Trecho do livro Calibã e a Bruxa (Elefante, 2017).
A caça às bruxas raramente aparece na história do proletariado. Até hoje, continua sendo um dos fenômenos menos estudados na história da Europa ou, talvez, da história mundial, se consideramos que a acusação de adoração ao demônio foi levada ao Novo Mundo pelos missionários e conquistadores como uma ferramenta para a subjugação das populações locais.
O fato de que a maior parte das vítimas na Europa tenham sido mulheres camponesas talvez possa explicar o motivo da indiferença dos historiadores com relação a tal genocídio; uma indiferença que beira a cumplicidade, já que a eliminação das bruxas das páginas da história contribuiu para banalizar sua eliminação física na fogueira, sugerindo que foi um fenômeno com um significado menor, quando não uma questão de folclore.
Inclusive, os estudiosos da caça às bruxas (no passado eram quase exclusivamente homens) foram frequentemente dignos herdeiros dos demonólogos do século XVI. Ainda que deplorassem o extermínio das bruxas, muitos insistiram em retratá-las como tolas miseráveis que sofriam com alucinações. Desta maneira, sua perseguição poderia ser explicada como um processo de “terapia social” que serviu para reforçar a coesão amistosa, ou poderia ser descrita em termos médicos como um “pânico”, uma “loucura”, uma “epidemia”, todas caracterizações que tiram a culpa dos caçadores das bruxas e despolitizam seus crimes.
As feministas reconheceram rapidamente que centenas de milhares de mulheres não poderiam ter sido massacradas e submetidas às torturas mais cruéis se não tivessem proposto um desafio à estrutura de poder. Também se deram conta de que essa guerra contra as mulheres, que se manteve durante um período de pelo menos dois séculos, constituiu um ponto decisivo na história das mulheres na Europa, o “pecado original” no processo de degradação social que as mulheres sofreram com a chegada do capitalismo, o que o conforma, portanto, como um fenômeno ao qual devemos retornar de forma reiterada se quisermos compreender a misoginia que ainda caracteriza a prática institucional e as relações entre homens e mulheres.
Ao contrário das feministas, os historiadores marxistas, salvo raras exceções — inclusive quando se dedicaram ao estudo da “transição ao capitalismo” —, relegaram a caça às bruxas ao esquecimento, como se carecesse de relevância para a história da luta de classes. As dimensões do massacre deveriam, entretanto, ter levantado algumas suspeitas: em menos de dois séculos, centenas de milhares de mulheres foram queimadas, enforcadas e torturadas.
Deveria parecer significativo o fato de a caça às bruxas ter sido contemporânea ao processo de colonização e extermínio das populações do Novo Mundo, aos cercamentos ingleses, ao começo do tráfico de escravos, à promulgação das Leis Sangrentas contra vagabundos e mendigos, e de ter chegado a seu ponto culminante no interregno entre o fim do feudalismo e a “decolagem” capitalista, quando os camponeses na Europa alcançaram o ponto máximo do seu poder, ao mesmo tempo que sofreram a maior derrota da sua história. Até agora, no entanto, este aspecto da acumulação primitiva tem permanecido como um verdadeiro mistério.
A época de queima de bruxas e a iniciativa estatal
O que ainda não foi reconhecido é que a caça às bruxas constituiu um dos acontecimentos mais importantes do desenvolvimento da sociedade capitalista e da formação do proletariado moderno. Isso porque o desencadeamento de uma campanha de terror contra as mulheres, não igualada por nenhuma outra perseguição, debilitou a capacidade de resistência do campesinato europeu frente ao ataque lançado pela aristocracia latifundiária e pelo Estado, em uma época na qual a comunidade camponesa já começava a se desintegrar sob o impacto combinado da privatização da terra, do aumento dos impostos e da extensão do controle estatal sobre todos os aspectos da vida social.
