Na Rússia de hoje, o feminismo é frequentemente considerado algo importado do Ocidente depois do colapso da União Soviética, assim como os investimentos estrangeiros e a Internet. Nesse contexto, a história de como as mulheres soviéticas conquistaram o direito ao aborto é um triste caso de perda de memória – esqueceu-se que ele foi alcançado aqui na Rússia antes mesmo do que nos principais países ocidentais. Essa luta foi um exemplo importante do ativismo político das mulheres soviéticas e é um episódio que nos ajuda a reconstruir uma história mais ampla do feminismo socialista na URSS.
Essa leitura é contrária à abordagem dominante que descreve a história soviética como “totalitária” e assume que a URSS era uma entidade totalmente hierárquica, onde todos simplesmente obedeciam às ordens de um partido monolítico, e ponto final. Claramente, esse cenário rígido não permite com que as mulheres que lutaram pelos seus direitos tenham um lugar na história. Embora essa abordagem tenha sido confrontada por uma onda revisionista desde a década de 1980, ela persiste em relação à história de gênero.
A influência dessa abordagem é visível na maneira com que a cronologia das políticas de gênero na União Soviética é geralmente estruturada. Com enfoque nas principais mudanças ocorridas nas lideranças políticas, essa cronologia termina com a abolição do Zhenotdel (Departamento das Mulheres) em 1930 – uma ação que implicou na exclusão quase completa das mulheres da participação política. Entretanto, ao analisarmos a agência das mulheres nas políticas de gênero da União Soviética, observamos que a história da luta feminista nunca parou, pois ela nunca alcançou a vitória final.
A descriminalização do aborto na União Soviética em 1955 exemplifica isso. Especialmente quando nos perguntamos o que essa mudança nos diz sobre os tipos de subjetividade política que o discurso soviético dominante sobre igualdade de gênero possibilitou. Esse discurso – uma parte essencial do projeto soviético – criou a “mulher soviética” como uma identidade política, embora de maneiras muitas vezes contraditórias, que realmente conseguiu promover os interesses das mulheres.
Aqui, deixaremos de lado a questão de saber se essa subjetividade foi um resultado esperado ou se ela funcionou de forma contrária às reais intenções dos líderes masculinos do partido. Em vez disso, nos concentraremos em uma líder feminina, Maria Kovrigina, que foi uma das peças principais na descriminalização do aborto. Em certo sentido, ela tinha uma biografia típica da nomenclatura soviética. Mas a sua história também mostra como até mesmo a visão soviética oficial do empoderamento das mulheres, apesar dos seus limites e da sua hipocrisia, realmente contribuiu para a descriminalização do aborto.
Da liberalização à criminalização
O aborto, por razões sociais e médicas, havia sido legalizado pela primeira vez em 18 de novembro de 1920, tornando o jovem Estado soviético o primeiro país do mundo a abarcar esse direito. Entretanto, isso não significava uma visão positiva do direito de escolha das mulheres. Pelo contrário, a necessidade das mulheres recorrerem ao aborto foi vista como um resultado das condições sociais resultantes do czarismo, que desapareceriam com o desenvolvimento do socialismo. Por esse motivo, como mostra Susan Gross Solomon, o Departamento das Mulheres não via contradição alguma entre propagandas anti-aborto e a legalização do aborto.
O “Decreto sobre a Saúde da Mulher”, de 1920, declarou que o aborto ilegal era um “mal grave para a comunidade”. Ele insistia que extensas proteções sociais para a maternidade e a infância garantiriam “o desaparecimento gradual desse mal”. Mas, como “as morais do passado e as difíceis condições econômicas do presente ainda obrigam muitas mulheres a recorrerem a essa operação”, era necessário fornecer essas operações às mulheres através do sistema de saúde, ao invés de permitir que a prática ilegal continuasse.
Essa liberalização não duraria. Em 1936, o aborto por razões sociais foi novamente criminalizado e substituído por uma lista restrita de critérios médicos que o permitiam. Mulheres que transgredissem a proibição não apenas corriam o risco de sofrer ferimentos graves (ou algo pior) por terem feito um aborto ilegal, mas, se fossem pegas, também poderiam ser presas. O novo “Decreto sobre a Proibição do Aborto e a Melhoria da Ajuda Material às Mulheres durante o Parto” enfatizou que as melhorias nas condições sociais significavam que as mulheres não “precisavam” mais de abortos e, em todo caso, que elas tinham que manter seu papel de mães.
