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A produção de alimentos saudáveis, em quantidade e qualidade abundantes nos moldes da agroecologia, restituindo a relação sociometabólica com a natureza como princípio organizador das relações produtivas, se torna um ato de enfrentamento efetivo ao agronegócio. Foto de Ueslei Marcelino/Reuters.

A atualidade da reforma agrária

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No primeiro ano da pandemia, 116,8 milhões brasileiros passaram por algum grau de insegurança alimentar e 19 milhões se encontram em situação de fome. Mas não precisava ser assim. O MST, mesmo sendo alvo histórico da violência estatal no campo e da perseguição midiática, coloca em prática nos assentamentos a solução tanto para os problemas alimentícios quanto à devastação ambiental.

Quando 21 trabalhadores rurais foram assassinados pela Polícia Militar durante uma marcha organizada pelo Movimento dos Trabalhadores Rurais Sem Terra (MST) no estado do Pará, em 17 de abril de 1996 o mundo passou a conhecer um dos pontos candentes da questão agrária brasileira: a violência. Esse episódio será para sempre lembrado como o Massacre de Eldorado de Carajás.

Passados 25 anos, o país consolidou um complexo ramo de agronegócios, cujo PIB-Renda foi estimado pelo Centro de Estudos Avançados em Economia Aplicada da Esalq/USP em consórcio com a Confederação Nacional da Agricultura em R$ 1,6 bilhões ao ano entre 1996 e 2019.

Toda essa pujança, no entanto, não foi acompanhada pelo fim da violência no campo: entre os mesmos anos foram assassinados 320 trabalhadores e trabalhadoras somente no Pará, estado que segundo os relatórios anuais da Comissão Pastoral da Terra (CPT) figura entre os com maior número de conflitos por terra do país. O padrão de desenvolvimento do agronegócio está vinculado de forma visceral às mais variadas formas de violência: desde a manutenção da estrutura fundiária altamente concentrada até o padrão de produção destrutivo, que tende a eliminar os recursos ecológicos e naturais disponíveis.

Reestruturação e desmontes 

Desde os anos de 1970, sob a ditadura civil-militar (1964-1985), o campo vem experimentando uma reestruturação produtiva permanente: primeiro, com a integração da base técnica da agricultura à indústria – como propôs o economista Guilherme Delgado – a partir daquilo que se convencionou chamar de incorporação do pacote tecnológico da Revolução Verde; mais tarde, com a reorganização técnico-operacional das atividades agropecuárias, sob o influxo do agrobusiness e de uma cada vez maior transnacionalização das cadeias de produção. 

Em certo sentido, a emergência de um padrão de desenvolvimento do agronegócio no Brasil é concomitante ao processo de ajuste estrutural da economia nacional à nova divisão internacional do trabalho, na qualidade de fornecedor de commodities articulado ao papel de valorização financeira para o capital transnacional apátrida. A expressão mais visível deste processo é que na presença de uma forte desindustrialização, com perdas dos setores de progresso técnico e tecnológico, o país passa a priorizar o setor primário. Tudo isso, ambientado pela adesão inconteste à visão neoliberal de que “não há alternativa” (there is no alternative)

No curso da década de 1990, se consolidou uma presença maciça do capital transnacional no comando das cadeias produtivas do campo brasileiro, resultado de centenas de operações de fusão e aquisição doméstica e transfronteiriça nos mais diversos setores, conduzidas, sobretudo, pelas corporações Cargill, Dow Agrosciences, Monsanto, Bunge, ADM.

Surge também uma nova concepção de “negócios no campo” que combinado com a ascensão do que hoje é chamado de Agricultura 4.0 da biotecnologia e da informatização nos processos produtivos (na qual o Brasil ainda é bastante incipiente), irão alterar a anatomia da agropecuária, ao emergir um complexo setor de agroserviços e a financeirização crescente das operações do agro. Ao mesmo tempo, a economia política dos agronegócios pressionará a abertura de novas fronteiras agrícolas, em regiões como do Matopiba, composta por áreas compartilhadas dos estados do Maranhão, Tocantins, Piauí e Bahia. 

Ao longo deste processo, a agricultura de pequena escala, camponesa, lastreada no trabalho familiar, foi sendo integrada a esta concepção sistêmica e funcional da agropecuária. Veio à cena a categoria “agricultura familiar”, modificando o significado histórico da reforma agrária para uma “política de mercado”, não mais assentada na desconcentração fundiária, mas em uma suposta modernização desta nova categoria denominada de agricultura familiar e sua integração ao mercado, tal como formulada pelo Banco Mundial.

