No fim de março, o tráfego marítimo do canal de Suez foi interrompido quando o Ever Given, um colossal navio porta-contêineres, ficou entalado entre as duas margens. O acidente pôs em foco tanto a fragilidade do comércio capitalista global quanto o papel do canal de Suez como conector essencial dos negócios marítimos internacionais e como lugar estratégico almejado por poderes imperiais europeus e, mais recentemente, por Israel.
Em média, 50 navios percorrem diariamente os 193 km do canal, transportando quase 30% do tráfego mundial de contêineres, 12% do comércio marítimo, 10% de todo o óleo bruto ou petróleo refinado no mundo, e um terço do gás líquido natural importado do Qatar para a Grã-Bretanha.
Com o tráfego interrompido em ambas as direções, mais de 300 navios esperavam para navegar pelo canal. Cada hora de atraso custou US$ 400 milhões em seguros e multas, de acordo com uma estimativa da Lloyd’s List. Sem saber quanto tempo levaria para liberar o canal, certos navios optaram por atravessar o cabo da Boa Esperança, prolongando a viagem em duas semanas e aumentando em US$ 26 mil dólares por dia os gastos com combustível. Estima-se que o governo egípcio tenha perdido US$ 95 milhões em receitas devido ao acidente com o Ever Given.
O Ever Given pertence a uma subsidiária de uma grande empresa japonesa de construção naval. É fretado e operado por uma companhia de remessa em contêineres baseada em Taiwan. Uma empresa alemã é responsável pela operação técnica. O registro foi feito no Panamá.
Como vários outros países, o Panamá tem uma política de “registro aberto”, que permite que embarcações cujos proprietários e operadores sem conexão alguma com o país possam hastear sua bandeira. Esta prática foi introduzida na era da Lei Seca dos EUA para permitir que navios dos EUA fossem registrados no Panamá para contornar a lei e servir bebidas alcoólicas aos passageiros.
Hoje em dia, o Panamá permite que os proprietários registrem navios pela internet. Sem a obrigação de pagar imposto de renda. E as regulamentações laborais e de segurança do Panamá são mais complacentes que a dos tradicionais países marítimos do Atlântico Norte. O emaranhado de registro, propriedade e responsabilidades técnicas do Ever Green, além da presença mandatória de dois pilotos egípcios em todos os navios que transitam pelo canal, representarão sérias dificuldades na hora de determinar a quem cabe responsabilidade pelo acidente.
Em parte porque VLCCs e ULCCs — very large crude carriers e ultra-large crude carriers, navios petroleiros capazes de transportar pelo menos dois milhões de barris de petróleo — não podem transitar o canal de Suez transportando a carga máxima, a importância do canal como artéria de transporte global diminuiu. Ainda assim, sua importância material e simbólica para o Egito é enorme.
Uma história imperial
A construção do canal de Suez foi resultado de uma rivalidade imperial entre a Grã-Bretanha e a França ao longo do Oriente Médio e do Norte da África. Os britânicos, que tinham começado a construir um caminho ferroviário no Egito, optaram por uma rota terrestre que conectasse o Egito à Índia pela península do Sinai.
Para contorná-los, o empreendedor francês Ferdinand de Lesseps conseguiu uma concessão do governo egípcio para construir o canal de Suez em 1854. Em 1858, De Lesseps registrou a Companhia Universal do Canal Marítimo de Suez em Paris. Em troca da concessão, 44% das ações do canal foram alocadas ao governo do Egito.
De Lesseps persuadiu os governantes do Egito a obrigar camponeses egípcios a trabalhar na escavação do canal em troca de uma remuneração ínfima. Já em 1862, mais de 55 mil homens e meninos viviam em campos de trabalho superlotados em abrigos exíguos enquanto trabalhavam. Estima-se que 100 mil egípcios tenham morrido durante a construção do canal, entre 1859 e 1869.
Durante a Guerra Civil dos Estados Unidos (entre 1861 e 1865), o Norte obstruiu os portos do Sul, provocando uma escassez mundial de algodão. Com os preços do algodão egípcio em alta histórica, os bancos europeus avidamente emprestaram ao governante Viceroy Ismail enormes quantias de dinheiro para ambiciosos projetos de cultura e infraestrutura, a taxas de juros exorbitantes.
Com o fim da Guerra Civil e o retorno do algodão ao mercado mundial, os preços baixaram, e o Egito não pôde quitar as dívidas. Em 1875, Viceroy Ismail vendeu a parcela de ações do canal que pertencia ao Egito por uma bagatela ao governo britânico. A Grã-Bretanha garantiu controle completo do canal quando invadiu e ocupou o Egito em 1882.
