UMA ENTREVISTA DE
Oliver VargasQuando a primeira onda de infecções por coronavírus atingiu a América Latina, diversos governos no continente iniciaram medidas de contenção. Em vez disso, junto a Jair Bolsonaro do Brasil, a Bolívia se distinguiu pela incompetência de sua resposta – uma combinação de inação e repressão. Isso, talvez, devido à situação política desastrosa no país desde o golpe militar em novembro passado.
Nos meses seguintes à remoção de Evo Morales, o regime golpista expulsou centenas médicos cubanos, reduziu drasticamente o nível de cooperação com Rússia e China e interrompeu programas de saúde de larga escala iniciados sob a administração de Morales, como o Sistema Único de Saúde. Desde o golpe, diversos programas sociais, como Bono Juanctio Pinto, Bono Juana Azurduy e o Renta Dignidad, de transferência de renda, sofreram cortes drásticos ou foram efetivamente descontinuados.
Ao mesmo tempo, o regime tem utilizado a crise para arquitetar uma repressão autoritária. Ao passo em que aqueles que violam toques de recolher e medidas de quarentena estão sujeitos a dez anos de prisão, o governo nada fez para garantir assistência financeira ou mesmo segurança no emprego aos trabalhadores. Isso levou à protestos nos subúrbios da classe trabalhadora em El Alto e Oruro, e pelo menos 1.200 detenções. Isso se soma às centenas de ativistas e militantes do partido de Morales, o Movimiento al Socialismo (MAS), que têm sido perseguidos nos últimos meses.
O cenário também impactou o planejamento da nova eleição presidencial. O Supremo Tribunal Eleitoral (STE) da Bolívia – agora chefiado por Salvador Romero, um conhecido colaborador do candidato presidencial da direita, Carlos Mesa – decidiu adiar as eleições para uma data ainda indefinida em Julho ou Outubro. Isso complica ainda mais o já fragmentado mapa eleitoral da Bolívia, no qual o MAS ainda é o partido da liderança. Nas semanas que antecederam o surto de COVID-19, as pesquisas indicavam o candidato do MAS, Luis Arce Catacora, na liderança, captando cerca de 33% dos votos no primeiro turno – uma vantagem de mais de 15% contra Mesa e a presidente pós golpe, Jeanine Añez.
Luis Arce Catacora, mais conhecido como “Lucho”, foi ministro das finanças no governo Morales, de 2006 até o golpe em novembro de 2019 (com uma breve ausência devido à problemas de saúde em 2018). Em sua função, ele supervisionou a nacionalização da indústria de hidrocarboneto, a instituição de diversos programas sociais, o reconhecimento do setor “social-popular” da economia e o início do programa de industrialização da Bolívia.
Ele sentou junto à Oliver Vargas, em Cochabamba, para discutir a atual situação do país.
OV
Liderando a eleição presidencial, muitas pessoas estão prevendo uma vitória do MAS. Mas ele será permitido a vencer – e esta eleição será livre, justa e transparente?
LA
Primeiramente, devo dizer que esta campanha é totalmente diferente das anteriores. Aqui, temos que lidar com diversos fatores – o governo golpista, a mídia, o Supremo Tribunal Eleitoral e todas suas regras. Estamos diante de uma campanha difícil.
Na última pesquisa estávamos ganhando por mais de 15%, mas acreditamos que no fim desta batalha, seremos a única candidatura viável. Por que isso? Bem, todos estão comentando a respeito. Eles disseram que o MAS estava morto ano passado e que jamais iria se recuperar. Mas, em menos de quatro meses, o MAS está liderando as pesquisas e temos certeza que ganharemos estas eleições.
OV
Você está podendo promover a campanha livre e abertamente? O governo realizou acusações falsas contra você. Outros candidatos, como Andrónico Rodríguez, também estão sendo acusados.
LA
Com certeza é mais difícil para nós sob este governo. Ele está buscando processar a todos, do MAS, do governo anterior do presidente Evo, pessoas que trabalharam com ele, pessoas dos movimentos sociais. Eles também estão sendo acusados de muitas coisas, encarando tribunais, etc. Então, é muito difícil para nós realizar uma campanha livremente. Nos defrontamos com perseguições, vigilância, e quem está monitorando você e suas ações também está monitorando sua família. É uma situação muito difícil para nós – mas estamos lidando com isso o melhor que podemos.
OV
A preocupação agora é se as eleições irão acontecer. Muito se fala sobre sua suspensão e o governo pode querer usar o problema do coronavírus para suspender ou cancelar as eleições, agora que o MAS está na frente.
LA
Eles deixaram o vírus adentrar o país e não fizeram nada a respeito. Agora que o vírus está aqui, eles estão tomando algumas atitudes que não ajudam e agora a população está exposta. Eu não acho que estão fazendo um bom trabalho para evitar um contágio maior.
Outra questão que me muito me preocupa é a economia – todos os dias ela está indo ladeira abaixo. Não há empregos, não há renda, não há atividade na economia. Não é somente por conta do vírus, mas porque ano passado eles começaram a substituir nosso modelo por um neoliberal. O que não tem sido bom para as pessoas.
Mas o governo está usando o coronavírus como pretexto para justificar tudo que estão fazendo de ruim desde o ano passado – então é muito importante separar estas duas coisas. Os problemas econômicos que começaram ano passado estão sendo sentidos agora e o vírus sendo usado como desculpa para justificá-los. Em certo sentido, é uma boa desculpa, pois todos estão preocupado com o problema do vírus.
