Tantos estão ávidos por serem os sobreviventes solitários do “apocalipse zumbi”. Mas essas são metáforas intercambiáveis, esse zumbi/Outro, esse apocalipse. Essas metáforas vazias, essa linearidade, existe apenas na linguagem dos pesadelos, elas são parte da imaginação e impulso apocalíptico. Tal maneira de “vida”, ou “cultura”, é também uma forma de dominação que consome tudo apenas para seu próprio benefício. É uma reorganização econômica e política para acomodar uma realidade suportada por pilares de competição, posse, e controle em busca de lucro e exploração permanente. Professa “liberdade” enquanto sua fundação é definida pelo roubo de terras, enquanto a sua própria estrutura é composta de vidas roubadas.
Repensando o Apocalipse: um manifesto anti-futurista indígena
– Indigenous Action
Roteiro Pra Aïnouz (RPA) volume 2, sequência da biografia em revés iniciada com o terceiro volume, em 2017, foi lançado em 26 de novembro de 2021, mesmo dia em que o revolucionário mexicano Emiliano Zapata, no ano de 1911, lança o plano Ayala convocando as massas à luta por “Terra e liberdade”. A Revolução Mexicana foi a primeira grande revolução do século XX, embora costumeiramente nossos olhos se voltem mais para a Rússia de 1917.
O primeiro disco da trilogia, que ao mesmo tempo é também o terceiro, nos coloca diante de uma crise de sentido vivida de forma mais pessoal, narrando uma busca que passa por labirintos internos, como aqueles descritos na música “Aquela Fé”. Estes labirintos, na mesma música, aparecem conectados com o Estado que é dominado pelos filhos dos senhores de escravo, a ambivalência em se “lutar pra fazer parte de um mundo que se luta contra”, e outros elementos relacionais que perpassam a vida de Fortaleza, amigos e a mudança de Don L para São Paulo. ”Uma frase muda o fim do filme”, linha repetida durante a música nos coloca, entre outras coisas, diante da história, da forma como se conta uma história.
“Laje das ilusões”, a última track do disco, nos remete a um tempo que corre, que foge, que escapa para frente. O volume 2, sucessor e anterior, retoma a importância do tempo pelo impacto da história colonial brasileira e sua estrutura escravocrata. Simultaneamente, explode a forma como se convencionou falar de uma biografia desde seu advento na forma das confissões, na articulação linear de uma história de vida que trata apenas do que está perto, do que é sentido diretamente na vida individual. Essa estrutura remete à própria formação do individualismo liberal.
John Locke, em seu Segundo Tratado sobre o Governo Civil, ainda no século XVII, afirmou que o indivíduo é uma propriedade privada de si mesmo, garantida por Deus, sendo a primeira propriedade demarcada no mundo. Toda propriedade é um cercamento, separando proprietários de não-proprietários. O eu de cada um, proprietário de si mesmo, é visto como anterior a qualquer relação. O pressuposto lógico é que antes da relação existe um indivíduo, atomizado, e que, somente depois, entra em relações com outros indivíduos ou com uma natureza objetificada. O mesmo pressuposto, ecoa até os dias de hoje, por meio do neoliberalismo, vinculando o antigo “eu-proprietário” à forma mais contemporânea da empresa.
Em RPA volume 2, a história pessoal de Don L aparece em perspectiva, misturando a imaginação revolucionária de outro mundo possível, a estrutura colonial racista do território ocupado pelo Estado brasileiro, os amigos que se foram na caminhada e os que estão encarcerados, a cidade de Fortaleza, as revoluções, revoltas e povos do passado e do presente que resistiram ao massacre colonial-capitalista. Essa mistura, na forma de contar uma história, parece também dizer que imaginar outro mundo, e construir processos revolucionários, se faz com os corpos que são produzidos em relações: comunitárias, históricas, de apoio mútuo, de revolta e levantes. Corpos que também estão marcados pelas assimetrias de classe, pela produção das racializações, pelo binarismo de gênero, pelas medições coloniais… O indivíduo sem mundo do liberalismo, como num truque de ilusionismo, esconde suas relações, produzindo sonhos e desejos, “fazendo acreditar que eram meus próprios planos”.
Contra uma possibilidade revolucionária, encontraremos a “instituição do Eu e o EU da instituição”, ressalta o coletivo Comitê Invisível em seu livro Motim e Destituição. Este indivíduo sem mundo é correlato ao aperfeiçoamento institucional que não pode parar, porque é o que está aí, porque é visto como o melhor que temos – não há alternativa. Em ambos os casos temos a linearidade um tempo visto como progresso e acúmulo, repetindo uma interioridade (que remete também a estrutura do próprio Estado). Encontramos exemplos nos discursos sobre humanização das polícias, reforma das prisões, humanização de instituições asilares e aperfeiçoamento de um indivíduo que tem somente a sua história de vida diante de si. O objetivo é fazer esta institucionalidade continuar a existir e crescer o quanto for possível. Gesta-se, por exemplo, a produção do crime e dos ilegalismos, encarcerando o povo negro no vínculo entre cárcere e colonização escravocrata (“capitalismo e crime é como níquel e o imã é sempre atração forte”), atravessada pela guerra às drogas ( “a gente já era combatente, nos consideravam drogas e guerra às drogas não era sobre os entorpecentes”).
Poderíamos acrescentar a individualização do sofrimento mental por uma continuidade de políticas públicas de saúde que só veem uma história particular, restrita, descolada da política e dos povoamentos que se ligam a uma pessoa. Frente ao “ EU da instituição”, temos a importância da música “Pânico de nada”, que começa com uma viatura em chamas, e também de, como canta Don L, não se ser do tipo que “fecha com polícia”.
