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Uma performance de "Die Dreigroschenoper" ou "The Threepenny Opera", de Berthold Brecht e Kurt Weill, que estreou no Theater am Schiffbauerdamm em 1928. Erich Auerbach / Getty

Brecht era um revolucionário

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Tradução
José Carlos Ruy

Brecht não transformou apenas o teatro alemão; seu trabalho capturou seu compromisso radical com a política socialista e a emancipação do povo trabalhador.

Bertolt Brecht foi um dos mais importantes dramaturgos, poetas e pensadores do século 20. Um marxista não ortodoxo que buscou novas maneiras de unir arte e política, durante sua vida ele foi frequentemente considerado um espinho por teóricos comunistas mais tradicionais, mas também um dos escritores modernos mais inovadores.

Após sua morte em 1956, a divisão da Guerra Fria que dividiu a Alemanha também opôs linhas ideológicas, repercutindo na recepção de suas obras. O início das traduções dos textos teóricos e literários de Brecht para o francês, o inglês e o espanhol, entre 1950 e 1960, introduziu novos problemas, especialmente devido ao estilo denso e aos neologismos do autor. Sua reputação internacional, baseada às vezes em escolhas estranhas e erros de tradução, gerou controvérsias e confusões. Mas quem é o Brecht que se conhece hoje?

Em 1964, o proeminente escritor suíço Max Frisch expressou provavelmente pela primeira vez a frustrada acusação de “esgotamento de Brecht”, ao falar da “ineficácia notável de um clássico literário”.

Frisch não se referia às obras de Brecht, mas à recepção monótona de sua obra. Ele está entre os críticos de teatro e a resistência contra suas inovações dramatúrgicas. Assim, resumiu a atitude daqueles que tratavam Brecht como se fosse um escritor clássico, ignorando suas sugestões para um novo teatro e transformando suas peças em insosso entretenimento.

Se em 1964 Frisch falou em certo esgotamento de Brecht, trinta anos depois um proeminente crítico literário alemão declarou Brecht “morto” e mumificado, enquanto seu status como clássico literário avançou a um ponto em que o polêmico biógrafo de Brecht John Fuegi – que alegou que Brecht “obteve texto para sexo” de suas colaboradoras – dizer que ele poderia ser criticado como um “profanador de monumentos”.

No 40º aniversário de sua morte, em 1996, e novamente em 1998 (no centenário de seu nascimento), não havia dúvida de que Brecht se tornara definitivamente um clássico. A repetição compulsiva desses julgamentos sugere até que ponto ainda estamos envolvidos com Brecht – não sua pessoa real, mas sim como a soma de uma obra contraditória e sua recepção pela crítica.

A seguir, exploro alguns dos mitos sobre a obsolescência de Brecht e por que seus escritos hoje ainda oferecem um modelo valioso para unir política e cultura na esfera pública.

Tornando-se um clássico

Hoje, Brecht pode realmente impressionar como um clássico no sentido tradicional, no que diz respeito à popularidade. Durante anos, suas peças foram as mais encenadas na Alemanha e no mundo anglófono. Ele é citado juntamente com os trágicos gregos clássicos, Moliére, Ibsen e Tchekhov, entre os autores mais frequentemente encenados. Isso é notável, dado o caráter intelectualmente ambicioso do teatro de Brecht, que visa minar a relação entre um público complacente e uma tradição dramática baseada no entretenimento.

Sua influência se estende ainda mais. As técnicas brechtianas de estranhamento (Verfremdung), a ruptura das ilusões realistas que se assistem no palco e a noção de “gestus social”, ou gestos físicos, que podem revelar as contradições das ações de uma figura, tornaram-se elementos familiares não só na realidade do teatro, mas na estética do cinema, da televisão e até mesmo da publicidade, ainda que sem o objetivo político de pensamento capaz de “transformar o mundo: ele precisa” (veja-se a canção com este título na peça didática de Brecht, “A Decisão”, de 1930, canção também conhecida como “As medidas tomadas”).