A caça às bruxas aprofundou divisões entre mulheres e homens, ensinando os homens a temer a força das mulheres, e destruiu um universo de práticas, crenças e sujeitos sociais cuja existência era incompatível com a disciplina capitalista do trabalho, redefinindo assim os principais elementos da reprodução social.
Ao contrário da visão propagada pelo Iluminismo, a caça às bruxas não foi a última fagulha de um mundo feudal agonizante. Foi depois de meados do século XVI, nas mesmas décadas em que os conquistadores espanhóis subjugaram as populações americanas, que começou a aumentar a quantidade de mulheres julgadas como bruxas. Além disso, a iniciativa da perseguição passou da Inquisição às cortes seculares. A caça às bruxas alcançou seu ápice entre 1580 e 1630, ou seja, numa época em que as relações feudais já estavam dando lugar às instituições econômicas e políticas típicas do capitalismo mercantil. Foi neste longo “Século de Ferro” que, quase que por meio de um acordo tácito entre países que frequentemente estavam em guerra entre si, se multiplicaram as fogueiras, ao passo que o Estado começou a denunciar a existência de bruxas e a tomar a iniciativa de persegui-las.
Antes que os vizinhos se acusassem entre si ou que comunidades inteiras fossem acometidas pelo “pânico”, teve lugar um firme doutrinamento, no qual as autoridades expressaram publicamente sua preocupação com a propagação das bruxas e viajaram de aldeia em aldeia para ensinar as pessoas a reconhecê-las, em alguns casos levando consigo listas de mulheres suspeitas de serem bruxas e ameaçando castigar aqueles que as dessem asilo ou lhes oferecessem ajuda.
Mas foram os juristas, os magistrados e os demonólogos, frequentemente encarnados na mesma pessoa, os que mais contribuíram para a perseguição: foram eles que sistematizaram os argumentos, responderam aos críticos e aperfeiçoaram a maquinaria legal que, por volta do final do século XVI, deu um formato padronizado, quase burocrático, aos julgamentos, o que explica as semelhanças entre as confissões para além das fronteiras nacionais. No seu trabalho, os homens da lei podiam contar com a cooperação dos intelectuais de maior prestígio na época, incluindo filósofos e cientistas que ainda hoje são elogiados como os pais do racionalismo moderno.
Não pode haver dúvida, então, de que a caça às bruxas foi uma iniciativa política de grande importância. A natureza política da caça às bruxas também fica demonstrada pelo fato de que tanto as nações católicas quanto as protestantes, em guerra entre si quanto a todas as outras temáticas, se uniram e compartilharam argumentos para perseguir as bruxas. Assim, não é um exagero dizer que a caça às bruxas foi o primeiro terreno de unidade na política dos novos Estados-nação europeus, o primeiro exemplo de unificação europeia depois do cisma provocado pela Reforma.
Crenças diabólicas e mudanças no modo de produção
Uma primeira ideia sobre o significado da caça às bruxas na Europa pode ser encontrada na tese proposta por Michael Taussig em seu clássico trabalho “The Devil and Commodity Fetishism in South America” (“O demônio e o Fetichismo da Mercadoria na América do Sul”), de 1980. Neste livro, o autor sustenta que as crenças diabólicas surgem em períodos históricos em que um modo de produção está sendo substituído por outro. Em tais períodos, não somente as condições materiais de vida são transformadas radicalmente, mas também o são os fundamentos metafísicos da ordem social — por exemplo, a concepção de como se cria o valor, do que gera vida e crescimento, do que é “natural” e do que é antagônico aos costumes estabelecidos e às relações sociais.
Taussig desenvolveu sua teoria a partir do estudo das crenças de trabalhadores rurais colombianos e mineiros de estanho bolivianos numa época em que, em ambos os países, estavam surgindo certas relações monetárias que, aos olhos do povo, se associavam com a morte e inclusive com o diabólico, ainda mais se comparadas com as formas de produção mais antigas, que ainda persistiam, orientadas à subsistência. Desse modo, nos casos analisados por Taussig, eram os pobres que suspeitavam que os mais ricos participavam na adoração ao demônio. Ainda assim, sua associação entre o diabo e a forma-mercadoria nos faz lembrar também que, por detrás da caça às bruxas, esteve a expansão do capitalismo rural, que incluiu a abolição de direitos consuetudinários e a primeira onda de inflação na Europa moderna.
