Marco Aurélio Garcia talvez tenha sido o petista mais longevo no alto escalão do governo federal – como “assessor especial da presidência para assuntos internacionais” ficou do primeiro dia do governo Lula ao último dia do governo Dilma (com uma breve saída no qual se licenciou para assumir interinamente a presidência do PT). Sua presença no Planalto não era exatamente celebrada pela direita – a revista Veja chegou a publicar uma fofoca segunda a qual um “alto integrante da cúpula governamental” teria chamado Marco Aurélio de “um ideólogo perigoso”, que precisaria ser afastado dos ouvidos do presidente Lula. A preocupação tinha seu fundamento: Marco Aurélio era decididamente um homem da esquerda.
Ativo no movimento estudantil dos anos 60, foi vice-presidente da UNE e vereador em Porto Alegre, pelo Partido Comunista. Após o golpe de 1964, se uniu à dissidência. Exilado no Chile, é testemunha dos anos turbulentos do governo da Unidade Popular, e torna-se militante do Movimiento de Izquierda Revolucionária (MIR). Após o golpe de Pinochet, vai para a França, onde se aproxima de intelectuais como Cornelius Castoriadis e Claude Lefort, que haviam feito parte do grupo “Socialismo ou Barbárie”. Com a anistia, em 1979, retorna ao Brasil, e trabalha com publicações de esquerda como o jornal Em Tempo e a revista Desvios, que reunia intelectuais petistas próximos do autonomismo, como Eder Sader, Marilena Chauí e Vera Telles.
Marco Aurélio foi um dos fundadores do Partido dos Trabalhadores (PT), e na década de 90, como secretário de relações internacionais do partido, se destaca como um dos principais idealizadores e organizadores do hoje famigerado “Foro de São Paulo”, uma iniciativa inovadora que reunia organizações políticas da esquerda de toda América Latina e Caribe. “MAG”, como era frequentemente chamado por amigos e correligionários, foi um participante ativo dos debates sobre qual seria a melhor estratégia para a esquerda brasileira. Suas reflexões sobre o rumo das esquerdas e a construção do socialismo – parte disponibilizada pela Fundação Perseu Abramo em uma coletânea que leva o nome de seu último artigo, “Construir o amanhã” – são um rico material para pensar as tarefas dos socialistas nesse novo momento político.
Na ocasião do aniversário de seu falecimento, reproduzimos abaixo um texto de 1982, originalmente publicado na Desvios, no qual Marco Aurélio discute as grandes greves do ABC e a recomposição política de um novo movimento operário. Chama atenção que MAG parece estar preocupado em articular duas perspectivas, por vezes conflitante, nos movimentos da classe trabalhadora, a da autonomia e a da hegemonia:
“A construção do movimento operário em São Bernardo é a história de um movimento autônomo que luta por reivindicações específicas mas que se constitui no (e pelo) enfrentamento concreto dos limites que lhe são impostos pela ditadura e pelos projetos democrático-burgueses da oposição parlamentar. Não será isto o processo de construção de uma nova hegemonia?”
A (auto)construção de um movimento operário
Se é certo que a maioria dos analistas não ficou indiferente “à novidade” destas lutas, não é menos certo que a reflexão até agora realizada não captou com devida profundidade a extensão e as conseqüências destes quatro movimentados anos.
Não é pretensão destas notas realizar este balanço – que se faz, no entanto, cada vez mais necessário. Menos ainda se pretende dar respostas às questões suscitadas por esta extraordinária mudança no quadro das lutas sociais.
Busca-se aqui, fundamentalmente, sistematizar e/ou tornar mais visíveis problemas que o próprio movimento colocou. As respostas às candentes questões por ele levantadas só poderão partir do interior do próprio movimento. Afinal esta parece ser a “novidade” mais importante que as lutas do ABC trouxeram: grandes contingentes de trabalhadores se puseram em movimento, não porque sobre eles se tivesse derramado alguma clarividência teórica ou organizativa. Ao contrário, foi a prática da luta social que levou os trabalhadores a avanços inigualáveis em termos de consciência e organização.
No ABC inverteu-se a expectativa de muitos de que um dia a teoria chegasse à classe operária, para melhor guiá-la: foi a classe que chegou à teoria. Não há, pois, como recusar-se a pensar este problema.
O que caracteriza o movimento que se constitui nestes últimos anos no ABC não é somente seu caráter massivo e sua combatividade, mas, sobretudo, sua crescente autonomia frente ao Estado e às organizações políticas. Torna-se da maior relevância tentar contribuir para a reconstituição de um processo de (auto)construção de um movimento operário que apresenta estas características, tão raras na história do Brasil.
