Praticamente todo político do Partido Democrata, negro ou branco, reivindica o legado de Martin Luther King Jr.
Convenientemente esquecido, o fato é, que nos últimos anos de sua vida, antes de seu assassinato em 4 de abril de 1968, King rompeu com o presidente democrata Lyndon Johnson durante a Guerra do Vietnã e o fracasso do governo em reforçar as leis de direitos civis no Sul dos Estados Unidos, algo que nenhum democrata de estatura nacional está disposto a fazer até os dias de hoje.
Para entender a eventual guinada de King à esquerda, é necessário olhar para as lutas de classe que sustentaram o movimento dos direitos civis e a natureza da organização de King, a Southern Christian Leadership Conference (SCLC).
Quando King emergiu como líder do movimento de boicote dos ônibus segregados em Montgomery, na década de 1950, ele estava na vanguarda de um movimento local cujo exemplo foi seguido em dezenas de outras cidades do Sul nos anos seguintes. A organização que ele ajudou a fundar, a SCLC, estabeleceu diversos escritórios na região, mas era essencialmente um grupo de organizadores profissionais que geralmente se deslocavam de cidade em cidade para se envolver em lutas iniciadas por estudantes, trabalhadores e agricultores negros locais.
O objetivo do SCLC não era ajudar esses ativistas a se desenvolver de maneira independente, mas levá-los a um confronto não-violento com segregacionistas e policiais que apoiavam as Leis de Jim Crow (leis estaduais que impunham a segregação racial no sul dos EUA). De acordo com líderes do SCLC, como Hosea Williams e Wyatt T. Walker, o governo federal seria então forçado a intervir para apoiar os ativistas dos direitos civis, a fim de impedir as agressões e o caos.
A princípio, a estratégia pareceu funcionar. Uma decisão da Suprema Corte apoiou o movimento de boicote dos ônibus de Montgomery. O Presidente Kennedy introduziu as leis sobre direitos civis um ano depois que os policiais de Birmingham, Alabama, atacarem repetidamente as marchas organizadas pela SCLC durante o ano de 1963. Confrontos sangrentos em St. Agostinho, Flórida, e Selma, Alabama, levaram o sucessor de Kennedy, Lyndon Johnson, a aprovar a Lei de Direitos de Voto de 1965, colocando o fim das práticas eleitorais discriminatórias, decorrentes da segregação racial.
Kennedy e Johnson apoiaram os direitos civis apenas quando consideraram necessário para impedir uma rebelião negra mais militante. Eles não queriam se indispor com a poderosa ala sulista de seu partido, a Dixiecrat. King e os protestos do SCLC podiam ser tolerados desde que permanecessem “não-violentos”, limitando-se a combater a segregação no Sul e não desafiando a discriminação econômica racista enraizada no capitalismo dos EUA.
Mas, em 1965, a credibilidade de King entre os ativistas do sul estava diminuindo. O hábito do SCLC de chegar à cidade em meio a uma luta, chamando a atenção da mídia e negociando um acordo irritou os negros locais e os membros, cada vez mais radicais, do Comitê de Coordenação de Estudantes Não-Violentos (SNCC), que estavam tentando ajudar os negros do sul a desenvolver suas próprias lideranças.
Enquanto isso, o nacionalista negro Malcolm X argumentava, com razão, que a não-violência defendida por King e pelo SCLC expunha os negros a ataques da polícia e bandos racistas.
As críticas a King atingiram um novo pico em Selma em 1965, quando policiais lançaram bombas de gás lacrimogêneo e espancaram ativistas que tentavam marchar para a capital do Estado em Montgomery. Quando uma segunda marcha foi organizada, a polícia não a bloqueou. Mas King liderou os manifestantes de volta a Selma, em vez de desafiar uma ordem judicial. Essa retirada de King, juntamente com a aceitação de concessões simbólicas por parte de políticos de Selma, foi denunciada como uma “pelego vendido” pelos mais radicais.
As diferenças vieram à tona um ano depois, quando James Meredith, o primeiro estudante negro a freqüentar a Universidade do Mississippi, foi morto a tiros durante sua marcha solo de protesto pelo estado. King e o líder do SNCC, Stokely Carmichael (mais tarde conhecido como Kwame Ture), estavam entre os líderes dos direitos civis que se juntaram a centenas de ativistas para completar a marcha de Meredith no verão de 1966.
Perseguidos por criminosos racistas e policiais selvagens em cada esquina, manifestantes enfurecidos juntavam-se avidamente ao coro improvisado de Carmichael, o “Black Power”, e ouviram atentamente suas idéias nacionalistas. Embora King se recusasse a se juntar a líderes conservadores dos direitos civis negros que atacavam o slogan do “Black Power”, alengado ser racista, ele se recusou a apoiá-lo argumentando que isso implicaria em violência e afastaria o potencial apoio branco.
