Eduardo Bolsonaro – responsável pela articulação internacional do bolsonarismo com os partidos e movimentos da extrema-direita global – iria para Lisboa para o encerramento da campanha das eleições municipais do último dia 26 de setembro, vencidas pela centro-esquerda.
Eduardo, no entanto, testou positivo para a Covid-19 e não apareceu. O líder do Vox, partido reacionário de Espanha, Santiago Abascal também foi convidado a participar desse evento de campanha do partido protofascista português, Chega!, que tem na liderança André Ventura. Abascal esteve por lá.
Para além desse “apoio” internacional ao partido de extrema direita português, esse encontro foi costurado pela Fundação Disenso / Fórum de Madrid, que tem Abascal como um dos “patronos”, e tinha como objetivo publicizar a denominada “Carta de Madrid”, já assinada por Eduardo Bolsonaro e que também será por Ventura. É um manifesto sustentando em propagandas anticomunistas: “O avanço do comunismo representa uma séria ameaça à prosperidade e ao desenvolvimento de nossas nações, bem como às liberdades e direitos de nossos compatriotas”; por outro lado, postula “valores” essenciais do liberal-capitalismo, só que num verniz protofascista: “O Estado de direito, o império da lei, a separação de poderes, a liberdade de expressão e a propriedade privada são elementos essenciais que garantem o bom funcionamento das nossas sociedades”.
O Fórum e Carta de Madrid resulta de um esforço de segmentos da direita protofascista europeia, no sentido de alavancar um movimento internacionalista de extremistas de direita para fortalecer os laços e “solidariedade” política entre eles. A derrota de Trump nos Estados Unidos serviu de alerta para a direita reacionária ocidental se reorganizar em termos geopolíticos, afinal, não há espaço de poder vazio na política.
Qual é o papel do bolsonarismo nessa reconfiguração e como isso vai além do próprio governo Bolsonaro?
A ascensão da extrema direita
Primeiramente, a importância geopolítica do Brasil no quadro da América Latina. Trata-se de um país continental em termos geográficos e populacionais, bem como no tamanho da sua economia. Ou seja, qualquer mudança político-social no Brasil acaba por influenciar o continente latino-americano como um todo. O fato de Jair Bolsonaro ter conseguido chegar ao poder central, num país com essas características, somado às relações pessoais que Eduardo Bolsonaro tem com Steve Bannon (o grande estrategista da extrema direita global), coloca o bolsonarismo, enquanto movimento político, no pelotão da frente dos reacionários no ocidente.
Os movimentos protofascistas europeus procuram estabelecer com o bolsonarismo por entenderam que sem uma organização transnacional de apoio à “guerra cultural” promovida pelos mesmos, como um dos pilares na constituição no seu bloco social, não teriam sustentação ao longo do tempo. Alguns exemplos paradigmáticos revelam a pauta comum entre eles: discurso anti-imigração, islamofobia, racismo, a “defesa” de família tradicional e a luta contra “politicamente correto”.
Quando esses movimentos reacionários começam a ganhar forma organizada socialmente no ocidente nessa quadra histórica? Temos algumas pistas para essa pergunta incontornável para se entender a realidade de hoje. Desde o século XIX os movimentos migratórios ocorriam substancialmente da Europa para o restante do mundo, contudo, a partir dos anos 70-80 do século passado ocorre uma inversão, grandes massas de trabalhadores imigrantes rumaram ao capitalismo central-imperialista (Estados Unidos e Europa). A esmagadora maioria dessas pessoas que migraram ou se refugiaram, o fizeram (e ainda fazem) por causa de guerras imperialistas, como por exemplo, a farsa da “guerra ao terror” contra populações muçulmanas e islâmicas.