Auto-construção, e por isto a análise se concentra na prática mesma da classe, privilegiando o processo pelo qual os trabalhadores de São Bernardo, em suas múltiplas formas de luta contra a multiplicidade de manifestações da exploração e da opressão capitalistas, se descobrem como classe, transformando esta descoberta em consciência de classe.
A análise do movimento operário não partirá de “causas estruturais”, entendidas enquanto racionalidade que se encontra fora dele. O movimento operário não é reflexo de “estruturas” econômicas ou políticas. Ele se autodetermina; sua racionalidade está no seu interior, na forma pela qual ele faz (e se constitui na) história, isto é, na luta de classes.
A classe operária “se define a si mesma em seu efetivo acontecer”; ela não é mais do que “uma formação histórica que surge da luta de classes.”
Da prática de classe a uma política classista
1978: a abertura lenta e gradual do general Geisel começa a ser sacudida pelos ventos da dissidência. Sucessivamente, empresários, políticos situacionistas e militares, saem do imobilismo em que se haviam mantido por dez anos de milagre econômico e estabilidade política para manifestarem publicamente sua desconformidade com a evolução do regime.
Na oposição é o êxtase: finalmente aí está a tão sonhada burguesia nacional e democrática, o esperado revigoramento da “classe política”, que reivindica de novo a representação, e a volta dos militares nacionalistas. Generais de pijama e políticos de robe de chambre articulam a alternância, enquanto politólogos estudam os “modelos” espanhol, grego e português, para tentar descobrir o caminho que leva do “autoritarismo” ao Estado de Direito.
É neste quadro que eclode, a 12 de maio, a greve dos operários da Scania, em São Bernardo, e, na sua senda, dezenas de milhares de metalúrgicos cruzam os braços e paralisam as máquinas do coração industrial do país.
É reveladora a forma pela qual o discurso oposicionista reage aos acontecimentos do ABC. A classe operária é assimilada ao projeto liberal de “redemocratização” e passa a ser encarada como mais uma “variável” deste processo, o mais novo componente desta sociedade civil onde as classes se diluem, onde todos os gatos são pardos…
É evidente que entre as greves que se desencadeiam a partir de 1978 e a crise do regime militar na qual se inscreve a contestação oposicionista existe mais do que uma mera coincidência no tempo. O movimento aproveitou, sem dúvida, as famosas “brechas” abertas no rígido edifício da ditadura.
Mas o fato de suas lutas aparecerem com o objetivo de atendimento de reivindicações imediatas – salários, condições de trabalho, etc. – permitiu, no entanto, que o discurso oposicionista realizasse uma extraordinária operação de apropriação indébita: o movimento operário passou a ser simplesmente considerado como uma aquisição da frente democrática pelo restabelecimento do Estado de Direito. As reivindicações operárias – “específicas” – se transformaram na particularidade de um projeto democrático-burguês de reorganização social e política do país, apresentado como mais “amplo”, mais “geral”.
Assim, se para os generais a abertura não podia cruzar a porta da fábrica, para a oposição consentida as lutas operárias deviam se deter nesta mesma porta, aí fazendo a baldeação para o trem democrático burguês da luta pelo Estado de Direito. Na base deste raciocínio estava a consideração de que as greves de 78 (e para os anos seguintes o mesmo se diria) eram essencialmente o resultado do aproveitamento do espaço aberto pela crise da ditadura e pela ação oposicionista. Esquecia-se, assim, ou se minimizava, anos de solitária resistência operária nas fábrica e o fato de que esta resistência trazia consigo novos elementos para a discussão sobre a democracia no Brasil.
Os anos e resistência silenciosa e os de luta aberta após 78 acabaram por ensinar aos trabalhadores que a única alternativa à ditadura militar não era o projeto de estabelecimento no Brasil de um Estado de Direito, a ser conquistado através de uma Assembléia Nacional Constituinte – conseqüência e causa de um novo “pacto social”.
No seu fazer (-se) a classe experimentou (quantas vezes?) a intransigência dos patrões – muitos “progressistas” e “democratas” e chamados a integrar o futuro pacto – e viu suas lutas emperradas por leis e instituições do Estado de Direito abatido pelos militares em 64. Daí fluía, pois, a necessidade de constituição de um quadro político novo, de busca de uma democracia substancialmente distinta, onde as lutas específicas cruzassem efetivamente a porta da fábrica e desenvolvessem na vasta arena social todas suas potencialidades, nela gerando direitos.
