“O perigo domina tanto a herança da tradição quanto aqueles que a recebem. É o mesmo para ambos: ser reduzido a um instrumento da classe dominante. Em todas as épocas, devemos tentar rasgar a transmissão do passado de volta ao conformismo que está prestes a subjugá-lo.”
– Walter Benjamin, Sobre o conceito de história
Em 1995, dois anos antes do lançamento do álbum Sobrevivendo no inferno, em uma das raras intervenções do grupo na imprensa, Mano Brown, então com 24 anos, publica um pungente e panfletário manifesto direcionado à comunidade pobre, preta e periférica, um povo que “está se recuperando devagar de um nocaute na nuca”. O texto falava basicamente sobre os efeitos do colonialismo português, do imperialismo estadunidense, do “catolicismo hipócrita” que ilude o povo com promessas de uma vida melhor após a morte, anestesiando-o e, sobretudo, do racismo velado tipicamente brasileiro. O manifesto, chamado “Revolução”, se encerra da seguinte forma:
Por enquanto, estamos convencendo nossas crianças que elas não precisam ter longos cabelos louros e olhos azuis para serem grandes homens e mulheres. Não precisam usar calças da Zoomp ou M.Officer ou andar com braço pra fora nos Tempras e Ômegas. FODA-SE TUDO ISSO. Sem mais, Mano Brown, Capão Redondo (SP), favela. Cada um com seus problemas – poder para o povo preto – Revolução.
Esse era o Brown, terrorista das rimas, com uma posição bem clara sobre participar de programas como o do Faustão e do Gugu: “[ir nesses programas é] o começo da derrota dos rebeldes. Estamos começando a ganhar uma pequena batalha de uma grande guerra. Tudo está no controle dos caras: televisão e música… Os Racionais não podem trair. Muita gente conta com a nossa rebeldia”, explicava Brown em entrevista à extinta revista Caros Amigos ainda nos anos 1990. Aqui, o músico se encontra com a persona de uma fase de sua carreira, atrelado ao que Acauam Silvério de Oliveira chamou de professor autoritário, bem distante do “pastor-marginal” presente em Sobrevivendo no inferno.
Não é de se espantar a recusa do grupo em lidar com a grande imprensa da época, basta observar como ela se comportava. Para Ice Blue, “a mídia pode te colocar no topo e em dois minutos também pode fazer você cair. É uma das coisas que a gente não faz questão”. Já Brown tinha a percepção de que “o povo não acredita na imprensa não, mano. Acredita e ao mesmo tempo não acredita… Mas não falam a mesma língua não”.
Com exceção das rádios comunitárias e do falecido radialista Natanael Valêncio, da Rádio Imprensa FM, o silêncio sobre o grupo era profundo. Na TV, além de aparições pontuais na MTV e uma na TV Gazeta, o grupo era virtualmente invisível. E hoje, a relação que eles estabelecem com os meios de comunicação é uma resposta ao fato que a grande imprensa, a partir do fim da primeira década do novo milênio, passou a tratar o rap com dignidade e menos preconceito – de classe e de cor –, algo completamente novo em relação ao gênero no Brasil. O que pretendo mostrar é como a relação da imprensa, sobretudo, com os Racionais, revela algo da “linguagem zoológica” que o colono usa ao tratar o colonizado. Como apontou Frantz Fanon, essa linguagem “faz alusão aos movimentos répteis do amarelo, às emanações da cidade indígena, às hordas, ao fedor, à pululação, ao bulício, à gesticulação. O colono, quando quer descrever bem e encontrar a palavra exata, recorre constantemente ao bestiário.”
O rapper Xis, pioneiro – e muito massacrado por conta disso – no hip-hop paulistano, ao tentar flertar com a grande imprensa, rádios e TVs, diz que “eu sempre achei que a mídia nunca entendeu o rap. […] E sempre escreveram MUITA besteira”. E assim explica o isolamento midiático:
Quando a gente saía no jornal era muito estigmatizado. Todo mundo foi sofrendo com isso, e foi dando briga interna também. A gente fazia show pra 20, 25 mil pessoas e não saía uma nota em nenhum lugar. Aí você abria o jornal no outro dia e o show de fulano tal que tinha 300 pessoas ganhava meia página.
Ice Blue dá uma dimensão concreta do trabalho dessa geração: “Desbravamos o Brasil pras pessoas entenderem o que era o rap. Fomos pro morro, favela, fazendo show de graça, passando 18 horas dentro de uma van. A gente não era aceito como pessoa nem o rap como música […]”.