Isso se junta à lógica liberal-imperialista-capitalista, que impõe aos países do Sul Global e periféricos uma condição de miséria, pobreza e pauperismo sistemático e estrutural, visto que é uma das formas de acumulação capitalista (transferência de valor). O neoliberalismo evidencia também o que István Mészáros sinalizou como “crise estrutural do capital“, ou seja, para além das crises cíclicas ou conjunturais que constituem a natureza do modo de produção capitalista. Agora, as suas estruturas – e as formas de acumulação – também estão em crise num capitalismo cada vez mais mundializado e financerizado (valor que cria valor). Nos últimos tempos com o agudizar da crise climática começamos a observar um “novo” tipo de imigração: os refugiados climáticos.
Na trilha desse contexto histórico-social, o sistema e o regime político liberal-capitalista não conseguem mediar as contradições candentes, ou seja, ele também está em crise. É aí que ele recorre a face ainda mais autoritária do capitalismo: o fascismo. Nas bárbaras experiências históricas do nazi-fascismo do século XX, a crise econômica foi um elemento determinante na constituição da força social dos movimentos, partidos e dos governos nazista e fascista.
Uma das características dessa direita reacionária ou protofascista – para além do racismo e da anti-imigração, se apresentar como combatentes da corrupção, defensora da “cultural cristã-ocidental” e afins para se vestir com uma aparência de antissistema, como “os revolucionários conservadores. Por que essa tática política e de comunicação tem efeito ou resultado, no sentido de mobilizar segmentos da classe trabalhadora para o seu bloco social? Por quanto a crise estrutural capitalista torna-se cada dia mais destrutiva.
Os trabalhadores se vêem cada vez mais sem condições mínimas para sobreviver e esta realidade que atingia substancialmente os países periféricos, entretanto, começa a afetar também a classe trabalhadora do capitalismo central (imperialista) – não como a mesma violência e pauperismo do Sul Global. O desemprego estrutural vem a ser ainda mais disciplinador para a classe que vive-do-trabalho. O medo e o desamparo são os afetos que operam de forma decisiva no seio do neoliberalismo, visto que são reais, pois o sofrimento torna-se também uma mercadoria para o capitalismo. O problema se torna maior ainda porque grande parte da esquerda foi colonizada pela ideologia liberal-capitalista e passou a ser uma defensora do sistema institucional. Já a direita reacionária se identificou nessa insatisfação real e objetiva: “contra tudo o que está aí”, uma tática política em que parecer ser antissistema e, somada à particularidades regionais, e um conservadorismo tacanho, potencializou um bloco social consolidado e “unificado”.
O fascismo renasce em Portugal
Dentro desse quadro mais geral, a crise capitalista iniciada em 2007/08 nos Estados Unidos atingiu Portugal com força em 2011. Um conjunto de imposições da Troika, a junção da Comissão Europeia, Fundo Monetário Internacional (FMI) e Banco Central Europeu (BCE) junto do governo neoliberal e pró-austeridade de Pedro Passos Coelho em Portugal promoveram um gigantesco empobrecimento da classe trabalhadora.
O partido Chega! (que já foi Basta!) desponta no espaço político-eleitoral português no ano de 2019, quando obteve 1,3% dos votos nas eleições legislativas, conseguindo eleger o seu primeiro deputado. Nas eleições presidenciais de janeiro deste ano, o seu líder Ventura, apoiado pelo Chega!, alcançou 11,90% dos votos e ficou em terceiro lugar. Nas eleições municipais de 26 de setembro do deste ano, o partido conseguiu eleger 19 vereadores em sete grandes municípios (distritos) – muito abaixo do esperado.
Contudo, com dois anos participando na arena eleitoral, conseguiram apresentar mais força de enraizamento local do que partidos da esquerda portuguesa com mais de vinte anos. As forças antifascistas portugueses estão atentas, entretanto, há segmentos da esquerda que duvidam muito da real força fascista, pois existe uma forte memória histórica da Revolução dos Cravos e uma viva cultura-política da luta antifascista dos tenebrosos anos do salazarismo.