Outros mundos, outras histórias
A imaginação revolucionária do álbum também quebra certa teologia linear, presente no século XIX com a ideia do progresso, seja técnico ou científico, pensando um acúmulo de conhecimento que vê apenas uma forma da razão, um único rosto derivado do “homem Europeu”. Aqui, Don L parece construir uma rede, viajando no tempo e no espaço, conectando Mariguella, Cidinho e Doca, Xis, Malcolm X, Rojava, Zapatistas, Comandanta Ramona, vietcongues, Thomas Sankara, a revolta de vila velha, canudos, quilombos e outras lutas e militantes. Tem uma cavalaria inteira em sua retaguarda.
A faixa “primavera” nos coloca diante de “tecnologias ancestrais” para introduzir um sonho dentro deste pesadelo promovido pelo capitalismo e, assim, dilatar o tempo, e imaginar um mundo novo. Na teologia linear do progresso, os povos colonizados, que sempre foram colocados no passado, e medidos com a régua da colonização, estão em conversa franca tanto com o processo revolucionário, quanto com a imaginação do futuro, quebrando hierarquias erguidas com o sangue derramado destes povos. O mundo que nos separou de nós mesmos é também o mundo que nos separou da terra, em que outros povos constituem e são constituídos por outras formas de viver em outros mundos.
Passado e futuro se misturam ao aqui e agora. O fim do mundo capitalista é o recomeço de um novo mundo. Rompe-se uma teologia do apocalipse que encerra toda possibilidade de vida, seja porque abre um reino novo, seja porque se apresenta como uma realidade única que se melhora num update sem possibilidade de mudança, há sempre uma nova versão de um programa administrável. “Eles falam de apocalipse, mas o meu já sentenciaram”, canta Don L. O tema do recomeço se aproxima de muitos povos indígenas localizados no que chamamos América do Sul. Ao contrário do apocalipse judaico-cristão, o próprio fim dos tempos, em muitas destas mitologias o fim do mundo aparece articulado ao recomeço, está sempre diante do fim de um mundo. Esta lógica cíclica se aproxima, por exemplo, da escatologia Guarani Mbya, povo que que também aparece na música lançada imediatamente antes de RPA volume 2, por Don L, “Na batida da procura perfeita”.
O fim do mundo, em termos da destruição da vida na terra, é produto da reprodução deste capital, deus, metal, que se realiza por meio das vidas exterminadas pelo racismo de Estado, seu policiamento e suas prisões. Por meio da morte de rios e florestas, pela intoxicação por mercúrio causada pelo garimpo que assassina povos indígenas neste território, hoje. Assassinatos vinculados ao ouro extraído ilegalmente para a fabricação de jóias, como ocorre nas terras Yanomami, ao lítio do meu Samsung e ao cobalto do meu Apple. Auri sacra fames.
Em 2015, houve o rompimento da barragem do Fundão, da mineradora Samarco, controlada pelas multinacionais Vale e BHP Billiton, despejando rejeitos de mineração diretamente no Rio Doce, matando as vidas que compunham com o fluxo destas águas. Este rio atravessa o território Krenak, onde é nomeada de Watu. Não se trata de um recurso, um objeto a ser explorado, e sim de um avô. Watu é uma pessoa que faz parte da produção coletiva de um povo. Ailton Krenak menciona, no livro Ideias para adiar o fim do mundo, que o encontro colonial impôs uma relação com um indivíduo que não sabia ser portador de uma guerra bacteriológica, enquanto, nos povos que habitavam este território, tratava-se, em sua maioria, de “pessoas coletivas”. Krenak nos mostra que o indivíduo, este produto que se arrasta desde a modernidade liberal, não é uma forma universal da pessoa, muito menos a única história para se contar.
RPA volume 2 também traz outras histórias, tanto de futuro quanto rememoradas. Entre Don L e Ailton Krenak, encontramos ideias para adiar o fim do mundo, enquanto planeta, e adiantar outro fim de mundo, para que recomece, para nutrir uma vida que vale a pena. Trata-se de imaginação e futuro, mas também das urgências que atravessam uma vida no presente, aqui e agora: “um dia desse eu tava meio cabreiro, sem saber o que pode me acontecer e não ver o fruto que eu plantei em algum janeiro, mas tive um relampejo de que já estão aí e a gente pode ser feliz agora mesmo.” Em RPA volume 2 não estamos diante da felicidade após o apocalipse, com um reino glorioso, nem com a conformidade com as relações de poder que atravessam o mundo hoje. Escapa-se de uma melancolia que nos colocaria em uma espera paralisante, movendo-nos diante de uma revolução atravessada por um gosto pela vida (lembrando também a música Kelefeeling de Don L).
O álbum nos faz imaginar uma revolução tomando a cidade que expropria, abre as prisões, assassina senhores de engenho de ontem e de hoje, e nos coloca, ao mesmo tempo, diante de estrada construída para o fim do capitalismo, mas que abre uma trilha para uma nova, como assinala a última música do álbum. Nada aqui parece fechar em si mesmo, nem a história, nem um indivíduo atomizado, nem a revolução. Assim também é o próprio disco, que, habitando um mundo em que o tempo corre, não para de produzir conexões e se ligar ao que está fora dele, produzindo novas relações e novos possíveis, em um tempo outro para um mundo outro.
Sobre os autores
é antropólogo e pesquisador. Trabalha como acolhedor, redutor de danos e professor de cursos de extensão no PROAD - UNIFESP e faz parte do coletivo que organiza a FLIPEI.