Estes fenômenos não somente levaram ao crescimento da pobreza, da fome e do deslocamento social, mas também transferiram o poder para as mãos de uma nova classe de “modernizadores” que olhavam com medo e repulsa as formas de vida comunais que haviam sido típicas da Europa pré-capitalista. Foi graças à iniciativa desta classe protocapitalista que a caça às bruxas alçou voo, como uma arma com a qual se podia derrotar a resistência à reestruturação social e econômica.
Que a difusão do capitalismo rural, com todas as suas consequências (expropriação da terra, aprofundamento das diferenças sociais, deterioração das relações coletivas), tenha sido um fator decisivo no contexto de caça às bruxas é algo que também se pode provar pelo fato de que a maioria dos acusados eram mulheres camponesas pobres — cottars, trabalhadoras assalariadas —, enquanto os que as acusavam eram abastados e prestigiosos membros da comunidade, muitas vezes seus próprios empregadores ou senhores de terra, ou seja, indivíduos que formavam parte das estruturas locais de poder e que, com frequência, tinham laços estreitos com o Estado central.
Na Inglaterra, as bruxas eram normalmente mulheres velhas que viviam da assistência pública, ou mulheres que sobreviviam indo de casa em casa mendigando pedaços de comida, um jarro de vinho ou de leite; se estavam casadas, seus maridos eram trabalhadores diaristas, mas, na maioria das vezes, eram viúvas e viviam sozinhas. Sua pobreza se destaca nas confissões. Era em tempos de necessidade que o diabo aparecia para elas, para assegurar-lhes que a partir daquele momento “nunca mais deveriam pedir”, mesmo que o dinheiro que lhes seria entregue em tais ocasiões rapidamente se transformasse em cinzas, um detalhe talvez relacionado com a experiência da hiperinflação que era comum na época.
Quanto aos crimes diabólicos das bruxas, eles não nos parecem mais que a luta de classes desenvolvida na escala do vilarejo: o “mau-olhado”, a maldição do mendigo a quem se negou a esmola, a inadimplência no pagamento do aluguel, a demanda por assistência pública.
Caça às bruxas e revolta de classes
Como podemos ver a partir desses casos, a caça às bruxas se desenvolveu em um ambiente no qual os “de melhor estirpe” viviam num estado de constante temor frente às “classes baixas”, das quais certamente se podia esperar que abrigassem pensamentos malignos, já que nesse período estavam perdendo tudo o que tinham.
Não surpreende que este medo se expressasse como um ataque à magia popular. A batalha contra a magia sempre acompanhou o desenvolvimento do capitalismo, até os dias de hoje. A premissa da magia é que o mundo está vivo, que é imprevisível e que existe uma força em todas as coisas de forma que cada acontecimento é interpretado como a expressão de um poder oculto que deve ser decifrado e moldado de acordo com a vontade de cada um.
A magia constituía também um obstáculo para a racionalização do processo de trabalho e uma ameaça para o estabelecimento do princípio da responsabilidade individual. Sobretudo, a magia parecia uma forma de rejeição do trabalho, de insubordinação, e um instrumento de resistência de base ao poder. O mundo devia ser “desencantado” para poder ser dominado.
Por volta do século XVI, o ataque contra a magia já estava no seu auge e as mulheres eram os alvos mais prováveis. Mesmo quando não eram feiticeiras/magas experientes, chamavam-nas para marcar os animais quando adoeciam, para curar seus vizinhos, para ajudar-lhes a encontrar objetos perdidos ou roubados, para lhes dar amuletos ou poções para o amor ou para ajudar-lhes a prever o futuro. Embora a caça às bruxas estivesse dirigida a uma ampla variedade de práticas femininas, foi principalmente devido a essas capacidades — como feiticeiras, curandeiras, encantadoras ou adivinhas — que as mulheres foram perseguidas, pois, ao recorrerem ao poder da magia, debilitavam o poder das autoridades e do Estado, dando confiança aos pobres em sua capacidade para manipular o ambiente natural e social e, possivelmente, para subverter a ordem constituída.