Não há Brecht essencial a ser extraído de seus escritos críticos ou a ser esculpido em suas práticas criativas, que eram, de qualquer forma, um trabalho em progresso. A pessoa e seus escritos foram, no entanto, instrumentalizados para várias agendas. A história pós-guerra do Brecht erudito e da prática teatral brechtiana é marcada por compromissos ideológicos identificáveis, mudanças e revisões.

Na Alemanha dividida, essa recepção seguiu padrões claros mas antagônicos. Seu retorno a Berlim Oriental em 1948 e o estabelecimento de seu próprio teatro (o Berliner Ensemble) foram celebrados pelo governo da Alemanha Oriental como um grande ato de relações públicas, já que ele representava uma forte linha de continuidade cultural com os intelectuais esquerdistas da República de Weimar.

No entanto, no decorrer da década de 1950, até sua morte em 1956, a política e a estética de Brecht foram tratadas com desconfiança pelos funcionários culturais do governo da Alemanha Oriental, porque seu “formalismo” não se ajustava à imagem ortodoxa do realismo socialista. Após o sucesso internacional das turnês do Ensemble para Paris (1954) e Londres (1956) e da própria morte de Brecht (1956), seu trabalho tornou-se aceitável como modelo de teatro político quando aplicado ao passado fascista e ao capitalismo, mas não só socialismo existente.

Nisto podemos ver sementes da separação entre o político Brecht e seus textos artísticos. Grande parte de sua recepção posterior no Ocidente e nos países socialistas sofreu com essa definição dogmática de “o político”, que sustenta posições estreitas e polêmicas a favor ou contra a própria política do dramaturgo. Essas posições tendem a fechar a energia inovadora e experimental do projeto de Brecht antes mesmo de começar a se desenvolver.

Enquanto isso, no impasse da Guerra Fria, a recepção de Brecht no Ocidente tomou um rumo diferente. Estimada ou até mesmo venerada por alguns poucos na década de 1950 – mais frequentemente em países como Itália, França e Grã-Bretanha do que na Alemanha Ocidental -, a escolha de Brecht pela “outra” Alemanha socialista levou a um virtual boicote em todos os teatros subsidiados pelos governos. Em meados da década de 1960, sua imagem foi engessada nos países socialistas como um ícone oficial do realismo socialista, enquanto no Ocidente estava prestes a ser descoberto pela geração jovem politicamente motivada como uma alternativa à herança abafada e dominante do humanismo pseudointelectual.

Para alguns, ele se tornou o trampolim para uma forma alternativa e crítica de pensar; para outros, uma arma nas batalhas ideológicas. A década de 1970 foi renovadora: uma geração de jovens escritores da Alemanha Oriental, que estudavam o pensamento dialético e a linguagem de Brecht, trouxe seu legado ao presente (por exemplo, escritores como Heiner Müller e Volker Braun). Na Alemanha Ocidental, o entusiasmo inicial pelo Brecht “estabelecido”, do Berliner Ensemble, empalideceu, e o início de Brecht e suas peças didáticas – amplamente ignoradas nos países socialistas – passaram a dominar a atenção de teatros e estudiosos progressistas.

Na década de 1980, Brecht se tornou parte de cada um dos diferentes cânones da Alemanha, num trabalho que se tornou profissionalizado, institucionalizado e especializado, e ironicamente parte de um sistema de autorização legitimação ideológica nas universidades e nos teatros que subsidiavam. Suas histórias, poemas e peças foram antologizadas. Foram incorporadas a um contexto de discursos concorrentes e contraditórios. Uma imagem siamesa de Brecht floresceu nas tensões entre o Ocidente e os países socialistas. Uma retórica às vezes agressiva de acusações e hipocrisia marcava cada um dos oponentes: de um lado, o político Brecht; do outro, o poeta Brecht; aqui o rebelde Brecht, lá o stalinista Brecht; aqui o antiquado Brecht, ali sua crítica totalizadora do status quo.