Com muitos despejos, um movimento emigratório como só tinha acontecido no Estado fascista de Salazar, o sistema político entrando em crise, se verifica pelo aumento constante das abstenções e ainda três elementos cruciais para se entender a emergência de um movimento protofascista com amplitude no tecido social português: a) imigração; b) os ciganos; e c) aspectos da formação social portuguesas pós-Revolução de 25 de abril.
O fator anti-imigração como um elemento mobilizador desse movimento político reacionário é recorrente e em Portugal, não é diferente. Contudo, é preciso compreender concretamente o trabalho imigrante para o funcionamento do capitalismo neoliberal. Isto é, a força de trabalho dos imigrantes é uma forma de acumulação (e também expropriação) do capitalismo. Em outras palavras, quanto maior o exército internacional de trabalhadores excedentes no centro do sistema – ou seja, pessoas imigrantes desempregadas (sem documentos muitas vezes) dispostas a encarar qualquer tipo de trabalho (em condições precárias e insalubres) com um salário menor do que “os nacionais” – possibilita o aumento à taxa acumulação. As burguesias lucram com o trabalho imigrante e ao mesmo tempo apontam o imigrante como o “grande perigo” da sociedade, bem como estimulam (diretamente ou indiretamente) movimentos políticos reacionários ou fascistas que procurem oprimir as comunidades imigrantes, tanto do ponto de vista subjetivo, como do institucional e estrutural.
O “inimigo sub-humano” supostamente causador dos muitos problemas de Portugal “são” os imigrantes em geral, segundo os discursos da extrema direita. Mas, o “inimigo-mor” — criado artificialmente pelos reacionários portugueses — é a comunidade cigana. Uma etnia de tradição milenar e que chegou a Portugal no século XV. Ventura, o único deputado que a extrema direita têm na Assembleia da República, costuma dizer, infelizmente, que os ciganos são “subsídio-dependentes”, isto é, que eles vivem do “bolsa família” (que se chama Rendimento Social de Inserção- RSI) e que são um peso para o Estado.
Isso é muito similar à lógica que o bolsonarismo utiliza no Brasil para dizer que o pobre vagabundo, na sua maioria não-branco, vive por meio do subsídio do Estado e que não quer trabalhar, entre outras muitas mentiras. Nesse sentido é importante sinalizar algo acerca da questão racial.
Nas Américas como um todo, que teve a sua formação social construída em cima do comércio e do trabalho de pessoas escravizadas, o marcador racial é, sobretudo, o ser não-branco. Na Europa esse marcador racista atinge, historicamente, e hoje notadamente, o imigrante, ou seja, os não-brancos e não-europeus: os latinos, os africanos, os asiáticos, os eslavos (de onde vem a palavra escravo), os ciganos e afins. Portanto, compreender a relação entre a imigração e o racismo na realidade europeia é crucial, pois é um elemento mobilizador para esses movimentos reacionários e fascistas: uma postura racista de negação da humanidade do imigrante.
Essa realidade, ganha, infelizmente, contornos particulares em Portugal, a partir de três fraturas da formação social pós-Revolução de 25 de Abril 1974, as quais nunca foram “tratadas” do ponto de vista político-social e da memória histórica: o colonialismo; Guerra Colonial; os “retornados”.
No dia-a-dia, poucos portugueses sabem o que é o tal “lusotropicalismo”. O que significa em termos práticos? De modo geral, os portugueses têm uma memória histórica de que o colonialismo lusitano não foi tão mal ou violento como o dos outros impérios europeus
Em janeiro de 1961 o governo fascista de António Salazar iniciou a tenebrosa Guerra Colonial. Ela tem uma dupla face. De um lado, centenas de milhares de mortes, na sua maioria militantes das lutas de Libertação Nacional e anticolonial. Por outro, muitos portugueses foram empurrados para três teatros de guerra, sem muitas chances de vencer. Ou seja, empurrados para morte ou condenados a voltarem com sequelas físicas e psicológicas.
