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Após décadas de criminalização, a bandeira wenüfoye se tornou um dos símbolos da revolta social de 2019 em um claro processo de descolonização da sociedade chilena. (Marcelo Hernandez | Getty Images)

Elisa Loncón e o novo Chile plurinacional que surge no horizonte

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Com uma professora indígena presidindo a Convenção Constitucional, o Chile tem a chance de reverter as atrocidades do passado contra os povos originários, as mulheres e a população LGBTQI+ e em enterrar de uma vez por todas o legado neoliberal inaugurado durante a ditadura de Pinochet.

Doutora em linguística pela Universidade de Leiden, na Holanda, e professora da Universidade de Santiago, Elisa Loncón (58 anos), conquistou a presidência da Convenção Constitucional iniciada no dia 04 de julho no Chile. Com 98 votos e ampla vantagem, uma mulher, mapuche, acadêmica, assembleista constituinte eleita pelo povo mapuche, estará presidindo o órgão político e social mais importante da história recente da República chilena.

É dessa maneira, carregada de simbolismo, que o Chile inicia um salto a um futuro inédito. Pela primeira vez em sua história, o país vivencia um processo constituinte exclusiva que se encarregará de escrever sua nova Constituição. Em um dia marcado por convulsões, 155 assembleistas – 78 homens e 77 mulheres eleitas em uma votação com critérios de paridade de gênero e que, além disso, reservaram 17 vagas para povos indígenas – se instalaram oficialmente como organismo constituinte, como também elegeram sua mesa diretora.   

Sem dúvida esse foi mais um dia histórico para o Chile, onde os movimentos sociais se fizeram presentes com manifestações, bandeiras e rituais sagrados para acompanhar as assembleistas que representam suas demandas. O ato inaugural da constituinte foi carregado de simbolismos, tensões políticas, confronto e repressão policial, deixando claro que o que se vive hoje no país não se trata de um processo político tradicional.

A cerimônia de posse evidenciou que a resposta institucional dada ao conflito social, econômico e político não seguirá por uma via estritamente protocolar, procedimental, tecnicista e ordeira, pois, além das fraturas e a raiva acumulada por décadas de exclusão (ou séculos, se tratando dos povos originários e indígenas), a pluralidade política convocada no processo se faz evidente.

Nesses termos, o processo destituinte que se iniciou em 18 de outubro de 2019, segue demandando participação popular ampla e efetiva no processo constituinte para além do campo institucional. Mesmo após o plebiscito de 2020 e as últimas eleições de 15 e 16 de maio que elegeu representantes assembleistas, os setores que iniciaram a revolta demonstraram na cerimônia de posse que irão seguir disputando nas ruas o caráter das transformações culturais e sociais que o Chile atualmente vivencia.

O início do caminho

Depois de duas suspensões da cerimônia na manhã do dia 04 de julho, produto da repressão policial sobre os manifestantes do lado de fora do antigo Congresso em Santiago, a solenidade da posse se concretizou às 13:00 pm.

Em seguida, quando finalmente os assembleistas assumiram o cargo que lhes entrega a responsabilidade de redigir a nova Constituição, a cerimônia abriu votação para a mesa diretora. Para eleger a mesa constitucional, se necessitava alcançar maioria simples com quórum de dois terços, em uma votação aberta. Finalizada a primeira votação, com 58 votos, Elisa Loncón se impôs como primeira maioria. Loncón, a principal carta do povo mapuche para presidir a Convenção Constitucional, também contou com o apoio de frenteamplistas e parte de constituintes independentes – contudo, não alcançou o quórum de 78 votos, sendo necessário reiniciar a votação.

O segundo mais votado nessa primeira instância foi o constituinte Harry Jürguensen, eleito como independente mas que, entretanto, contou com o apoio em bloco do setor da direita e assim recebeu 36 votos. Em terceiro lugar, a representante do povo colla, Isabel Godoy, apoiada pelo Partido Comunista e parte da Lista do Povo, conseguiu concentrar 35 votos. Patricia Politzer, constituinte eleita como independente e apoiada pela Concertación, recebeu 20 votos. 

Assim, rearmados os acordos para a segunda votação, a presidência foi escolhida com ampla vantagem (96 votos), e Elisa Loncón se torna presidenta da mesa constituinte, consolidando uma aliança entre os setores progressistas e os dois blocos de esquerda. Após receber o afetuoso abraço de Isabel Godoy, e acompanhada por machi Francisca Linconao, Loncón tomou posse com um discurso iniciado em mapuzungum, saudando a todos os povos em todo o território do Chile, dando início de forma simbólica e emblemática ao processo constituinte chileno. 