Traduções em todos os principais idiomas e o magnetismo de um pensador não dogmático fizeram de Brecht um objeto a ser desconstruído a uma distância crítica por estudiosos e artistas de outros países. Na América Central e do Sul, Ásia e África, seu trabalho desempenhou e continua desempenhando um papel vital na articulação do processo emancipatório de transformação política.

Da mesma forma, teatros underground, alternativos e de vanguarda “liam” Brecht na contramão, através de vários filtros: feminismo, teoria da performance, corpo, humor, etc. Depois do fim da Guerra Fria, artistas, críticos e intelectuais descobriram textos de Brecht para abordar velhas e novas questões que ressoam com seus públicos: o surgimento de neonazistas, de líderes autocráticos, a constante ameaça da guerra.

Pensamento intervencionista

Qual, então, é a relevância de Brecht hoje? As forças sempre em expansão do capitalismo global, a hegemonia dos mecanismos do mercado, o crescimento das tecnologias de comunicação e a tendência de mudar da política de classe para a identitária exigem novas ferramentas conceituais e analíticas quando se pretende entender onde e como o terreno cultural pode ser debatido. Enquanto isso, categorias conceituais tradicionais, como esclarecimento, pedagogia, progresso, razão e história – todos princípios fundamentais na visão de Brecht de transformar a sociedade – têm sido questionadas como os valores de “homens brancos ultrapassados” a serviço das elites dominantes.

Tudo isso relega a obra de Brecht a um período de modernismo historicamente determinado, mas também ecoa a crise na representação que fundamenta a sua estética. As ilusões históricas do modernismo tornaram-se agora um problema de posicionamento do sujeito em realidades radicalmente descontínuas. As importantes mudanças no mapa da Europa na última década do século passado sugerem que esse problema de posicionamento também é uma questão de política prática, já que se pode ver que as demandas interconectadas levantadas por entidades locais, nacionais e internacionais produzem tensões crescentes no espaço multinacional em que se vive hoje.

Ao mesmo tempo, as alternativas que substituem as utopias desintegradas do modernismo (nacionalismo, regionalismo, ecologia, uma renovada consciência da tradição, etc.) ainda precisam se provar mais do que desculpas por uma nova hierarquia de relações autoritárias ou totalitárias entre o particular e o geral. Dada a nossa distância de Brecht e seu sistema de referência política, deveria ser possível ler seus textos sem viés ideológicos, e assim descobrir como ele usou e transformou o material com que construiu representações da realidade.

De fato, responder à questão de saber se Brecht é relevante é considerar se a arte política é (ainda) possível. Para este fim, é útil explicar o que Brecht quis dizer com pensamento intervencionista (“eingreifendes Denken”), uma categoria central em sua convicção de que o mundo precisa ser mudado. Não é de surpreender que essa não seja uma tarefa simples porque, como tantas coisas no pensamento desse pragmático, suas sugestões foram orientadas para condições e situações históricas concretas.

O pensamento intervencionista – um conceito que surgiu no início da década de 1930, durante o que talvez fosse a fase de trabalho mais produtiva de Brecht – foi algo que ele realizou de várias formas e com objetivos diferentes no exílio (1933-1948) e após a volta à Alemanha Oriental. Primeiro, é importante estabelecer a conexão entre “intervenção” e “pensamento”. O pensamento descreve uma relação contemplativa com um objeto, com um evento ou com o mundo; marca acima de tudo um processo de distanciamento entre o sujeito e o objeto. Pensar em algo desencadeia a análise e a lógica, que desconstroem e depois reconstroem esse “algo”. A intervenção é o oposto do pensamento, pois descreve um ato. Do ponto de vista do sujeito, a intervenção se refere à mudança do objeto, o curso de um evento ou a condição do mundo. Em suma, o pensamento intervencionista é típico da visão de mundo antagônica de Brecht.