Esse texto, que reverteu o direito ao aborto, insistia em dizer que: “Em nenhum país do mundo a mulher desfruta de uma igualdade tão completa em todos os ramos da vida política, social e familiar como na URSS. Em nenhum país do mundo a mulher, como mãe e cidadã, que tem o grande e responsável dever de dar à luz e criar cidadãos, goza do mesmo respeito e proteção da lei que na URSS. Somente sob condições do socialismo, onde a exploração do homem pelo homem não existe, onde a mulher é um membro igual da sociedade e onde a melhoria contínua do bem-estar material dos trabalhadores constitui uma lei de desenvolvimento social, é possível realmente organizar a luta contra o aborto por meio de leis proibitivas e de outras formas.”
Essa não foi a única “reforma” dos direitos reprodutivos na época do Stalin. Após a devastação causada pela Segunda Guerra Mundial, as autoridades fizeram uma nova tentativa de aumentar as taxas de natalidade com o novo Edito da Família, de 1944. Como mostra Mie Nakachi, o objetivo dessa lei (articulado apenas em uma nota complementar) era aumentar o número de filhos nascidos, mesmo que fora do casamento, pois isso era visto como a única solução para o desequilíbrio de gênero (isto é, a relativa falta de homens) resultante da guerra. O mecanismo para conseguir isso não era apenas dar mais apoio às mulheres, mas libertar os homens de qualquer responsabilidade pelas crianças nascidas fora dos casamentos oficiais.
Ao contrário do sistema anterior, pelo qual as crianças (nascidas dentro ou fora do casamento) tinham os mesmos direitos, a lei de 1944 introduziu a categoria de mães solteiras. Agora, quando os pais de uma criança não eram casados, a linha na certidão de nascimento do nome do pai seria simplesmente deixada em branco. Segundo as estatísticas apresentadas por Nakachi, isso não levou ao crescimento esperado na população soviética, mas o oposto. O resultado foi um aumento dramático do número de abortos ilegais, causando cerca de quatro mil mortes por ano entre 1949 e 1955, e também de supostos “órfãos” cujos pais ainda estavam, de fato, vivos.
Agência feminista – e seus limites
Mas isso serviu como um motivo de mobilização ao redor do tema. Diante dos problemas do declínio do crescimento populacional e das altas taxas de aborto ilegal, foram estabelecidas numerosas comissões interministeriais, com as mulheres em papéis de liderança. Uma dessas mulheres foi Maria Kovrigina (1910–1995), uma médica e administradora de hospitais. Ela era membro do Comitê Anti-Fascista das Mulheres Soviéticas, uma organização criada em 1941 para divulgar internacionalmente o projeto soviético de igualdade de gênero.
Nessas comissões, Kovrigina defendeu consistentemente mudanças legais mais amplas do que a mera expansão dos critérios para o aborto legal (e, por fim, a sua descriminalização completa). Mas ela só conseguiu fazer suas propostas depois de 1954, quando se tornou Ministra da Saúde soviética.
Ela conseguiu isso no ano seguinte com a lei de 1955 sobre “A Abolição da Proibição Contra o Aborto”, que proclamava que mudanças circunstanciais permitiam o levantamento da proibição. Como a lei afirmava, “as medidas adotadas pela União Soviética para promover e proteger as crianças e aumentar continuamente a conscientização e a cultura das mulheres, que estão ativamente envolvidas em todas as esferas da vida econômica nacional do país, agora permitem o abandono da proibição legal aos abortos. Isso pode ser devido à expansão das medidas estatais para promover a maternidade, bem como à educação e à conscientização”.
Nota-se que, como nas leis anteriores (legalizando ou criminalizando o aborto), o texto de Kovrigina foi novamente enquadrado como parte da proteção à maternidade e à infância. Por esse motivo, os estudiosos tendem a considerar a lei de 1955 como parte das políticas pró-natalidade da URSS, que eram projetadas para aumentar as taxas de natalidade. Mas o fato de os debates sobre o aborto na década de 1950 estarem fortemente ligados às pesquisas sobre as condições de vida das mulheres e das instituições de acolhimento de crianças também pode ser visto como parte da estrutura socialista-feminista pela justiça reprodutiva.