Alexandre de Maio, um dos editores da revista Rap Brasil (depois Rap.BR), tem uma visão complementar sobre o impacto do álbum de 1997 no grupo de seus pares jornalistas e afirma que “até esse momento do lançamento do disco para a imprensa brasileira a referência era o Gabriel O Pensador”. A novidade para ele se dava nos seguintes termos: “Um rap de periferia com texto agressivo e uma análise sociológica feita por quem é da periferia não existia até então [para a imprensa]. Depois disso, as pessoas passaram a entender o que era o rap.”
“Punks” sem saber
No final de 1997, quando o álbum Sobrevivendo no inferno foi lançado, eu acabava de completar meu primeiro e doloroso ano na USP e, em paralelo para me permitir respirar, minha relação e participação na comunidade punk se intensificava. Pode-se dizer que senti o impacto do álbum através desse filtro. E foi estrondoso! O que o álbum trouxe à baila, inclusive o que ele mostrou das cisões sociais e raciais do país, foi marcante demais. Se a questão racial era presente naqueles tempos de forma mais articulada no meio anarcopunk (inclusive com o projeto Anarquistas Contra o Racismo), ela passou a se espraiar indistintamente nas diversas esferas do punk, e com o orgulho de ser periférico e favelado. Claro, são movimentações que ressoam o efeito da obra no cenário sociocultural mais amplo. Mas ainda havia o fato de serem independentes e se recusarem a falar com a mídia, o que exercia enorme atração em um punk fanzineiro de 19 anos. “São punks ortodoxos e nem sabem disso”, sentenciava uma revista de rock sobre os Racionais, em 1998.
Embora o rap estivesse presente em minha vida através da minha relação com a cultura do skate, neste momento eu passei a frequentar shows e acompanhar não só os Racionais mas DMN, RPW, Possemente Zulu, Thaíde e DJ Hum, Facção Central, Visão de Rua, Potencial 3, Dígito 4 e tantos outros com aquele apuro que marca a relação de fã com o artista. Mas sem deixar o olhar crítico do punk de lado e atento ao pouco que era dito sobre o assunto na grande imprensa, já que os grandes jornais do país circulavam diariamente na biblioteca da Faculdade de Letras da USP. Era uma relação no mínimo esquisita, bélica, desses veículos com o rap, o hip-hop nacional. Pelo filtro punk, eu diria que era bastante racista.
O respeito de grande parte da elite intelectual brasileira foi construído a partir de uma relação cheia de ressalvas e percalços. Quando tratamos de rap no Brasil, posso afirmar com convicção absoluta: as coisas nunca terminam na música em si. Em 2007, quando os Racionais já haviam recebido aclamação massiva de público e crítica, a famosa colunista da Folha de S.Paulo, Barbara Gancia, escrevia algo dessa natureza:
Em um país em que o presidente da República acha espirituoso falar em “ponto G” em coletiva de imprensa, distribuir dinheiro público para ensinar a jovens carentes as técnicas do grafite ou a aspirantes a rapper como operar pick-ups, pode até parecer coisa natural. Mas eu pergunto: a que ponto chegamos? Desde quando hip-hop, rap e funk são cultura?
Se cada palavra tem seu perfume, sua cor, sua alma como afirmava o poeta revolucionário Maiakovski, é certo que o desencontro entre a grande imprensa e os Racionais MC’s começava pelo vocabulário do grupo, impregnado de perfume popular, de sua cor era negra de quem se reconhece e se afirma em sua negritude e de sua alma (talvez) de “um sádico, um anjo, um mágico, juiz ou réu, um bandido do céu, malandro ou otário, quase sanguinário, franco atirador se for necessário” (“Capítulo 4, versículo 3”). Definitivamente muita treta para Vinícius de Moraes, lembrando verso de uma letra do próprio grupo.
Disputa na imprensa
É no mínimo curioso pensarmos que no mesmo mês em que o disco saiu, a edição de Caros Amigos, maior publicação de esquerda no país na época, teve como tema de capa uma reportagem sobre as campanhas de prevenção à AIDS que chegavam nas periferias e, em menor destaque, a chamada para uma “entrevista explosiva” com o delegado José Vicente, da Associação de Delegados de Polícia para a Democracia, com as aspas “A lei é só para pobre, preto e prostituta”. Na entrevista, José Vicente, negro – a questão racial não é abordada pelos oito entrevistadores –, afirma que “o brasileiro, a sociedade como um todo, é extremamente autoritária, extremamente violenta e agressiva”. No restante da revista, nenhuma menção aos Racionais, ao hip-hop e ao rap. Mas algo estava no ar e a revista foi a primeira (e única) a entender e capitalizar com o fenômeno Racionais MC’s.