Sua criatividade viveu de crises e encontrou sua inspiração mais produtiva a partir da intensificação das contradições. Para isso, ele concebeu formas poéticas e estéticas sempre novas e dinâmicas. O conceito de pensamento intervencionista abstrai essa dinâmica; significa uma atitude que exige não apenas contemplação e cognição, mas também aplicação e efeito. O pensamento intervencionista é, então, o resultado de formas estéticas específicas que colocam o destinatário (por exemplo, o leitor, o público, o participante) em movimento através de um processo analítico de distanciamento.

Muitas ou mesmo todas as peças de Brecht são diretamente políticas, abordando temas políticos específicos. No entanto, os seus interesses iam para além das especificidades históricas, para procurar formas de apresentar problemas que revelassem o contexto e as relações de poder, despertando assim o desejo de mudar as coisas. Em um sentido mais largo sua “política” foi de encontro à instituição da arte que era, para ele, essencialmente conservador. O trabalho prático de Brecht consistiu em produzir contradições, revisar textos e romper a passividade consumista do público. Como abstração, então, o conceito de pensamento intervencionista ainda é viável, mas torna-se problemático quando se tenta definir seu conteúdo. Que formas estéticas são hoje ainda utilizáveis? Existe um conjunto de “técnicas brechtianas” ou elementos estilísticos concebidos por Brecht para situações sociais específicas e instituições da década de 1930, 1940, ou 1950, que ainda hoje são válidos? Tais perguntas não podem ser respondidas abstratamente e universalmente. O pensamento intervencionista seria engajado diferentemente em vários momentos e lugares, pois não é uma fórmula, mas uma atitude em relação à experiência e à imaginação.

Aqui vale a pena considerar o utopismo de Brecht. Pois é aqui que a própria capacidade de imaginar a mudança revela seus limites históricos e repressões sistêmicas. As utopias do modernismo procuraram reabilitar o sujeito de sua anomia e alienação, imaginando um não lugar, fora do espaço e do tempo, no qual o ideal de unidade entre trabalho e vida, indivíduo e coletivo, arte e política, economia e moralidade, reinaria. Brecht criou tais “não lugares” em seu trabalho, deslocando as configurações de suas peças de uma Chicago mítica para o Cáucaso ou para a China e brincando com anacronismo em peças como Mãe Coragem ou Santa Joana dos Matadouros. No entanto, ele insiste precisamente na diferença, a fim de produzir novos insights sobre as relações estruturais e entre especificidades historicamente mediadas.

Verfremdung (por exemplo, estranhamento) é o principal meio de percepção historicizante de Brecht, de demonstrar que o passado era diferente do presente e que, como o passado mudou, o presente é mutável. Sem dúvida, isso está relacionado a uma profunda empatia pela luta para sobreviver, que ele enfrentou existencialmente como o exílio durante o Terceiro Reich. As peças de Brecht, em especial as parábolas maduras, tocam em épocas e lugares distantes, mas refletem sobre os dilemas políticos e morais de seu presente, constroem situações que evidenciam as contradições entre o comportamento antigo ainda funcional e as novas situações. Esta disjunção entre o tempo histórico e o tempo do sujeito é mediada pela utopia. A intenção não é de reformar um sistema opressivo, mas de transformá-lo, de capacitar as pessoas a compreenderem o seu presente, a fim de mudá-lo. Esta é a dialética materialista de Brecht – seu esforço para imaginar algo que ainda não é possível, mas já é inevitável.