Tal estrutura (posteriormente desenvolvida, a seu modo, por feministas marxistas como Tithi Bhattacharya) estabeleceu uma conexão entre o direito de tomar decisões e as oportunidades materiais relacionadas à possibilidade de ter filhos. Portanto, olhar para a política de gênero soviética em termos da agenda feminista liberal de “direitos” pode não nos mostrar muita coisa. Por outro lado, adotar a perspectiva das feministas socialistas e marxistas pode nos ajudar a ter uma visão mais ampla.
Além disso, como mostra Nakachi, também havia uma lacuna entre a maneira como o aborto era discutido na comunidade médica profissional, inclusive pela própria Kovrigina, e a maneira como foi retratada na versão final da lei que ela apresentou ao Comitê Central do Partido Comunista. Por exemplo, durante uma discussão com a comunidade médica, Kovrigina havia dito que “as mulheres deveriam ter o direito de decidir por si mesmas”. Entretanto, ao elaborar a versão final da lei, ela usou a lógica e a linguagem da legislação mais restritiva do passado.
Isso nos mostra os limites da agência das mulheres e a possibilidade de mudar o discurso dominante sobre igualdade de gênero na União Soviética. Algumas forças da sociedade soviética resistiram, de fato, à mudança – Nakachi sugere que uma posição conservadora, contrária a qualquer discurso sobre o “direito de escolher”, estava sedimentada em todos os níveis, inclusive no Comitê Central.
Nesse sentido, o apelo de Kovrigina ao discurso dominante pode ter sido uma estratégia consciente para ajudar a fazer com que a lei fosse aprovada da melhor forma possível. Essa estratégia se assemelha ao conceito de “política de ocultação” do pesquisador Wang Zheng, implementado pela Federação das Mulheres da China (ACWF) na definição de políticas de gênero sob Mao Tsé-Tung. Como Wang diz, ao “articularem o forte apoio [da ACWF] às ‘tarefas centrais’ do Partido, as feministas estatais geralmente incorporaram um ‘texto oculto’ que visava promover diversos interesses das mulheres… camuflando a agenda feminista com a linguagem dominante do Partido.”
Forçadas ao empoderamento
Como um dos maiores exemplos de uma líder política na URSS dos anos 50, a biografia de Maria Kovrigina mostra como até mesmo as mulheres que entraram no mundo político de forma relutante puderam se tornar sujeitos políticos reais, promovendo os interesses das mulheres dentro do Estado soviético.
A biografia de Kovrigina era, de certa forma, típica da nomenclatura soviética de sua geração. Vinda do campesinato, ela aceitou a revolução (de fato, seu irmão mais velho foi fundador de uma organização bolchevique local) e ingressou no grupo juvenil Komsomol aos quatorze anos, ajudando a construir uma organização local pioneira. Sua formação profissional foi a medicina, mas sua carreira após a graduação se voltou para a administração de hospitais.
Enquanto ela trabalhava na organização dos hospitais de campanha na sua região natal, nos Urais, durante a Segunda Guerra Mundial, ela chamou a atenção de Moscou e foi pressionada a assumir cargos no governo. Ela tornou-se Vice-Chefe do Ministério da Saúde da URSS (1942–1950), Ministra da Saúde da República Socialista Federativa Soviética da Rússia (1950–54, RSFSR) e, finalmente, Ministra da Saúde da URSS (1954–1959). Ela também continuou sendo membro da presidência do Comitê Anti-Fascista das Mulheres Soviéticas.
O leitor observará que eu disse que Kovrigina foi “pressionada” a assumir os cargos mais elevados, pois ela repetidamente recusou essas nomeações. Ela não apenas tentou recusar o cargo de Vice-Chefe do Ministério da Saúde da URSS, como também tentou renunciar ao cargo de Ministra da Saúde da RSFSR, pois achava que não tinha os conhecimentos necessários para ocupar cargos com tais responsabilidades. Assim, ela negociou com o Comitê Central para embarcar em um programa de educação pessoal, que se iniciou em 1952.
É possível discernir que esse tipo de reação era parte de uma “síndrome do impostor” de uma mulher que foi pressionada a aceitar um cargo elevado. Por outro lado, esse exemplo tão impressionante também nos ajuda a pensar como a necessidade do Estado soviético de ter mulheres no governo – de acordo com uma retórica de igualdade de gênero – pode ser vista como uma forma de “empoderamento forçado” que acabou se transformando em subjetividade política.
