães lésbicas -, mas sua adoção por completo seria incompatível com esse sistema. Nesse sentido, o discurso político dos direitos reprodutivos relaciona o feminismo à política anticapitalista.
No auge, o feminismo da segunda onda defendia a socialização do trabalho de cuidados. Transferir os cuidados de um modelo individual para outro baseado na responsabilidade social exigia na época (e exigiria hoje) uma redistribuição de riqueza do capital para os trabalhadores.
A responsabilidade social pelos cuidados depende da expansão dos bens públicos, o que, por sua vez, depende da tributação da riqueza ou dos lucros. Compensar os trabalhadores pelo tempo gasto cuidando dos filhos (por exemplo, através de licença maternidade/paternidade remunerada) aumenta os benefícios pagos, às custas dos lucros. Além disso, exigir (seja por legislação ou por contrato) que os locais de trabalho acomodem e subsidiem o trabalho de cuidados dos seus funcionários fora do emprego interfere no controle dos empregadores sobre o local de trabalho e tende a sofrer resistência pelo setor privado – onde os empregos continuam organizados como se os trabalhadores quase não tivessem responsabilidades em relação a cuidados dos filhos e familiares.
Em outras palavras, socializar o trabalho de cuidados exigiria confrontar o poder da classe capitalista. Foi aí que o feminismo do bem-estar social do século XX naufragou.
Confrontar o poder da classe capitalista exigiria um movimento social amplo, militante e ousado – uma frente anticapitalista que ligasse as lutas do feminismo, dos militantes anti-racismo, pelos direitos dos homossexuais e dos imigrantes às lutas dos sindicatos e dos trabalhadores. Em vez disso, o que havia eram sindicatos burocráticos, esclerosados e setoriais que não tinham nem interesse nem capacidade de construir movimentos de qualquer tipo.
No exato momento em que o feminismo do bem-estar social estava mais forte, na década de 1970, chegou o tsunami da reestruturação capitalista, inaugurando uma nova era de ataques a uma classe trabalhadora que tinha poucos meios para se defender. À medida que as pessoas se viravam para sobreviver nessa nova ordem mundial; à medida que as capacidades e solidariedades coletivas se tornavam algo cada vez mais distante; à medida que a concorrência e a insegurança nos empregos aumentavam; à medida que os projetos de sobrevivência individualista se tornavam a ordem do dia, abria-se a porta para que as ideias políticas neoliberais conquistassem a hegemonia.
Presas entre uma classe trabalhadora desmobilizada e um partido democrata tomado pelo neoliberalismo, as feministas do bem-estar social na classe média estadunidense começaram a se acomodar às realidades políticas existentes. Por exemplo, deixando para trás a política de “direitos mais necessidades” da NWRO, as ativistas de classe média se distanciaram de discursos maternalistas – do tipo “crianças pequenas precisam estar com suas mães” – que, embora fossem problemáticos, faziam parte de sua defesa do apoio financeiro para mães solteiras.
Elas passaram a adotar discursos neoliberais diante das acusações de ambos os grandes partidos estadunidenses de que o Estado de Bem-Estar Social encorajaria a dependência. Elas abraçaram a ideia da auto-suficiência através do trabalho remunerado, embora estivesse bem óbvio que os empregos precários e mal pagos disponíveis para tantas mães solteiras nunca pagariam um salário digno; que os auxílios financeiros para creche fornecidos (às mulheres mais pobres) eram inadequados para cuidados infantis de qualidade; e que os programas pós-escolares para crianças mais velhas eram inacessíveis para a maioria.
Em outras palavras, o feminismo do bem-estar social da segunda onda não foi tanto cooptado, mas sim politicamente marginalizado. E, o que não surpreende, no contexto dessa derrota a política feminista liberal não apenas se deslocou para o centro do palco, como também foi incorporada a um regime neoliberal cada vez mais hegemônico.
Ironicamente, enquanto as vozes da classe média se moviam para a direita, as feministas da classe trabalhadora, especialmente em sindicatos constituídos majoritariamente por mulheres, estavam obtendo ganhos substanciais. Elas aumentaram a representação das mulheres na liderança; pressionaram seus sindicatos a apoiar mobilizações políticas defendendo o aborto legal (por exemplo, a campanha “pró-sindicato e pró-escolha” da Coalizão das Mulheres Sindicalizadas); se opuseram à discriminação contra pessoas LGBT e colocaram na agenda de negociações demandas como igualdade salarial e licença maternidade remunerada. No entanto, esses últimos ganhos soavam vazios conforme os sindicatos rapidamente perdiam espaço, inclusive nas mesas de negociações.
A história acima é instrutiva. O feminismo e outros movimentos contra a opressão precisam ser movimentos inter-classes, então eles também precisam se questionar sobre “quem terá hegemonia dentro desses movimentos?” Quais visões de mundo determinarão o que o movimento vai exigir? Como essas demandas serão articuladas e justificadas? Como o movimento em si está organizado?
No curso normal dos acontecimentos, a resposta a essas perguntas é a classe média. No entanto, como no momento da radicalização da segunda onda feminista nos EUA, quando as pessoas da classe trabalhadora entram no palco político, as relações de poder dentro dos movimentos sociais podem mudar.
No século XXI, as mulheres têm entrado no cenário político global numa assombrosa variedade de movimentos. No sul global, conforme as mulheres se vêem demitidas, em empregos precários, chefiando seus lares, lutando para sobreviver em assentamentos informais e favelas urbanas, elas não são apenas participantes fundamentais para os movimentos pelo socialismo do século XXI, mas também estão construindo projetos de organização de base que desafiam os modelos patriarcais de organização, liderança e de exigências nos movimentos.
No norte global, esses projetos de base têm engajado as trabalhadoras em novos modos de organização (como o movimento das trabalhadoras domésticas) que se apoiam na mobilização de membros e na construção de alianças comunitárias. Embora nunca sejam perfeitos, é claro, esses diferentes projetos feministas-socialistas, no norte e no sul, na comunidade e no local de trabalho, no que tem de melhor oferecem novos discursos sobre igualdade de gênero, novos modos de organização e novas visões sobre democracia participativa.
O compromisso das feministas socialistas com a auto-organização dá suporte para estruturas organizacionais não-hierárquicas e democráticas e, portanto, mais inclusivas. A atenção à interseccionalidade como um guia tanto para o discurso programático quanto para o discurso político – as demandas que os movimentos apresentam e a linguagem que usamos para apoiar essas demandas – abre um terreno no qual profundas divisões sociais podem ser superadas, ao invés de reproduzidas.
Compreender as formas pelas quais os locais de trabalho, as famílias e as comunidades estão inter-relacionados leva a modos mais efetivos de organização e mais possibilidades de políticas de coalizão, fazendo conexões entre aquilo que muitas vezes é visto como questões e lutas muito diferentes e separadas.
Visões feministas-socialistas sobre liderança e seu desenvolvimento promovem as capacidades das militantes para o envolvimento na tomada democrática de decisões e na coletividade. O reconhecimento de que afeto, emoções e sexualidade estão sempre presentes, moldando as relações sociais, estimula a autorreflexão, a empatia e o respeito das militantes por diferentes modos de ser no mundo.
Se quisermos construir um socialismo do século XXI, é hora de prestar atenção no feminismo socialista dos séculos XX e XXI, e de deslocar sua teoria e prática das margens para o centro da esquerda radical.
Sobre os autores
é socióloga pela Universidad Nacional Mayor de San Marcos (Lima).
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