“Temos que transformar nosso movimento em um poder positivo e criativo”, disse ele quando questionado sobre Carmichael. Para os militantes negros, King era visto como um vendido. E para os democratas liberais, preocupados com a influência de idéias nacionalistas e rebeliões generalizadas de negros nas cidades do norte, a posição de King endossava claramente o “Black Power”.
King reconheceu que estava tentando preencher uma lacuna cada vez maior. “O governo precisa me dar algumas vitórias se eu for manter as pessoas não-violentas”, disse ele. De fato, King logo enfrentaria abertamente os democratas do norte declarando-os como inimigos. Desde que a Lei dos Direitos de Voto de 1965 aboliu formalmente a última das Leis de Jim Crow, King e SCLC voltaram sua atenção para os negros do norte, cada vez mais militantes.
A ruptura final de King com Johnson ocorreu em abril de 1967, quando King pediu aos EUA que parassem a guerra “colonial” do Vietnã.
Enquanto vários senadores democratas se voltavam contra a guerra, a maioria dos principais líderes continuava apoiando o governo. Jornais liberais como o New York Times e o Washington Post, que geralmente eram simpáticos a King durante as lutas pelos direitos civis no Sul, o atacaram por sua posição anti-guerra.
Um Johnson vingativo permitiu ao FBI intensificar o assédio contra King e outros líderes do SCLC. O presidente ficou indignado quando soube do plano de King de liderar a Marcha dos Pobres em Washington para fechar o Capitólio dos EUA.
Johnson e os democratas passaram a confiar nas táticas não-violentas de King e em seu apoio ao partido como um contrapeso importante ao crescente número de radicais em ascensão da revoltas promovidas pelo “Black Power”. Quando King denunciou a guerra em 1967, os democratas o consideraram um traidor.
Ainda assim a ruptura de King com os democratas não lhe valeu o apoio dos negros no Norte, onde rebeliões de rua varreram todas as principais cidades do país. A política dos nacionalistas negros mais radicais – particularmente sua defesa da autodefesa diante da violência racista – parecia dialogar mais com a luta nessas circunstâncias.
Atacado pela esquerda e pela direita, King foi forçado a repensar sua carreira e a organização que liderou, a SCLC. “Devemos admitir que houve uma limitação das nossas conquista no Sul”, disse ele em uma reunião do conselho da SCLC em 1967. A SCLC deveria ter pedido uma “radical redistribuição de riqueza e poder”. Em várias ocasiões, King disse a seus assessores que os EUA precisavam de um socialismo democrático que garantisse empregos e renda para todos.
Outros líderes do SCLC, como Andrew Young, Jesse Jackson e Ralph Abernathy, eram hostis ao plano da Marcha dos Pobres. Os escritórios do SCLC no Sul foram negligenciados durante uma tentativa infeliz de se organizar contra a segregação habitacional em Chicago, e os escritórios do Norte estavam mais fracos ainda.
Além disso, o plano colidiu com a orientação capitalista negra da Operação Breadbasket da SCLC, dirigida por Jackson. “Se você está tão interessado em fazer suas próprias atividades e não pode fazer o nossa organização está estruturada para fazer, vá em frente sozinho”, disse King em resposta às críticas de Jackson à marcha. “Se você deseja criar seu próprio nicho na sociedade, vá em frente, mas, pelo amor de Deus, não me incomode!”
Ainda assim, os democratas viram traição na campanha da Marcha dos Pobres de King – enquanto isso, a ala da direita insistia que sua tese de que King era um comunista estava sendo provada. Esses elementos, incentivados pela campanha presidencial do governador segregacionista do Alabama, George Wallace, ameaçaram publicamente a vida de King.
Diante da hostilidade do governo Johnson, das críticas tanto de nacionalistas negros quanto de membros do establishment negro, e com uma equipe dividida, King estava politicamente isolado quando foi assassinado em Memphis, em 4 de abril de 1968 – menos de três semanas antes da Marcha dos Pobres. A campanha estava para começar. King viajou para Memphis para apoiar uma greve dos trabalhadores negros do saneamento – ele era o único líder nacional dos direitos civis a comparecer.
Ainda assim não demorou muito até que a imprensa da classe dominante convertesse King em um santo inofensivo.
Para fazer isso, no entanto, eles tiveram que enterrar o legado real de Martin Luther King – seja como líder das críticas lutas iniciais do Movimento pelos Direitos Civis e que no fim se recusou a aceitar aos pedidos de paciência e moderação de seus aliados democratas liberais, ou como o mais radical líder negro do final da década de 1960, cuja visão do que precisava ser mudado na sociedade havia se ampliado enormemente.
Sobre os autores
é o editor do Socialist Worker.