A crise dos anos 1950
Em 1952, o Movimento dos Oficiais Livres, liderado por Gamal Abdel Nasser, depôs a monarquia egípcia e estabeleceu uma república pretoriana. Nasser e sua junta tentaram expulsar os colonizadores britânicos, garantir ao Egito independência absoluta e egitianizar os altos escalões de comando da economia, até então dominada por empresas europeias e minorias não-muçulmanas locais.
Os últimos soldados britânicos deixaram o Egito em junho de 1956. A essa altura, Nasser já se tornara um líder global do Movimento Não Alinhado, cujo objetivo era estabelecer uma alternativa ao sistema internacional definido pela Guerra Fria.
Apesar da postura anticomunista de Nasser, os EUA se recusaram a vender armas ao Egito. Nasser então recorreu ao bloco soviético, e no dia 27 de setembro de 1955, anunciou um acordo armamentício com a Tchecoslováquia.
Na esperança de trazer o Egito de volta para o lado ocidental, os EUA e a Grã-Bretanha concordaram em financiar a construção da Grande Barragem de Aswan, a principal prioridade infraestrutural de Nasser. Mas a visão maniqueísta do mundo do Secretário de Estado dos EUA John Foster Dulles não pôde tolerar que Nasser continuasse apoiando e praticando o não-alinhamento. No dia 18 de julho de 1956, Dulles voltou atrás na oferta financeira dos EUA, mandando ao Egito uma mensagem propositalmente ofensiva. A Grã-Bretanha seguiu o exemplo.
Nasser reagiu com mais ousadia que o esperado, estatizando o canal de Suez. Em resposta, em outubro de 1956, a França, a Grã-Bretanha e Israel invadiram o Egito. As forças militares israelenses venceram as egípcias com facilidade, e ocuparam a península do Sinai e a Faixa de Gaza. Tanto os EUA como a União Soviética exigiram o recuo das tropas israelenses. Mas antes do fim da guerra, o Egito afundou 40 navios no canal, obstruindo o tráfego comercial por oito meses, até que os navios foram removidos.
Depois que Israel atacou o Egito na Guerra Árabe-Israelense de 1967, o Egito bloqueou ambos os acessos, pôs navios e minas explosivas no canal. A passagem ficou obstruída por oito anos, até que o início do processo de paz ao fim da Guerra Árabe-Israelense de 1973 devolveu ao Egito controle absoluto sobre o canal em junho de 1975.
A situação atual
O fechamento do canal de Suez durante as guerras de 1956 e 1967 estimulou o fenômeno dos navios contêineres e criou as condições para o acidente do Ever Given.
A conteinerização permite a carga e descarga de caixotes de metal capazes de transportar qualquer tipo de mercadoria diretamente em navios e caminhões ou trens. Essa inovação reduziu drasticamente a necessidade de estivadores nos portos – que constituía tanto o gasto com assalariados das frotas mercantes como, historicamente, um setor particularmente militante da classe operária.
O fechamento do canal de Suez por períodos prolongados obrigou o tráfego marítimo a tomar a rota mais longa, contornando o Cabo da Boa Esperança. Isso encorajou operadoras de transporte marítimo a buscar maiores margens de lucro através de economia de escala, implementando navios porta-contêineres ainda maiores. O Ever Given, com 400 metros de comprimento, é um dos maiores do mundo. Embarcações de dimensões enormes, com contêineres empilhados no convés, são vulneráveis a ventos fortes, um dos fatores no acidente do Ever Given.
Em 2014-2015, o Egito inaugurou o gigantesco Projeto da Área do Corredor do Canal de Suez, que acarretava em amplos projetos regionais de infraestrutura e na construção de uma nova faixa de 35km paralela ao canal, com um custo de US$ 8.2 bilhões. A nova faixa permite que embarcações naveguem em ambas as direções simultaneamente por grande parte da extensão do canal. O acidente do Ever Given ocorreu numa parcela do canal que ainda é de mão-única.
O governo egípcio afirmou que, ao dobrar a capacidade do canal para 97 navios por dia, ou 35.400 por ano, a nova faixa aumentaria a receita do canal de Suez para US$ 13.5 bilhões até 2023. Mas em 2020, 18.840 navios atravessaram o canal, pagando US$ 5.61 bilhões em pedágios. O crescimento do comércio internacional ainda não foi suficiente para compensar o investimento, e não há previsão de que isso ocorra num futuro próximo.
Assim como intervenções imperialistas privaram o Egito da maior parte dos benefícios do canal de Suez no século dezenove, sua posição subordinada no mercado capitalista global provavelmente impedirá que o país atinja seus objetivos econômicos com o canal também neste século – mesmo agora que o Ever Given não está mais no caminho.
Sobre os autores
é professor emérito e ocupa a cadeira Donald J. McLachlan de História e História do Oriente-Médio na Universidade de Stanford. Seu livro A Critical Political Economy of the Middle East and North Africa foi publicado pela Stanford Univesity Press.