Em janeiro de 1998, o líder do grupo já estampa a capa da revista com a manchete “Mano Brown – líder dos Racionais MC’s – A periferia vai à guerra”. A reportagem de Sergio Kalili, salpicada com falas do próprio rapper, destaca-se das demais – mesmo as realizadas posteriormente –, e só encontra paralelo no trabalho de André Caramante, escrito mais de uma década depois. Nela, ficamos sabendo que o disco vendeu 200 mil cópias em 4 semanas – hoje, fala-se em 1,5 milhão de cópias mais 4 milhões vendidas pela pirataria desde o seu lançamento, lembrando que a internet ainda engatinhava no país -, que o álbum anterior, Raio X do Brasil, vendeu 250 mil cópias do LP, e que muitos bairros de São Paulo apareciam nos primeiros lugares em um ranking mundial de lugares mais violentos. Ainda segundo a reportagem, na lista de homicídios na cidade de São Paulo, em 1996, Capão Redondo foi o bairro com mais mortes, 233, e o Parque Santo Antônio – citado em “Fim de semana no parque” – está em segundo lugar, com 186 mortes. Mas há ainda outros trechos da matéria de Sergio Kalili que merecem destaque e dão dimensão ao ineditismo do álbum e fala sobre o ambiente que existia para música rap de então. E sobre o clipe de Sobrevivendo no inferno, diz:
São sete minutos e meio de música. Um trabalho praticamente inédito, já que pouco se fez no cinema sobre o massacre. E tantos foram os longas-metragens americanos sobre a rebelião de cinco dias em Attica, em 1971, onde morreram 10 reféns e 29 presos. Até então considerado o evento de maior violência na história prisional. Agora, atrás dos 111 do Carandiru.
Até 1988, o rap tocado nos bailes falava mais de amor, ou até dos próprios bailes, do que de violência. Precisou conquistar espaço à força no Brasil e no mundo. “Tinha uma ideia de intelectualidade de que rap não era música e de que não era um movimento importante”, lembra o DJ e dançarino Eugênio Lima, diretor da companhia de street dance Unidade Móvel. “O pessoal estranhava e ria. E até a comunidade tinha preconceito com rap em português”, diz Nazi [sic], DJ, produtor de alguns dos primeiros rappers nacionais e vocalista da banda de rock Ira.
Mas nem toda a recepção do momento levou o grupo a sério. Em 15 de agosto de 1998, no jornal O Globo, ainda era possível perceber que a grande imprensa não reconhecia o esplendor da escrita dos quatro pretos mais perigosos do Brasil, e mais: ironizavam sem respeito algum a dicção do quarteto. Isso fica claro na reportagem sobre a premiação da MTV que consagrou o grupo, indicados em 4 categorias e vencedores nas categorias Melhor Vídeo de Rap e Clipe do Ano com a música “Diário de um detento”: “Com um discurso contundente, mas que daria muito trabalho ao professor Pasquale.” Na esteira da impactante apresentação do grupo na premiação, o colunista Artur Xexéo, do Jornal do Brasil, dedicou quase o tempo todo para fazer uma ode ao grupo – não sem cometer um jogo dos 7 vacilos grotescos dos quais vale destacar apenas um: “O grupo Racionais MC’s ganhou o prêmio e arrombou a festa. Não que a MTV não soubesse o que poderia acontecer. Pelo contrário. A emissora é uma das maiores divulgadoras do trabalho do grupo formado por quatro paulistas da periferia, ex-presidiários [grifos nosso], que fazem um rap, digamos assim, de denúncia.”