No entendimento de grande parte dos historiadores, será a guerra o fator decisivo na derrubada do regime fascista pelas Forças Armadas – Os “Capitães de Abril”. Porém, nesse processo de pós-Revolução e descolonização vão emergir dos ex-combatentes da Guerra Colonial (1961-1974), que em certa medida foram postos de lado pelo novo regime político que se consolidou após a vitória contra-revolucionária de 25 de novembro de 1975. As condições de vida e a memória acerca deles é explorada pela direita reacionária, pois afirmam que o Estado “abandonou os verdadeiros heróis da pátria, que lutaram pelo Portugal ultramarino”, isto é, o Portugal colonialista.
O processo de descolonização forçado pela queda do regime fascista português, a brava luta dos povos colonizados pela Libertação Nacional e a independência política das ex-colónias criou uma outra figura: “os retornados”. Quem são esses? O perfil dos portugueses que estavam nas colônias era diverso ocupavam espaços de poder político ou econômico nas colônias. Visto que numa estrutura social racista essas pessoas tinham espaços de privilégio (classe dominante ou elite), mas com avançar da luta anticolonial e a vitória dos povos locais, os colonos tiveram que deixar tudo para atrás e voltaram “sem nada e de mãos vazias” para a metrópole, como ouve-se da boca de vários “retornados”.
Foram pouquíssimas as medidas a de Estado que se preocuparam com essas pessoas, a fim de lhes garantir uma “compensação” financeira. Esse grupo de retornados acredita que foi “lesado” e que o Estado português o deveria indenizar. Assim, esse sentimento foi alimentado durante toda uma vida, passando aos filhos, netos e afins. Para essas pessoas a Revolução dos Cravos significou empobrecimento e perda de status social dominante nas colônias. Ventura e o seu partido estimulam também mais essa fratura na sociedade como elemento mobilizador contra os resquícios e conquista da Revolução do 25 de abril.
Uma solidariedade internacional antifascista
O quadro dessa realidade complexa não pode ser visto externamente à totalidade e o fenômeno da crise estrutural capitalista e a reemergência do fascismo, são refluxos dessa crise. Essa reunião em Portugal é mais um sinal relevante da tentativa da extrema direita de criar uma rede internacional de solidariedade e apoio. Como disse Leandro Konder em seu livro Introdução ao fascismo:
O fascismo é uma tendência que surge na fase imperialista do capitalismo, que procura se fortalecer nas condições de implantação do capitalismo monopolista de Estado, exprimindo-se através de uma política favorável à crescente concentração de Capital; é um movimento político de conteúdo social conservador, que se disfarça sob uma máscara “modernizadora”, guiado pela ideologia de um pragmatismo radical, servindo-se de mitos irracionalistas e conciliando-os com procedimentos racionalista-formais de tipo manipulatório. O fascismo é um movimento chauvinista, antiliberal, antidemocrático, antissocialista, anti-operário. Seu crescimento em um país pressupõe condições históricas especiais, pressupõe uma preparação reacionária que tenha sido capaz de minar as bases das forças potencialmente antifascistas (enfraquecendo-lhes a influência junto às massas); pressupõe também as condições da chamada sociedade de massas de consumo dirigido, bem como a existência nela de um certo nível de fusão do capital bancário com o capital industrial, isto é, a existência do capital financeiro.
Isso tudo serve como alerta para antifascistas de todo mundo. Em especial, para que brasileiros e portugueses se livrem dos fascistas do século XXI como Bolsonaro e Ventura. Só um movimento internacional para reforçar os laços de classe entre aqueles que vivem do trabalho, além da compreensão de que não é possível esmagar o fascismo e suas ramificações sem a superação do capitalismo, pode alterar esse quadro.
Sobre os autores
mora em Portugal e é professor, filósofo político e historiador.