A construção ideológica oficial da “mulher soviética” como emancipada e igual poderia, por si, criar um certo sentimento de empoderamento. Isso é óbvio pela maneira com que Kovrigina abordou o aborto em sua autobiografia não-publicada: como um sinal do respeito do Estado soviético pelas mulheres. Ela escreveu este texto na década de 1980 em uma obra que também incluía um capítulo sobre o aborto. Nas palavras dela: “A proibição do aborto humilhou a personalidade da mulher e controlou o lado íntimo da sua vida, além de ter feito com que muitas mulheres pagassem por ele com sua saúde e até com a própria vida.”
Movimento internacional
Não é surpreendente que Kovrigina tenha internalizado a retórica soviética sobre a igualdade das mulheres – e tenha tanto orgulho desse histórico. Afinal, desde o início da década de 1940, ela era responsável pela propaganda que promovia o projeto de gênero soviético internacionalmente. Aqui um outro fator importante da sua politização entra em cena: o seu engajamento no trabalho do Comitê Anti-Fascista das Mulheres Soviéticas (mais tarde renomeado Comitê de Mulheres Soviéticas, SWC) e, através dos seus esforços, a sua conexão com o movimento internacional das mulheres.
Como membro do SWC, Kovrigina participou de vários congressos internacionais como, por exemplo, o congresso fundador da Federação Democrática Internacional da Mulher (FDIM), em Paris, em 1945. A importância desses congressos para Kovrigina é evidente na organização do seu arquivo, submetido ao Arquivo Estadual da Federação Russa por sua filha após sua morte.
Os documentos de Kovrigina contêm artefatos dos congressos da FDIM, que ela guardou durante a vida toda, como, por exemplo, uma brochura do congresso da FDIM em Budapeste. A importância desses congressos para Kovrigina também é aparente pela maneira com que ela reflete sobre eles nas suas memórias – observando que sua primeira viagem ao exterior foi durante sua jornada ao congresso fundador da FDIM em Paris.
Além das emoções que ela recordou dessas viagens, esses congressos também deram à Kovrigina uma visão – ainda que mediada pela tradução soviética – das preocupações do movimento mundial das mulheres. Isso se deu particularmente em relação ao desenvolvimento mundial dos métodos contraceptivos – um tema que foi trazido de volta à URSS e levantado durante o debate sobre o aborto.
“Feminismo de Estado”
Ainda há muitos detalhes nesta história que precisam ser esclarecidos: que outros fatores fizeram com que esta lei fosse possível, quais forças resistiram a essas mudanças e quais outras iniciativas e debates foram realizados pelo grupo que desenvolveu a lei de 1955 que legalizou o aborto.
No entanto, a própria história de Kovrigina apresenta um paradoxo interessante para qualquer discussão sobre o feminismo soviético. De muitas maneiras, ela não tinha agência sob o seu processo de empoderamento. O reconhecimento desse fato corresponderia a uma caracterização negativa do projeto soviético de igualdade de gênero como “feminismo de estado” – isto é, como uma agenda feminista apropriada pelo Estado e depois simplesmente imposta aos cidadãos. De fato, como vimos, Kovrigina foi promovida contra sua vontade, provavelmente pelo aumento formal da “representação” das mulheres no governo.
Mas o resultado foi que Kovrigina realmente se tornou um ator político, lutando pelos direitos das mulheres. Como evidenciado pela história de muitas outras iniciativas legislativas relacionadas às mulheres na URSS após a Segunda Guerra Mundial, ela não foi a única mulher a assumir tais posições.
Apesar de todos os limites e da hipocrisia do socialismo soviético, a visão soviética sobre a igualdade de gênero possibilitou o surgimento de um certo tipo de subjetividade política feminina, que se sentia empoderada e era capaz de participar da formulação de políticas públicas. Apesar da suposição generalizada de que as mulheres desapareceram da política soviética após a abolição do Departamento das Mulheres, ativistas como Kovrigina mostram que a agência das mulheres não tinha desaparecido completamente.
Sobre os autores
é uma candidata a PhD no departamento de estudos de gênero da Universidade da Europa Central em Budapeste.