A história do movimento operário no ABC, sobretudo em São Bernardo, é a história da generalização das lutas que nasceram nas fábricas. Generalização não deve ser entendida como mera expansão quantitativa das lutas, soma delas. Significa, antes de tudo, desdobramento político, explicitação para o conjunto da sociedade da grande verdade que a classe vive no dia-a-dia da fábrica (verdade reduzida hoje por alguns teóricos da oposição a mero “simplismo”): a irredutível exploração entre exploradores e explorados e a necessidade de traduzir esta oposição em um projeto autônomo e abrangente da classe. A fronteira entre o social e o político começa a desaparecer.
A construção do movimento operário em São Bernardo é a história de um movimento autônomo que luta por reivindicações específicas mas que se constitui no (e pelo) enfrentamento concreto dos limites que lhe são impostos pela ditadura e pelos projetos democrático-burgueses da oposição parlamentar. Não será isto o processo de construção de uma nova hegemonia?
A pratica deste movimento caminha mais rápida que as teorias não só da oposição parlamentar, como da maioria da esquerda extra-parlamentar. Cansada de ser personagem em busca de um autor, a classe decide, ela própria, elaborar o enredo de sua peça.
Os cenários da luta
Como “um raio num céu azul”, as greves de maio de 1978 colheram de surpresa aos militares e aos próprios empresários. Mesmo o Sindicato de São Bernardo, cuja combatividade era notória, foi surpreendido pelo movimento, ainda que rigorosamente não estivesse alheio a ele, como se verá adiante.
A eclosão da greve na Scania e sua extensão, como que por contágio, para dezenas de empresas, num prazo curtíssimo, resultou da confluência de duas dinâmicas que se vinham desenvolvendo há anos em São Bernardo: a resistência nas fábricas e a atuação combativa, a princípio de parte dos dirigentes do Sindicato dos Metalúrgicos e, finalmente, da diretoria como um todo.
A fábrica foi um dos espaços fundamentais da resistência da classe operária contra a exploração e o despotismo agudos que o patronato instaurou a partir de 64, agravado depois de 68/69 com o “golpe do golpe” do AI-5, após o esmagamento das greves de Osasco e Contagem.
As condições em que se desenvolveu esta resistência foram extremamente difíceis. A compressão salarial atingia seu auge, a disciplinarização dos trabalhadores nunca fora tão estrita, as listas negras fechavam as portas das fábricas para os que haviam tido alguma participação sindical ou política. Os trabalhadores se sentiam derrotados e isolados. As camadas médias, ou se encontravam neutralizadas ou atemorizadas pelo terror estatal, ou anestesiadas pelo consumismo do “milagre”.
A resistência, assim, não foi feita de atos espetaculares; ao contrário, ela se configurou como uma teia de pequenas ações que permitiram ao trabalhador brutalizado pela exploração vencer seu isolamento e reconhecer-se como classe num pequeno gesto de recusa desta exploração. Jogar dominó durante o trabalho ou simplesmente diminuir a cadência, demorar-se um pouco mais no banheiro ou lá colar um recorte de jornal que pudesse interessar a seus companheiros, foram iniciativas que prepararam comportamentos mais coletivos: operações tartaruga, sabotagens, protestos contra os feitores, paradas e mesmo greves. Em alguns casos estas manifestações tiveram a participação de pequenos grupos organizados de operários. Em outros, foi a resistência surgida espontaneamente que provocou a constituição destes grupos. Mais ou menos politizados, integrando ou não militantes sindicais ou de organizações de esquerda, o que estava em jogo nestas ações era basicamente a resistência à exploração e dominação patronais, não enquanto fenômenos genéricos mas como brutais realidades quotidianas. Explorada e dominada como nunca, isolada socialmente, privadas das antigas alternativas “para os trabalhadores”, a classe foi-se descobrindo e, nesta descoberta, se constituindo.
Mas a complexidade do movimento operário de São Bernardo advém do fato de que ele é o resultado igualmente da ação desenvolvida pela direção do Sindicato dos Metalúrgicos, no mesmo período em que a classe forjava na fábrica e nos bairros suas ações de resistência. Período no qual, da mesma forma, a quase totalidade das direções sindicais se caracterizava pela mais absoluta docilidade em relação ao governo e ao patronato, a despeito da rápida deterioração da condições de vida dos trabalhadores.
Por outro lado, os exemplos das lutas operárias naquele período em Osasco, mesmo que tenham sido formalmente conduzidos pelo Sindicato, haviam posto em evidência a importância da ação das oposições sindicais, consideradas como propostas alternativas à estrutura sindical vigente.