Comprometido com a vanguarda política, Brecht buscou uma utopia que integrasse arte e práxis social. Naturalmente, essa visão emergiu de uma situação social particular e foi sujeita às mudanças importantes na ênfase sobre o tempo. Testemunhando o colapso da antiga ordem e a problemática constituição de uma nova cada vez mais inaceitável na Alemanha de 1920, ele foi atraído pela idéia de redenção através da negação de si mesmo. O excesso e isolamento dos anti-heróis associais das primeiras peças na década de 1920 expressam sua crítica ao sujeito burguês sem escorregar para a solução modernista de fugir das massas através do hiperindividualismo. No final dos anos 20 e, em particular, com a aprendizagem experimental (Lehrstücke) do início dos anos 30, Brecht procurou formular uma alternativa a esta postura subjetivista, antiburguesa. Assume a forma de uma coletividade que deriva da consciência dos sujeitos individuais transformados em uma identidade de classe na dinâmica da luta de massa. O caos social e o desenraizamento individual dão forma a um modelo do consenso da obediência ao coletivo (einverständnis) e a um indivíduo novo que seja definido não na oposição às massas mas através delas.

Desmistificação do indivíduo

Esta coletividade não teve apenas consequências estéticas, mas também biográficas, na prática colaborativa de Brecht. Uma das características distintivas da crise modernista na Alemanha durante a República de Weimar foi uma rápida mudança nas condições de produção cultural. A crescente comercialização da atividade de lazer com o surgimento do entretenimento popular (cinema, esportes, dança, jazz, etc.) e a mercantilização das relações culturais que a acompanharam marcaram uma crise social em função das tradicionais instituições culturais.

O público burguês educado estava se dissolvendo, e seu lugar era tomado por um público muito mais amplo de consumidores com novas demandas de atividade imaginativa e recreacional. Essa tendência para a democratização cultural também afetou o papel e a autoidentidade do escritor. Por um lado, os vanguardistas, assim como os tradicionalistas, procuraram novas formas de afirmar o seu elitismo; por outro, escritores como Brecht abraçaram a tendência da modernidade em relação à desintegração social e à massificação como emancipatória.

As restrições do individualismo burguês estavam sendo abandonadas. Brecht começou a desenvolver uma abordagem à produção que submergiu a subjetividade do autor num coletivo. A própria noção de atividade estética como “produção” (em vez de criação), teorizada por Brecht desde 1932 indica esta mudança fundamental. De fato, seu homem é igual ao homem de um modelo sociológico de constituição identitária baseada no protagonismo no processo socioeconômico. A desmistificação da noção burguesa do indivíduo é igualmente pertinente para a desmistificação da noção burguesa de autor. Com o crescimento de novas formas de dominação e, especificamente, a ascensão do fascismo na década de 1930, a visão de Brecht de uma sociedade mais humana tornou-se mais e mais difícil, enquanto suas tentativas de representar uma ordem alternativa convincente ao fascismo contemporâneo falharam em grande parte. Forçado ao exílio e confrontado com os horrores do nazismo, Brecht centrou-se em novas possibilidades de representar o velho, em vez de construir uma nova ordem.

Por um lado, o reducionismo formal que suas parábolas desempenham a partir deste período parece funcionar como uma espécie de escudo protetor contra as contradições impossíveis da realidade, mas, por outro, a mudança no sujeito e técnica para formas mais deliberadas de distanciamento desvia a relação texto-audiência transferindo a imaginação utópica para os próprios espectadores. O prólogo para o Círculo de Giz Caucasiano (escrita em 1944, publicada pela primeira vez em 1949) oferece uma sugestão sucinta da utopia política e poética que ele imaginou em suas peças maduras.