Diante de uma direita que nunca antes havia sido minoria em um espaço institucional de alta hierarquia, Elisa Loncón empossada, dirigiu a eleição do vice-presidente, que precisou ser finalizada em uma terceira rodada para finalmente conseguir quórum necessário. Com 84 votos, elegeu-se para vice-presidente o constituinte Jaime Bassa (advogado constitucionalista, acadêmico da Universidade de Valparaíso e independente apoiado pela coalizão frenteamplista). Definitivamente um dia histórico, que veio deixar ainda mais em evidência a irrelevância política de Sebastián Piñera e seu campo político.

Diplomacia mapuche por um Chile plural

Com um discurso carregado de esperança, pluralista, multicultural e feminista, Elisa Loncón fez referência ao Chile do futuro, que se transformará num Estado plurinacional. Além disso, também resgatou a memória da luta anticolonial e antirracista, da luta das mulheres, das dissidências sexuais e de gênero. Convocou a participação democrática, emocionando não somente os chilenos, mas o mundo inteiro. Dessa forma, o simbolismo de sua eleição significou não apenas uma opção por reparação histórica, mas um claro sinal por uma ética transformadora da relação entre povos chileno e mapuche, e igualmente um passo firme para o encontro e o diálogo entre a diversidade dos povos originários que compõem todo o território. 

Ao lado de Machi Francisca Linconao, outra mulher mapuche eleita constituinte, Elisa Loncón recebe a nomeação como presidenta. A presença de Linconao junto a Loncón revela a importância cerimonial de uma autoridade espiritual ancestral. Machi Francisca, que em 2013 foi perseguida, encarcerada e humilhada pelo Estado chileno, acompanhou a posse de Loncón levando consigo um ramo de “canelo” – árvore sagrada mapuche – e juntas, dão as boas-vindas a um novo Chile diverso, com um múltiplo olhar sobre quem somos, para os diversos lugares que ocupamos na vida e na sociedade chilena.

Certamente, a escolha com amplo apoio à figura de Elisa Loncón se justifica por sua histórica trajetória como ativista pelos direitos políticos e linguísticos mapuche, por sua posição de liderança como mulher indígena, e fundamentalmente pelo reconhecimento da ancestral tradição diplomática do povo mapuche, registrado ao longo da história. Além disso, é importante destacar que Loncón participou da construção da wenüfoye em 1992, bandeira que surgiu através de um esforço coletivo mapuche, duramente reprimida desde sua primeira aparição. Após décadas de criminalização, a bandeira wenüfoye se tornou um dos símbolos da revolta social de 2019 em um claro processo de descolonização da sociedade chilena, legitimando o clamor por reconhecimento do Estado plurinacional, plurilíngue, pela autodeterminação e direitos fundamentais demandados pelo povo mapuche.

Desafios para refundar

Com grande respaldo e reconhecimento nacional, Elisa Loncón preside a convenção constitucional em sua segunda semana deliberativa. Junto com esse reconhecimento, também se instala elevadas expectativas, e portanto, os desafios dessa responsabilidade não são menores. Entretanto, ainda que seja árdua a tarefa de liderar uma assembleia tão plural, Loncón dá mostras contundentes de possuir consciência e compromisso com o importante papel que exerce na construção de um caminho constituinte completamente inverso ao da constituinte convocada por Pinochet em 1980.

Dessa maneira, o que está em jogo hoje no Chile não é somente a escritura da nova Constituição, que sem dúvida é um marco importante e que irá definir as bases de uma nova diretriz de sociabilidade, mas, também, uma nova forma de se fazer política. Ou seja, é a disputa de como vai se conformar o novo tecido social que, durante muito tempo, estava inorgânico e apartado das decisões e espaços institucionais, mas que hoje se expressa com força e vontade de transformação. 

Precisamente, a partir dessas particulares alianças orgânicas e programáticas construídas pelas forças transformadoras na constituinte, o Chile terá um texto normativo disponível para questionar suas elites e o neoliberalismo. Durante os nove meses que a Convenção Constituinte necessita para escrever a nova Constituição, o país tem a chance de reverter a completa negação dos direitos fundamentais para seu povo e até mesmo séculos de negação da humanidade dos povos originários, mulheres e população LGBTQI+. Há muito em jogo, e a disputa política no campo social também está aberta. Todavia, é possível afirmar que emergiram as forças e os sorrisos que projetaram uma alternativa ao velho Chile, tecendo de forma muito inspiradora o caminho dessa nova história.

Marichiweo, mil vezes venceremos!

Sobre os autores

diretora da Fundación País Digno e militante feminista de Convergencia Social. Mora em Valparaíso e é licenciada em história.

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Published in América do Sul, Análise, Eleições and Política

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  1. […] Texto de Sabrina Aquino para a Jacobin afirma que com uma professora indígena presidindo a Convenção Constitucional, o Chile tem a chance de reverter as atrocidades do passado contra os povos originários, as mulheres e a população LGBTQI+ e em enterrar de uma vez por todas o legado neoliberal inaugurado durante a ditadura de Pinochet. Leia o artigo completo neste link. […]

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