Uma reconstituição mais minuciosa da história do sindicato de São Bernardo mostra que a partir de 1969, quando Paulo Vidal Neto assume a presidência de uma diretoria na qual figura, como suplente, um migrante pernambucano chamado Luís Inácio da Silva, já começa a manifestar-se uma certa combatividade nas negociações com o patronato. Um exemplo é a luta pela antecipação salarial (outubro de 1971), a despeito das condições pouco favoráveis dentro das quais ela se desenvolve. Vidal é reeleito em 72 e desta vez Lula integra a diretoria na condição de 1o. secretário. Reforça-se, assim, dentro do sindicato um grupo que teria papel decisivo a partir de 78: além do próprio Lula, Devanir, Campagnollo, Arruda, entre outros. A ação destes dirigentes revela sensibilidade para o que se passa nas fábricas e desemboca na criação de um organismo que buscará justamente estabelecer uma ponte ente a luta do sindicato e aquela que se desdobra dentro da empresa. Trata-se do Conselho de Coordenação dos Trabalhos de Base, constituído num momento em que as grandes montadoras – Volks, Ford, mais especificamente, é possível detectar também o papel desempenhado por grupos e/ou comissões que se foram articulando nestes anos.
Um cisão pode ser observada no interior do sindicato: enquanto Vidal, que deixaria a presidência em 75, revela-se um conciliador, sobretudo em relação às greves e paralisações que ocorriam com freqüência cada vez maior, o grupo que se congregava em torno de Lula intensificava as ações em direção às bases, como exemplifica a realização em 1974 do Primeiro Congresso dos Trabalhadores Metalúrgicos de São Bernardo e Diadema.
O sindicato vai-se demarcando, por outro lado, das outras organizações integrantes da Federação dos Metalúrgicos de São Paulo, o que lhe valeria a acusação de divisionismo. A tentativa de levar adiante negociações em separado fracassou, num primeiro momento, pela prepotência do patronato e o arbítrio da Justiça do Trabalho, mas um espaço se abriria para novas reivindicações, como foi o caso do reajuste semestral, do delegado sindical, etc.
Quando Vidal deixou o sindicato (1975) já existia um grupo capaz de levar adiante uma linha combativa de ações reivindicativas. Neste crescendo de mobilizações tem particular importância a campanha pela reposição salarial, em 1977. Em primeiro lugar porque ela proporcionava um confronto direto não só com o patronato, como também contra o governo. A manipulação, anos antes, dos índices de inflação para o cálculo dos reajustes salariais foi apresentada corretamente como uma forma de esbulho da classe e, neste sentido, dava conteúdos políticos novos a uma ação reivindicativa”.
Em segundo lugar, o não-atendimento desta demanda após mobilizações de certa importância, especialmente em São Bernardo, punha em evidência a necessidade de elevar o patamar das lutas operárias, passando para novas e mais efetivas formas de intervenção. Não se pode esquecer que foi após a derrota da campanha pela “reposição” que Lula afirmou: “os patrões só escutarão a voz dos trabalhadores quando cessar o barulho das máquinas”. O silêncio das máquinas não tardou muito e, ainda que o sindicato não tivesse organicamente preparado a greve, é evidente que seu acionar pesou decisivamente na eclosão do movimento.
Mas se é certo dizer que a prática sindical teve influência na ação da classe, não é menos certo afirmar que a ação da classe pesou significativamente no comportamento do sindicato. Somando-se a um movimento para o qual havia contribuído em 1978, é o sindicato que articula e dirige a greve de 1979, episódio no qual se revelam as contradições que atravessam o processo de construção do movimento operário em São Bernardo.
As energias desencadeadas um ano antes nas fábricas e canalizadas pelo Sindicato na greve de 1979, quase sempre através de procedimentos plebiscitários – as grandes concentrações de Vila Euclides – desbordam a capacidade de direção efetiva de um sindicato muito cioso de suas prerrogativas, preocupado em afirmar seu caráter de entidade condutora do movimento, apesar da crítica que seus dirigentes nunca esconderam à estrutura sindical brasileira.
É sem dúvida a valorização específica que a direção faz do instrumento sindicato que a leva a propor aos trabalhadores um acordo salarial onde os ganhos são praticamente nulos, em troca do levantamento da intervenção que Murilo Macedo havia decretado dias antes. O acordo, aceito a contragosto pelos trabalhadores, explica o esvaziamento do estádio antes do fim da Assembléia. As vaias que se fazem escutar estavam a indicar um certo nível de cisão entre direção e bases, cisão que permanecera oculta na unanimidade das assembléias anteriores.
Este episódio, somado às posições defendidas por Lula e seus companheiros no que respeita às comissões de fábricas e aos delegados sindicais, fez com que se reforçassem certas idéias céticas a respeito do destino do sindicalismo autêntico, pelo menos em sua versão São Bernardo.