No jogo, o “conflito de instinto materno versus laços de sangue” se desdobra contra o pano de fundo da desigualdade e injustiça quando, durante uma guerra, uma dama nobre abandona seu filho, que acaba sendo criado por uma criada até que a paz retorna e a criança acaba sendo herdeira de uma fortuna. O prólogo levanta a questão de como uma sociedade pode ser reconstruída após a catástrofe nazista. O cenário do prólogo, na Geórgia Soviética, a primeira região de onde o exército nazista invasor foi expulso, traz o diálogo de dois grupos de agricultores (pastores de cabras e cultivadores de frutas), que competem pelo controle da terra fértil. Projetando seus próprios medos de uma recorrência da ideologia nazista, nacionalista e racista, Brecht mostra como uma atitude iluminada em relação ao argumento fundamentado poderia ser um modelo para a Europa pós-guerra. O destino coletivo que os dois grupos de agricultores antecipam chegam a uma resolução de seu conflito através da narração da cantora que, na parte principal da peça, demonstra como a arte (a narração do cantor) e o trabalho (o projeto da fazenda coletiva) são formas de produção igualmente valiosas para os sujeitos livres.
A representação, a estética e o trabalho da imaginação tornam-se atos políticos com um valor de uso comparável ao trabalho.

Em seus escritos teóricos dos anos 40, Brecht caracterizou essa coletividade como a forma como as pessoas vivem juntas (“das menschliche Zusammenleben”) – e, após a guerra, seus empreendimentos no Berliner Ensemble compuseram, no teatro, o modelo prático para tal coletivo, pelo menos em uma forma áspera, imperfeita.

Brecht, o marxista

Brecht tornou-se marxista no final da década de 1920. Como o Marx dos primeiros tempos, sua crítica ao capitalismo não foi anticapitalista, mas, sim, a postulou como uma força material, como um motor para relações cada vez mais complexas de produção. No entanto, há uma continuidade idealista nesse pensamento marxista utópico ao qual Brecht adere. Presume-se que todos compartilham os interesses do coletivo imaginado por causa de uma identidade de classe fundamental, enquanto as interações altamente diferenciadas em tal constelação social sugerem uma interseção muito mais complexa de necessidades, demandas, medos e desejos.

Brecht também insistiu em uma definição política e sociológica de classe como a articulação primária ou hegemônica da identidade do sujeito. Mas ele não estava alheio a outros elementos da complexidade do sujeito. Todo seu modelo poético, por exemplo, tem base na forte tradição da compreensão marxista da dialética como um movimento para a resolução de contradições.

Sua definição evolutiva do teatro épico na década de 1930 – com sua separação de elementos teatrais como música, texto e sets e seu estresse sobre a qualidade interruptiva do fragmento ou montagem devido à sua abertura ao público –, bem como suas mais recentes revisões da “confabulação” do público (1950), no que chamou teatro dialético são exemplos de sua visão da contradição como um momento produtivo.

Além disso, a reformulação de Brecht do coletivo como uma comunidade intersubjetiva “vivendo juntos” enfatiza a posicionalidade dos sujeitos que estão constantemente produzindo-se como sujeitos por meio de conflitos e contradições uns com os outros. Claramente, compreendeu a idéia do tema como construção.

Brecht não era utópico de olhar róseo, mas um artista-intelectual que desenvolveu suas faculdades críticas através da experiência de reversões políticas e rupturas históricas. O colapso da União Soviética e do socialismo ossificado identificado com ela é um indício poderoso do utopismo da esquerda tradicional. Mas o projeto de Brecht de uma sociedade mais justa e igualitária nunca procurou dar respostas sobre como tornar o mundo melhor. Em vez disso, seus escritos são roteiros de como fazer perguntas – como formular as perguntas certas para uma determinada situação insustentável que, portanto, deve ser mudada.

Enquanto Brecht acreditava no poder da razão que permite às pessoas reconhecer os problemas e resolvê-los, ele não era nem um racionalista de mente estreita, nem um crente ingênuo na inevitabilidade do progresso e da emancipação humana. Assim, sua crítica às emoções, que é frequentemente mal compreendida ou implantada como uma dramaturgia da “frieza”, não foi dirigida contra o sentimento ou a espontaneidade como tal, mas sim contra a função das emoções no teatro tradicional. Como o pensamento intervencionista, a crença de Brecht na razão é um conceito funcional que permite que os indivíduos determinem seu interesse e atuem por eles, ou seja, um princípio de ação fundamentada, não excluindo nem paixão nem emoção.