O jornal O Pioneiro, de Caxias do Sul (RS), em 27 de abril de 1998, é taxativo ao dar destaque à repercussão de um fato ocorrido no show do grupo em São Paulo: “O grupo de rap Racionais MC’s provocou tumulto e tiroteio [grifos nosso] na madrugada de sábado, na casa de show Emoções, em São Paulo.” No mesmo jornal, meses depois, repercute a informação que o Ministério Público iria processar Mano Brown por ter sugerido o sequestro do jogador Ronaldo e outros jogadores em matéria da revista Trip. Aliás, essa matéria rendeu muito assunto em diversos jornais, rádios e revistas Brasil afora. Entre outras frases contundentes, Brown afirmara que
Essa porra de Brasil não tem saída se não for pela força. Só pela força [do esporte, ele explica ao jornalista e fala sobre a força da violência]. A luta armada já tem né, mano? Só que as armas estão viradas para o lado errado. As armas estão viradas para nós mesmos: morro daqui contra morro dali. O dia que virar todo o mundo pra lá…
Essa afirmação, junto com outras sobre jogadores de futebol sem sensibilidade alguma para o mundo que os rodeia, acabava com a frase sobre o sequestro do jogador: “O Ronaldinho comprou uma Ferrari de 500 mil dólares, 600 mil dólares. Mete um sequestro nele, dá um meio de sumiço nele para ver se ele não para com essa putaria.”
Segundo o jornalista Álvaro Pereira Jr., na Folha de S.Paulo, “parece conversa de justiceiro. […] Também parece discurso de barão do tráfico […] aquele típico demagogo que tenta justificar sua atividade criminosa dizendo-se solidário com a população pobre.” Ainda que no campo das sugestões o jornalista – e polemista profissional – Álvaro Pereira Jr. tenha batido forte comparando Brown a um justiceiro e depois a um barão do tráfico, na sequência “assopra” dizendo que “o autor do raciocínio é um dos mais importantes artistas brasileiros da atualidade”. E o jornalista vai além em sua tratativa sobre uma suposta etiqueta: “Todo mundo sabe que, em geral, artistas que tentam fazer algo a mais do que sua arte acabam escorregando.” Erguido o espantalho, fecha a coluna com “ninguém precisa de opiniões tão rasas e racistas quanto as de Mano Brown, mas muita gente precisa da música arrebatadora dos Racionais MC’s”.
O jornalista Sérgio Martins, em setembro de 1998, escrevera uma matéria tentando explicar a relação entre a mídia e o rap: “A resistência é recíproca – os rappers ignoram a grande mídia, assim como ela procura mantê-los à distância. Melhor para eles.” Bagre ensaboado, o “melhor para eles” soa como um mea culpa para o fato da revista da qual era editor, a Showbizz (outrora Bizz, a mais importante revista de música do país) poucas vezes ter aberto as portas para o rap paulistano. E ainda comenta no decorrer da matéria: “Raramente recebo fitas [como editor da revista] ou CDs demo de bandas de rap, apenas de grupos de rock formados por rebentos da classe média. Nenhum jornalista embasbacado pelos Racionais falou de RZO e DMN […], prováveis sensações do movimento hip-hop”. Assim, justifica o recorte de classe de sua publicação como se jornalistas não pudessem fazer pesquisa de campo. Mas a reportagem nos dá alguns elementos para entendermos o contexto no qual se moviam os Racionais.
Martins afirma que o grupo já era grande em 1993, quando lotou a quadra da escola de samba Rosas de Ouro no lançamento do álbum Raio X do Brasil e, “com exceção do Notícias Populares, nenhum caderno de cultura da cidade se preocupou em divulgar isso”. E que Thaíde e DJ Hum haviam vendido 80 mil cópias, em 1996, do álbum Preste atenção, que inclui o hit “Senhor tempo bom”, e que na TV, além do memorável Yo Rap! na MTV, apresentado pelo KL Jay, havia aos sábados, na extinta CNT, o programa Ligação, que dava algum espaço ao gênero rap.
“Realidade violenta dos Racionais MC’s”
Já em 1998, a grande imprensa anunciava que “os Racionais MC’s, grupo paulistano que explodiu com letras que criticam os mauricinhos e afins e que se tornou fenômeno mesmo para este grupo”. E é fato que, ao contrário de seu antecessor, fenômeno nas periferias, sua música agora ultrapassava “a ponte pra lá”. E não é o caso de aplainar o murro na nuca que foi a chegada dos Racionais MC’s ao mainstream nacional. Em nota sobre o horário eleitoral presidencial do pleito de 1998, o Jornal do Brasil destaca fala de Mano Brown no programa do então candidato (que sairia derrotado) Luiz Inácio Lula da Silva: “Se você tá contente com o que tá acontecendo, uma pá de mano desempregado, as cadeia tudo lotada, faculdade só pra rico, escola tudo zoada, tudo quebrada, sem professor… Se você tiver contente com tudo isso aí, continua votando no playboy que tá lá em cima [referindo-se ao então presidente candidato à reeleição Fernando Henrique Cardoso].” É claro, a mesma nota faz questão de frisar que Mano Brown se expressa “atropelando palavras e comendo letras”. Era muito comum um certo desdém por parte dos jornalistas pelo domínio da língua que exercitava em suas letras ou declarações públicas.