As reticências da direção sindical em relação às comissões de fábrica e o enfoque dado à questão dos delegados de fábrica, apareciam como uma valorização excessiva da estrutura atrelada – muito além de sua utilização instrumental – e um desprezo às teses sustentadas pelas oposições sindicais, sobretudo a O.S. Metalúrgica de São Paulo, que combatia intransigentemente a estrutura sindical propugnando a construção de um novo sindicalismo a partir das comissões de fábrica.
Assim, uma das consequências do desfecho da greve de 1979 foi a tentativa de opor, às vezes de maneira radical, a experiência do movimento operário de São Bernardo àquelas nas quais as oposições sindicais exerciam uma certa influência, sobretudo a dos metalúrgicos de São Paulo.
Uma visão imediatista e, por vezes, superideologizada dos processos em curso em São Bernardo e São Paulo, apresentava o primeiro como exemplo negativo de concessão ao sindicalismo oficial e o segundo como paradigma de sindicalismo independente, construído pela base, a partir das comissões de fábrica.
A realidade era bem diferente. São Bernardo, sobretudo a partir de 1979, começara a organizar suas ações utilizando centralmente o espaço sindical oficial (a greve saindo da fábrica e se transferindo para o estádio), o que poria em evidência, e de forma dramática, os limites mesmos do sindicalismo atrelado, mesmo quando ocupado por uma liderança combativa. A particularidade é que não só a liderança compreende estes limites, mas o próprio movimento passa a senti-los.
Por outro lado, apresentar a Oposição Sindical de São Paulo como estruturada essencialmente a partir das Comissões de Fábrica significava passar para a realidade o que estava ainda nas intenções.
Não é verdade também que a O.S.M.S.P. tivesse um desprezo olímpico pela intervenção no espaço sindical. A campanha salarial (e a greve) de 1979 mostrou a vitalidade da oposição (a despeito da derrota do movimento) e sua capacidade de servir-se inteligentemente da estrutura sindical nas mãos de Joaquinzão.
Na raiz desta tentativa de opor apressadamente São Bernardo a São Paulo está o vício de confrontar abstratamente duas experiências, sem levar em conta as condições de possibilidade de cada uma delas. Não é preciso ser especialista em movimento operário para constatar as profundas diferenças entre as categorias dos metalúrgicos de São Paulo e São Bernardo. Estruturas industriais radicalmente distintas, histórias sindicais próprias, enfim, um sem número de particularidades acabaram por distanciar política e organizatoriamente experiências que se encontravam tão próximas geograficamente, o que não quer dizer, no entanto, que não seja possível e até mesmo fértil a análise comparativa de ambas. Esta comparação passa, no entanto, pelo confronto das representações que o movimento foi produzindo num e noutro caso com as respectivas realidades destes movimentos.
Voltando a São Bernardo: 1978 e 1979 são momentos importantes para a construção deste movimento operário. A passagem de uma greve de fábrica (1978) para uma greve geral, onde o cenário das decisões fundamentais passava a ser o estádio de Vila Euclides e o mecanismo básico de sua tomada, o plebiscitário, (as dezenas de milhares de mãos que se erguem nas votações) teria efeito sobre a configuração do movimento. A massividade das assembléias diminuía a profundidade que o movimento na fábrica apresentava, mas permitia que a classe se descobrisse em sua extensão e força. Outra consequência seria o reforçamento do sindicato e da direção sindical, reforçamento que não se daria sem contradições. A liderança de Lula e da direção do sindicato cresce globalmente neste período, mas as bases se permitem distanciar-se da direção quando esta não parece conduzir a luta da melhor forma, como é o caso do desfecho da greve de 1979. Outro aspecto importante é que a classe, ao mesmo tempo que reconhece no sindicato um instrumento capaz de globalizar lutas que nos anos anteriores se haviam desenvolvido de forma parcelada, constata sua fragilidade, quando se materializam as intervenções, primeiro de 1979 e, posteriormente de 1980.
O que há de destacável na atuação do sindicato depois do fracasso de 1979 é a forma pela qual é preparada a campanha salarial de 1980, refletindo implícita ou explicitamente uma aguda reflexão sobre os desafios que rapidamente se haviam colocado àquele movimento. Sem abandonar o espaço sindical, sobre cujos limites havia agora uma consciência bastante maior, depois da intervenção de 1979, a direção recupera dois outros espaços que tinham sido vitais na história do movimento de São Bernardo e que, revitalizados, jogariam um papel decisivo na greve de 1980 e, sobretudo, no período de refluxo que seguiu ao fim do movimento de 41 dias em abril/maio: a fábrica e o bairro.