Por outro lado, é de se duvidar que as artes mágicas que as mulheres praticaram durante gerações tivessem sido ampliadas até o ponto de se converterem em uma conspiração demoníaca, se não tivessem ocorrido num contexto de intensa crise e luta social. Tais revoltas foram as Guerras Camponesas contra a privatização da terra, que incluíram as insurreições contra os cercamentos na Inglaterra (em 1549, 1607, 1628 e 1631), quando centenas de homens, mulheres e crianças, armados com forquilhas e pás, começaram a destruir as cercas erguidas ao redor das terras comunais, proclamando que “a partir de agora nunca mais precisaremos trabalhar”. Durante estas revoltas, muitas vezes, eram as mulheres que iniciavam e dirigiam a ação.
A perseguição às bruxas se desenvolveu nesse terreno. Foi uma guerra de classes levada a cabo por outros meios.
Caça às bruxas, caça às mulheres e a acumulação do trabalho
Com este pano de fundo, parece plausível que a caça às bruxas tenha sido, pelo menos em parte, uma tentativa de criminalizar o controle da natalidade e de colocar o corpo feminino — o útero — a serviço do aumento da população e da acumulação da força de trabalho. Podemos imaginar o efeito que teve nas mulheres o fato de ver suas vizinhas, suas amigas e suas parentes ardendo na fogueira, enquanto percebiam que qualquer iniciativa contraceptiva de sua parte poderia ser interpretada como produto de uma perversão demoníaca.
Desse ponto de vista, não pode haver dúvida de que a caça às bruxas destruiu os métodos que as mulheres utilizavam para controlar a procriação, posto que eles eram denunciados como instrumentos diabólicos, e institucionalizou o controle do Estado sobre o corpo feminino, o principal pré-requisito para sua subordinação à reprodução da força de trabalho. A caça às bruxas foi, portanto, uma guerra contra as mulheres; foi uma tentativa coordenada de degradá-las, de demonizá-las e de destruir seu poder social.
Quando esta tarefa foi cumprida por completo — no momento em que a disciplina social foi restaurada e a classe dominante consolidou sua hegemonia —, os julgamentos de bruxas cessaram. A crença na bruxaria pôde inclusive se tornar algo ridículo, desprezada como superstição e apagada rapidamente da memória. Assim como o Estado havia iniciado a caça às bruxas, um por um, os vários governos foram tomando a iniciativa de acabar com ela.
Uma vez destruído o potencial subversivo da bruxaria, foi possível até mesmo permitir que tal prática seguisse adiante. Depois da caça às bruxas chegar ao fim, muitas mulheres continuaram sustentando-se por meio da adivinhação, da venda de encantamentos e da prática de outras formas de magia. Mas agora as autoridades já não estavam interessadas em perseguir essas práticas, sendo inclinadas, ao contrário, a ver a bruxaria como um produto da ignorância ou como uma desordem da imaginação.
O espectro das bruxas seguiu, de qualquer forma, assombrando a imaginação da classe dominante. Em 1871, a burguesia parisiense o retomou instintivamente para demonizar as mulheres communards, acusando-nas de querer incendiar Paris. Não pode haver muita dúvida, de fato, de que os modelos das histórias e imagens mórbidas de que se valeu a imprensa burguesa para criar o mito das pétroleuses incendiárias foram retirados diretamente do repertório da caça às bruxas.
Sobre os autores
é autora de vários livros, incluindo Caliban e a Bruxa e O Ponto Zero da Revolução. Foi co-fundadora do International Feminist Collective e organizadora da campanha Wages for Housework.