Aos poucos, a reforma agrária, enquanto política pública capaz de superar os problemas agrários e paradigma de análise do desenvolvimento capitalista do campo, tornou-se letra morta, exceto pelas vias da luta pela terra, cujo MST é sua expressão mais viva.

Desde o 1º Plano Nacional de Reforma Agrária (PNRA), de 1985 até 2018 foram assentadas pouco mais de 1,3 milhão de famílias. Para termos ideia, a meta da primeira edição do plano, exposta em seu artigo primeiro, era assentar 1,4 milhão de famílias entre 1985 e 1989. 

Entre 1995 e 2018, o Incra criou 8.847 assentamentos em uma área que corresponde a 72,4 milhões de hectares. Porém, somente entre 2003 e 2010, período da belle époque do chamado neodesenvolvimentismo, apenas 130 mil proprietários incorporaram mais de 100 milhões de hectares, passando a controlar, à época, 318 milhões de hectares do território brasileiro, segundo dados do Cadastro de Imóveis do Incra.

MST, o maior produtor de arroz orgânico da América Latina, estima colher mais de 12,4 mil toneladas na safra 2020/2021

Se observarmos a dinâmica da política de assentamento rural pelo turno do número de famílias assentadas a cada ano, praticada desde 1985, percebemos um pico apenas em 1998, quando 101,1 mil famílias foram beneficiadas. Estes dados despencaram até 2003 e voltam a subir a partir dos anos seguintes, alcançando seu ápice em 2006, com 136,4 mil famílias assentadas em um único ano. Desde então, há uma constante diminuição destas cifras, chegando a zero agora no governo Bolsonaro. Por alguns anos, a agricultura familiar – o novo paradigma que subverteu a reforma agrária – logrou inúmeras linhas de financiamento para a estruturação sócio-produtiva dos assentamentos, tendo para si, ainda, um importantíssimo “mercado institucional”. 

Este progresso, porém, manteve-se preso à conjuntura econômica, política e social que deu sustentação aos melhores anos do neodesenvolvimentismo. Já sob o governo de Dilma Rousseff, impactado pela crise financeira de 2008 e a consequente debacle da belle époque das commodities, a governança institucional do novo paradigma de reforma agrária passou a ser desmontada. A partir do golpe contra a ex-presidenta, não sobrou nem mesmo o Ministério do Desenvolvimento Agrário (MDA), antigo gestor da política de assentamentos rurais e regularização fundiária, criado ainda por Fernando Henrique Cardoso, quando as contradições da questão agrária brasileira vieram à público com o Massacre de Carajás.

Na entrada da segunda década do século XXI, a consolidação da hegemonia do agronegócio no campo contou com uma importante transição, cuja integração da agricultura de pequena escala aos agronegócios deu lugar a um ataque feroz do capital sobre os territórios conquistados pela luta dos Sem Terra e a eliminação de quaisquer políticas que acenem à agricultura familiar.

Bolsonaro e a boiada

Com a chegada de Bolsonaro ao governo federal, ganha força uma agenda de remodelagem normativa das questões agrárias, como a regularização da grilagem das terras públicas, a inclusão de povos indígenas, quilombolas, florestas públicas e assentamento de reforma agrária no mercado de terras e a paralisação completa dos processos de arrecadação de áreas para novos assentamentos de famílias sem terra, violando flagrantemente o artigo 188 da Constituição Federal.

Uma expressão atual do movimento de entrega do patrimônio público para o agronegócio é o programa “Titula Brasil”, lançado em dezembro de 2020. Este programa é fruto de uma portaria conjunta da Secretaria de Assuntos Fundiários do Ministério da Agricultura e do Incra, que tem o objetivo de retomar a grilagem massiva de terras no país. O programa é propagandeado pelo governo como a titulação de pequenos posseiros e de assentamentos de reforma agrária. No entanto, na realidade, ele repassa para os municípios a responsabilidade de identificar e regularizar áreas de até 2.500 hectares em todo o território nacional.

A portaria bloqueia a arrecadação de novas terras públicas para reforma agrária, a demarcação de terras indígenas e o reconhecimento de áreas quilombolas. Não obstante, fere requisitos constitucionais, ao estimular a alienação de terras públicas sem licitação com alto limite de extensão (2.500 hectares) e, principalmente, obtusa o dispositivo constitucional consagrado no artigo 188, que define a destinação das terras devolutas da União à reforma agrária.