A campanha salarial de 80 começa a ser preparada em 79, com a multiplicação de reuniões de base, congregando trabalhadores das empresas e criando com estes e suas famílias uma sólida rede de apoio nos bairros, cujo papel seria decisivo para a resistência durante a greve.
Esta preparação de meses para a campanha salarial de 1980 é, praticamente, o resultado de uma reflexão sobre a nova etapa de lutas que se havia aberto no ABC após a explosão de 1978. É claro que não faltaram críticas à “inoportunidade” do movimento e ao “irrealismo” de sua direção, apresentada como incapaz de apreender os “evidentes sinais” de que o ciclo das greves havia chegado ao fim. Teria sido mais útil que estas reservas intelectuais se dedicassem a pensar os verdadeiros problemas suscitados a partir dos 41 dias de greve.
Ainda que mantido o caráter plebiscitário das decisões, herdado do ano anterior, a greve de 1980 revelou novas formas de ação, que seriam decisivas no processo de construção do movimento operário em São Bernardo. Não somente porque reforçaram a dinâmica de base, como já foi anteriormente apontado, com a incorporação da fábrica e do bairro como espaços fundamentais de luta, mas também, e principalmente, porque desenvolveram um novo instrumento de globalização do movimento: o Fundo de Greve.
Mais além de sua eficácia, enquanto organização de mobilização e apoio material dos grevistas, que, apesar de ter sido importante, ficou abaixo das necessidades do movimento, o Fundo foi fundamental como expressão da auto-organização dos trabalhadores fora do quadro do sindicato oficial, ainda que não em contradição com sua política naquele momento.
Em torno da atividade do Fundo de Greve emerge toda uma nova geração de ativistas operários, ao mesmo tempo em que se estabelece uma teia de relações com outros setores sociais. O Fundo explora virtualidades do período anterior, quando o bairro, e nele desempenhando um papel importante, a paróquia, havia se constituído numa espécie de retaguarda da resistência operária e popular. Calcula-se que durante a greve, mais de oito mil ativistas trabalharam para o Fundo realizando quotidianas e diversificadas tarefas de sustentação do movimento, sobretudo quando este passou a ser golpeado centralmente pela repressão.
O Fundo de Greve aparece como sucedâneo do sindicato, legitimado por sua implantação na base e por um decisivo papel na condução do movimento. A importância do Fundo se faria sentir no pós-greve, quando o sindicato permaneceu por tempos fechado e as represálias sobre os metalúrgicos não se fizeram esperar.
As perspectivas do movimento
A conjuntura do fim da greve em 1980 colocou mais de uma interrogação sobre os rumos até então seguidos pelo movimento operário em São Bernardo, sobretudo, sobre suas perspectivas naquele momento.
A situação do movimento era extremamente difícil: apesar da capacidade de resistência revelada durante quase um mês e meio, os metalúrgicos haviam experimentado uma derrota; à perda do sindicato, definitiva desta vez, somava-se a prisão dos principais dirigentes e seu enquadramento na Lei de Segurança Nacional. Mas, sobretudo, começava a dolorosa volta às fábricas na porta das quais esperavam muitas vezes as longas listas de despedidas ou a reposição dos dias parados, ou o simples não pagamento deles.
A despeito das declarações de que a “luta continuaria por outras formas”, ficou evidente que o momento era particularmente favorável para uma resistência de maior fôlego.
Não faltaram então os que vaticinaram o fim do ciclo das greves e a abertura de um duro período para a classe, agravado sobretudo pelos sintomas cada momento mais pronunciados de recessão. É certo que nem todas as questões levantadas naquele momento eram o resultado de uma visão conciliadora que simplesmente se aproveitava do momento para ajustar contas com aquela incômoda realidade que sempre fora São Bernardo. Legítimos problemas foram levantados e muitos permanecem até hoje sem resposta. Não teria sido oportuno, por exemplo, aproveitar a intervenção do Ministério do Trabalho no sindicato para romper de vez com esta estrutura atrelada, criar um sindicato livre, convocando os trabalhadores de todo o país a fazer o mesmo? Ou, no extremo oposto, não estaria na hora de adotar uma política mais realista, definir um acordo geral com o patronato, ainda que limitado em seus objetivos, mas com condições de se viabilizar, sem necessidade de recorrer a greves cada vez mais desgastantes?