Areia nas engrenagens

Nossa imagem de Brecht é mediada, construída a partir de fatos biográficos e históricos, leituras interpretativas e especulações polêmicas, necessidades instrumentalizadas e desejos utópicos. Este Brecht-em-processo, cuja imagem nunca é finalmente estabelecida, contribui precisamente para a sua qualidade ainda capaz de provocar. Sim, Brecht é um clássico hoje, reconhecido como um artista canônico e pensador na modernista tradição iluminadora sobre a qual refletiu e escreveu, sobre algumas das grandes catástrofes no século passado.

Em um mundo regido por meios de comunicação e comunicações eletrônicas, a voz de Brecht soa estranhamente antiquada, enquanto simultaneamente práticas brechtianas –como a vandalização da literatura mundial, misturando poesia e kitsch, usando a cultura de massa positivamente na apresentação e recepção da arte – não só foram cooptados pela economia de mercado, mas foram integrados em suas próprias estratégias de funcionamento.

Na era da transmissão pela televisão e das identidades virtuais da internet, mesmo o efeito do estranhamento (o famoso V-effekt de Brecht) pode ser usado eficientemente para vender commodities. No entanto, esse tipo de pessimismo assume uma parte do em um sistema que levanta imagens na mídia para as experiências definitivas no capitalismo avançado. Para aqueles que compartilham o projeto crítico de Brecht, o objetivo é buscar formas de instrução e comunicação que, em vez disso, incentivem o pensamento, e não apenas as atitudes contemplativas.

Brecht era um mestre astuto em jogar “areia nas engrenagens” de hierarquias institucionais. A esse respeito, é um exemplo particularmente relevante para o intelectual público de hoje. Viveu numa época em que a autoimagem do artista e pensador como pessoa socialmente e politicamente engajada correspondia às expectativas do público; hoje, porém, a autonomia e a autopreservação dos artistas e pensadores parece mais importante. Em uma situação histórica que ameaça pensadores críticos e desvaloriza estratégias de crítica, precisa-se de modelos de vozes opostas, para que não se esqueça da necessidade de protesto. Brecht é um modelo vinculado a um partido, independente de instituições oficiais ainda experientes em sobreviver dentro de instituições, novamente e novamente preparados para entreter os riscos e empreender tentativas não convencionais: foi assim que Brecht acomodou um mundo que viu como mutável. Em nossos tempos, quando a mídia social cria os valores da opinião pública, tentativas e estratégias para jogar “areia nas engrenagens” são novamente úteis, e os escritos de Brecht oferecem exemplos convincentes de como fazê-lo. Como testemunhas de como as novas tecnologias descolocam títulos e identidades familiares, precisamos de ferramentas que possam fortalecer a percepção, tornar as relações humanas visíveis e desestabilizar os hábitos comuns.

A principal contribuição de Brecht, então, pode ser encontrada nas formas inovadoras que ele planejou para examinar a história e tornar visível a alterabilidade dos processos da história. Inscrito com as colisões e rupturas do século em que viveu, o significado de Brecht como um artista e um pensador se tornará relevante sempre que sua visão se torna necessária, sempre que uma situação conducente à imprevisibilidade ideológica possibilite que as ideias sejam criticadas, radicalmente, sem a preocupação de restabelecer certezas. Em suma, o impacto de Brecht não é ter encontrado quaisquer receitas que tenha proposto, mas, sim, na capacidade de seus escritos para alimentar a nossa própria criatividade de pensar sobre as verdades e os processos da história.


Este ensaio é uma versão resumida e atualizada das idéias desenvolvidas no cinquentenário da morte de Brecht: “Brecht is dead! Brecht is dead?” Logos: A Journal of Modern Society and Culture 5, no. 3 (2006).

Sobre os autores

é professor de Língua Alemã na Universidade de Wisconsin-Madison

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Published in Análise, Arte and Política

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