Outro ponto que merece destaque e que está relacionado à apropriação de patrimônio público pelo agronegócio e o aprofundamento do controle do capital financeiro sobre as atividades agropecuárias, é o recém aprovado Fundo de Investimento nas Cadeias Produtivas Agroindustriais (Fiagro), que possibilita a captação de recursos financeiros, no país ou no exterior, para investimento no setor agropecuário por diversas formas, como aquisição direta de imóveis rurais, participação societária, títulos, entre outras. Dado o contexto das alterações em curso na regulamentação das questões agrárias, é de se questionar se as propriedades rurais negociadas nos fundos do Fiagro são cumpridoras da função social e ambiental da propriedade e sua origem – se vindas de terras públicas apropriadas de forma irregular.

A paralisação da reforma agrária expressa no Memorando 01/2019, como um dos primeiros atos do governo Bolsonaro, configura grave crime contra o direito constitucional assegurado aos trabalhadores sem terra e vai na contramão de políticas necessárias para combater a fome, o desemprego e a falta de renda. O Brasil, mais do que nunca, precisa de uma ampla reforma agrária como medida estruturante à produção de alimentos. No primeiro ano da pandemia, 116,8 milhões de brasileiros passaram por algum grau de insegurança alimentar, sendo que 19 milhões se encontravam em situação de fome, como aponta o Inquérito Nacional sobre Segurança Alimentar no Contexto da Pandemia da Covid-19 no Brasil.

Não podemos deixar de mencionar o fator de desequilíbrio ambiental imposto pelo avanço da fronteira agrícola e mineral, com a destruição de florestas, manejo intensivo de solos e liberação desenfreada de agrotóxicos. Em 2019, Thomas E. Lovejoy e Carlos Nobre alertaram para o que seria um “ponto de não-retorno” – ou um tipping point – da devastação da Amazônia que, em sua totalidade, alcançava 17% de toda a bacia e quase 20% no Brasil. Dois anos antes, os cientistas do Instituto Internacional para a Sustentabilidade (IIS) chamavam a atenção para o que seria o “momento of truth” do Cerrado que, frente à expansão dos setores primários, colocam em risco a extinção de 200 milhões de hectares da savana tropical brasileira. Naquele momento, restava somente 19,8% da cobertura vegetal original deste bioma. Isto para não falar da Mata Atlântica, de cuja cobertura original restava apenas 12,4% em 2019, conforme relatório da ONG SOS Mata Atlântica.

Diante deste cenário, evidencia-se a urgência da retomada da reforma agrária, não apenas em um sentido de redistribuição de terras, mas como possibilidade de construção de um novo modelo de produção de alimentos, com base agroecológica e popular.

Mas qual reforma agrária?

Portanto, ao contrário do discurso dos capitalista, que a ascensão dos agronegócios reconfigurou a questão agrária brasileira. Hoje, os problemas agrários se conectam à concentração fundiária, ao controle do capital transnacional sobre a exploração agropecuária, à utilização intensiva de fatores de produção, como os agrotóxicos altamente destrutivos para a natureza e à saúde humana, assumindo um forte caráter ecológico. Além de continuar vindo à cena diariamente sob a forma de inúmeros conflitos socioambientais. 

Num contexto de crise civilizatória da sociedade do capital – que se expressa, entre outros, pela crescente investida contra os recursos naturais e ecológicos e sobre as forças e direitos do trabalho – o enfrentamento das questões agrárias passa, necessariamente, pela construção de um programa capaz de atender ao intercâmbio produtivo com a natureza substantivamente sustentável junto à liberação das forças vivas do trabalho para a sua potencialidade criadora.

Em termos práticos, significa um vasto processo de distribuição de terras, articulado à constituição de outra economia agrária, cuja lógica seja baseada nas necessidades humanas em contraposição à acumulação de capital. Neste sentido, a produção de alimentos saudáveis, em quantidade e qualidade abundantes nos moldes da agroecologia, restituindo a relação sociometabólica com a natureza como princípio organizador das relações produtivas, se torna um ato de enfrentamento efetivo ao agronegócio.

Um novo programa de reforma agrária deve levar em conta a totalidade das relações sociais, pressupõe uma profunda transformação das bases organizativas da sociedade do capital – cuja viabilidade implica romper a fronteira do campo e alcançar a cidade, constituindo-se numa luta de todos, enquanto parte de um movimento de transição social, político, econômico e (agro)ecológico.

Sobre os autores

é docente da Universidade do Estado de Minas Gerais, Unidade Passos e coordenador do Grupo de Estudos sobre Crise, Neodesenvolvimentismo e Direitos Sociais (GEIND), UEMG/CNPq.

é economista e pesquisador do Observatório da Questão Agrária do Instituto Tricontinental de Pesquisa Social.

Cierre

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Published in Agricultura, América do Sul and Análise

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