O movimento parece ter-se conduzido por outros caminhos, respondendo aos problemas na medida em que eles iam se colocando, sem que necessariamente por detrás se perfilasse uma estratégia precisa. Alguns pontos parecem orientar os dirigentes depostos. Em primeiro lugar, manter-se como direção a despeito das vicissitudes. Esta decisão contribui em muito para que as bases não se sentissem desmoralizadas, apesar das dificuldades do momento. O Fundo de Greve, como foi dito, se constitui como direção do movimento e sua autoridade afirmou-se com tal rapidez que o próprio patronato teve de admiti-lo como interlocutor em negociações com a categoria.
A direção de São Bernardo assistiu impassível às dificuldades do Ministério do Trabalho para constituir uma direção fantoche no Sindicato e reagiu habilmente quando Murilo Macedo não teve outra saída se não nomear uma Junta Governativa sintonizada com os dirigentes destituídos.
Esta postura de assumir-se como direção, oferecendo alternativas concretas de luta num período de recesso, foi fundamental para que o ministério não pudesse estabelecer uma cabeça de ponte no movimento tendo pesado decisivamente na retomada do sindicato quando das eleições para a nova diretoria.
A liderança retornou às portas das fábricas, procurando intervir nos pontos mais nevrálgicos da repressão à categoria. Ao desenvolver esta iniciativa contribuiu para que o movimento ressurgisse no interior das fábricas, contrariamente ao que pensavam ser possível os que detectavam um clima de desmoralização irreversível na categoria, agravado ainda mais pela recessão econômica. É isto que vai explicar em grande medida uma série de greves que eclodem após – Brastemp, Ford, General Motors e Mercedes – cada uma delas apresentada pelos incrédulos analistas como “último extertor” de um movimento sobre o qual alguns estavam dispostos a escrever o necrológio.
O terceiro aspecto importante é a decisão da categoria, sobre a qual os dirigentes tiveram muito peso, de não ceder às tentações do “pacto social” de resistir, ainda que contra-a-corrente, às ofensivas que os setores do patronato tentaram realizar supondo que a categoria estava sem resistências. Uma tática vitoriosa se contra-ofensivas localizadas num período de signo defensivo, permitiu ao movimento redescobrir sua força, pulverizando as teorias sobre a incapacidade de mobilização nos períodos de recessão econômica, situação agravada pela derrota de maio de 1980. Nenhum caso é mais exemplar desta posição adotada do que o da Volkswagen. Quando a direção da empresa decidiu montar seu simulacro de Comissão de Fábrica, a orientação de boicotar a votação, marcando o “João Ferrador” na chapa, desmoralizou o patronato, deixando claro que nenhuma iniciativa deste tipo podia ser adotada em São Bernardo sem a participação dos trabalhadores mais combativos e, naquele momento, da direção destituída. Tempos mais tarde, a Ford de S. Bernardo compreenderia perfeitamente isto, aceitando basicamente criar a Comissão de Fábrica que os trabalhadores e o sindicato pediam.
Mais importante, porém, foi a derrota da direção da VW no plebiscito realizado para ver se os trabalhadores estavam dispostos a aceitar a reduzir a jornada de trabalho (e os salários) em troca de uma promessa de limitada estabilidade. A despeito das 20 mil assinaturas a favor da medida, colhidas entre os trabalhadores pela direção da empresa – numa tentativa de atomizar a decisão da categoria -, a situação pôde ser revertida pelos operários ligados ao sindicato, junto com os dirigentes destituídos, provocando a derrota da proposta patronal por 70% dos votos contra as expectativas. A força revelada pelo movimento acabou por obrigar a VW a recuar e as anunciadas despedidas em massa não se realizaram depois do referendo. Uma vez mais as mini-ofensivas foram mudando a correlação de forças e acabaram por constituir, em um período relativamente breve, um equilibro bem distinto daquele que muitos previam depois da derrota de 1980. A recente e vitoriosa greve (1982) deflagrada nas montadoras é sem dúvida o resultado desta multiplicidade de ações autônomas a nível das fábricas, para as quais a direção oriunda do sindicato revelou sensibilidade e capacidade de condução.
A rearticulação do movimento nestes dois anos, após o fim da greve de 1980 não pode ser vista, no entanto, de forma complacente. Campo privilegiado de experiências de autonomia operária, a construção do movimento em São Bernardo resulta de um tortuoso processo no interior do qual podem ser detectadas, no entanto, tendências, que dificultam o exercício desta autonomia.
As duas dinâmicas, que se desenvolveram na década de 70 – a das fábricas e a dos sindicatos – e que, fusionadas a partir de 78, foram responsáveis pela explosão social do ABC, continuam a se desenvolver e, a despeito de suas múltiplas articulações, não raro se apresentam como contraditórias.