OV
Voltando aos problemas econômicos, a atual presidente, Jeanine Áñez, está concorrendo junto a Samuel Doria Medina, que foi ministro em governos anteriores. Qual é o projeto econômico dele?
LA
Ele não fez nada a não ser neoliberalismo e não compreende qualquer outro modelo, como o nosso [do MAS]. Se ganharem, irão implementar medidas de livre mercado – para ele, está é a única coisa que podem fazer. Certamente irão se voltar a privatizações, para [uma situação de] corporações que ganham muito dinheiro e de muita pobreza. Isso foi o que aconteceu nos anos 1980 e 1990 durante a era neoliberal na Bolívia. Não acho que tenham mudado de opinião.
Se realizarem privatizações neste período, teremos que nacionalizá-las novamente, é claro. Se não há privatização, será possível garantirmos financiamento para nossos programas sociais, pois eles não estão somente baseados em impostos, mas também pela renda de empresas públicas que temos desde [a primeira eleição de Morales em] 2006. Nós precisamos de empresas públicas e também de uma sólida receita de impostos para garantir todos os programas sociais que temos.
OV
E sobre a questão do lítio? O governo está no processo de privatizar as reservas de lítio da Bolívia? Se forem privatizadas, certamente nacionalizá-las novamente custará caro.
LA
Bem, não sabemos o que eles querem fazer com nosso lítio, mas está claro que estão negociando com algumas empresas estadunidenses. A despeito disso, temos que garantir que o lítio será industrializado dentro da Bolívia, com nossa companhia [estatal] aqui. Isso significa criação de empregos para a população e receitas de valor agregado, e não apenas exportar lítio puro. Então, vamos seguir nossa política de industrializar todos recursos naturais que temos, é claro.
OV
Algum progresso foi feito no processo de industrialização de gás natural. A Bolívia importava gás refinado, mas qual é a situação agora?
LA
Atualmente temos uma planta industrial de ureia e amônia que abrimos quatro anos atrás, está em funcionamento, temos que otimizá-la e exportar mais ureia, que é um produto com valor agregado, e temos muitos projetos idealizados para industrializar todos recursos naturais que temos. Continuaremos a aplicar a mesma política de antes.
OV
Nos últimos quatorze anos a Bolívia registrou um notável crescimento econômico, com certeza atraindo a atenção do mundo. A industrialização de recursos naturais é o objetivo? Para onde o país estaria caminhando se não fosse o golpe?
LA
A base do modelo é nacionalizar recursos naturais, receber os devidos benefícios e então distribuí-los entre a população. Mas há um outro elemento, não se trata apenas de nacionalizar os recursos naturais, mas também sua industrialização. Isso nos permitirá aumentar a receita e assim, seguir o processo de redistribuição na Bolívia. Os resultados deste modelo eram muito melhores [daqueles que ocorriam antes do governo de Morales].
OV
Quando você era ministro das finanças, trabalhava com muitos países, desenhando diversos acordos de intercâmbio. Qual foi sua experiência com os Estados Unidos, em comparação com países como Rússia e China? Eles ofereciam uma cooperação mais igualitária?
LA
Bem, nós não acreditamos em livre mercado, muito menos em livre mercado internacional. Acreditamos em acordos de intercâmbio que beneficiem as pessoas, em vez de acordos baseados apenas no livre mercado, em que os preços determinam tudo na economia.
Com os Estados Unidos, eles não queriam nada que não fosse livre mercado e acordos de livre comércio. No sentido contrário, China, Rússia, e outros países gostam de realizar outros tipos de acordos, de comércio, investimento, turismo etc. Portanto, é muito mais benéfico à economia boliviana firmar acordos com estes tipos de país do que os acordos de livre comércio que os Estados Unidos possuem com outros. Ainda assim [sob o governo golpista] há um esforço para expulsar investimentos russos e chineses; testemunhamos o desmantelamento da planta nuclear em El Alto.
OV
Uma das primeiras mudanças do novo governo foi no campo da política externa boliviana, se afastando de aliados latinos como Cuba e Venezuela, e se aproximando de países como Estados Unidos e Israel. Isso será revertido?
LA
Com certeza. Já disse isso anteriormente para diversas mídias: iremos mudar toda política externa que existe agora e retornar à política que tínhamos antes, que era muito útil para a Bolívia. Temos certeza sobre a necessidade de uma mudança para retornar aos tratados e acordos que existiam anteriormente.
O governo atual agiu mal aqui. Precisamos de relações com Cuba e China – veja o que estão fazendo no setor médico com a atual questão do vírus. Eles têm pesquisa, têm vacina, então estamos mais do que felizes em trabalhar com Cuba, com a China. Mas este governo não pode fazer isso, pois rompeu estas relações.
OV
Pensando nos treze anos de governo do MAS, há áreas que poderiam ter sido alvo de alguma melhoria – ou algo que pudesse ser feito para prevenir o golpe de novembro?
LA
Creio que esta é uma questão complexa – pois há muitas coisas que poderíamos ter feito para evitar tudo que aconteceu. Por exemplo, está claro que a economia por si só não é suficiente para as pessoas. Não fizemos um bom trabalho [fora disso], então é necessário educação política [para além dessa questão]. Estávamos trabalhando apenas na economia, mas está claro que as perspectivas econômica e política devem caminhar juntas.