Não se trata, evidentemente, de emitir receitas do tipo “privilegiem o trabalho de base e subordinem o sindicato a ele, pois esta é a única condição para que se aprofunde a autonomia da classe”. Trata-se, antes de mais nada, de constatar os problemas reais colocados pelas lutas operárias em São Bernardo e de ver o papel desempenhado pela fábrica e pelo sindicato, e os limites de um e outro, para poder compreender (e atuar) neste processo de construção.
É óbvio que o movimento de São Bernardo (e não só ele) é o resultado do enfrentamento pelos operários da especificidade da exploração e da dominação capitalistas, na forma concreta em que elas se manifestam na fábrica, particularmente na maneira pela qual os trabalhadores sofrem os efeitos da organização dos processos de trabalho. Este elemento é decisivo para compreender a base material da autonomia operária e das novas formas de luta e de organização que marcam o movimento nos últimos anos.
Mas não é menos verdade que o movimento operário de São Bernardo é também a globalização destas lutas e o aprofundamento de seu sentido político, o que foi realizado em grande medida pela direção do sindicato, a despeito dos limites institucionais desta estrutura, explorados ao máximo por uma direção classista.
No caminho a ser seguido pelo movimento operário de São Bernardo estão inscritas, no entanto, questões da mais alta relevância e que devem ser incorporadas ao debate a ser travado no movimento. Estas questões têm, por sua vez, uma importância que ultrapassa em muito as fronteiras do ABC, tendo em vista o sentido paradigmático que São Bernardo possui para o conjunto do movimento operário brasileiro.
A primeira delas é, sem dúvida, estabelecer uma correta articulação entre a ação nas fábricas e aquela que o sindicato hoje globaliza. Este problema aparece para muitos trabalhadores como o de uma adequada combinação entre o trabalho dentro da fábrica e aquele feito na porta da fábrica, a partir do entendimento de que um e outro nem sempre remetem às mesmas questões.
A segunda diz respeito à globalização mesma da ação nas fábricas pelo sindicato. A história recente, tendo mostrado a fragilidade do instrumento sindicato (limitado por seu atrelamento e sujeito, portanto, a intervenções estatais), não estará a apontar para a necessidade de buscar-se instrumentos alternativos de globalização das lutas? A questão é espinhosa, na medida em que estes instrumentos são muitas vezes vistos pela direção sindical como concorrentes e, por esta razão, expressões de “paralelismo” que levou a atual direção a incorporar o Fundo de Greve ao sindicato, erro que pode se tornar grave, pois o Sindicato está sujeito a intervenções e com ele o próprio Fundo.
Neste problema estão embutidas duas questões significativas para o futuro do movimento: de um lado a necessidade de, pelo menos, perfilar instrumentos formalmente alternativos ao sindicato, permitindo ao movimento globalizar suas ações não somente através da estrutura oficial e, portanto, atrelada, por mais classistas que tenham sido (como o são ainda) suas direções. Somente estes instrumentos alternativos (como por exemplo, o Fundo de Greve), por serem frutos da ação autônoma dos trabalhadores e não resultantes de uma outorga estatal é que garantirão em longo prazo os interesses gerais da categoria. É deles que surgirá um sindicalismo livre no país. A outra questão é que a constituição de organismos alternativos permitirá ao movimento repensar os problemas da democracia no seu interior, longe do formalismo burocrático e das instâncias sindicais estatais, ainda que este formalismo tenha sido em aspectos contornados. Estas novas estruturas permitirão definir um novo relacionamento entre os organismos de base (as comissões de fábrica, por exemplo) e um sindicalismo livre, afastando o fantasma do paralelismo (entendido como divisão política de classe), mas, ao mesmo tempo, assumindo as diferenças inelutáveis que o movimento tem e que nem sempre são fáceis de resolver: operários/operárias, peões/operários qualificados, operários de grandes empresas/operários de pequenas empresas etc.
Não pretender dar receitas, de resto inúteis, não significa ocultar problemas, quando estes estão se colocando no dia-a-dia do movimento operário de São Bernardo. Refazendo, nas suas linhas mais gerais, o caminho percorrido pelo movimento operário no ABC, assinalando suas contradições, convoca-se a uma reflexão sistemática e inadiável. Para que se preserve e aprofunde a dinâmica autônoma que de tal forma marcou a construção do movimento operário em São Bernardo há uma condição básica: que esta reflexão seja entendida como auto-reflexão, pois não será fora do movimento do ABC que serão produzidos os ABC do movimento.
Sobre os autores
foi um político brasileiro filiado ao Partido dos Trabalhadores. Foi professor no Departamento de História da Universidade Estadual de Campinas.