Sobre o preconceito linguístico notado nessas trombadas entre o quarto poder e o quarteto paulistano, Marcos Bagno esclarece que, para distinguir o que deveria ser vernáculo das elites do “português popular brasileiro rico de inferências ameríndias e africanas, por exemplo, criaram o modelo de ‘língua certa’ importado, que em nada contempla a riqueza da língua viva no país.”
Ademais, é inegável que o que comumente apontam como “violência” é tão somente um recorte classista muito preciso e afirmativo – o que em outras épocas chamariam de luta de classes. “Em primeiro lugar, [o maior conflito de hoje] é o rico com o pobre. Em segundo, do preto com o preto. Em terceiro, do branco com o preto”, explicaria Mano Brown através de uma compilação de declarações recolhidas pela revista Carta Capital em 2004.
Uma tendência forte na imprensa corporativa foi a de dar espaço a supostos atritos e rixas com outros artistas emergentes do rap. Entre outras matérias publicadas no Jornal do Brasil, destacamos duas de 2000: “Pavilhão 9 abre o verbo”, em que a jornalista faz questão de informar que o clima entre o grupo Pavilhão 9 e os Racionais “não era dos melhores”; e a reportagem “Xis, novo bambambã do rap brasileiro” sobre o álbum clássico Seja como for, do rapper Xis, o jornalista repete diversas vezes que o disco “prega a paz”, quase que verbalizando que o álbum seria um antídoto à “violência” de seus compadres paulistanos. Mas não foi só o Jornal do Brasil que se prestou a esse (des)serviço.
O Correio Braziliense, em 2002, dá nota sobre o lançamento do disco Nada como um dia após outro dia com a ressalva que o valor de R$ 23,90 do CD duplo, estampado na capa, era “muito elevado pro padrão dos ‘manos’”. Na mesma página, com muito mais destaque, matéria sobre a rixa entre Xuxa e sua ex-empresária. Porém, neste mesmo jornal e no mesmo ano, em entrevista com o jornalista musical Ricardo Alexandre, o mesmo é taxativo: “Racionais é rock.” O uso do gênero musical de origem negra e apropriado pelos brancos aparece como adjetivo, como gênero que reflete “a sociedade jovem que a cerca” – afirmação que aplaina tanto o rock enquanto gênero quanto a importância do quarteto paulistano. O jornal também noticiou a morte de um jovem em um show do grupo em janeiro de 2005 – violência exemplar de um período difícil para o rap nacional, que veria novos dias de glória com o boom de uma nova geração no final da primeira década do século XXI.
Em 2005, n’O Globo, Racionais é tema das palavras cruzadas do jornal. A ida de Mano Brown ao Roda Viva merece destaque e cada aparição de algum membro do grupo na capital fluminense não passa em branco. De elefante branco pisoteando os cristais na sala de jantar passam a convidados – ainda que ausentes em declarações públicas – ilustres.
Vale registrar que os cadernos esportivos dos grandes jornais sempre foram generosos na acolhida ao som do grupo. Ao menos desde o Raio X do Brasil, a música dos Racionais já embalava jogadores e comissões técnicas de clubes brasileiros e isso era notado nesses cadernos. Em 2009, André Caramante constata que “muitos jogadores de futebol, a maior parte originária de famílias humildes, gostam de Racionais” e elenca jogadores famosos que nutrem respeito e admiração pelo grupo, como o lateral Kleber, Robinho, Ronaldo Fenômeno e Ronaldinho Gaúcho. Como resultado disso, os repórteres futebolísticos sempre tiveram cuidado ao escrever sobre eles. O erro comum, na imprensa cultural, de apontar os quatro músicos como santistas, jamais ocorreu nos cadernos esportivos, que sabiam muito bem que Ice Blue era corintiano e os demais santistas.
Trecho do livro Racionais Mc’s: Sobrevivendo no inferno (Cobogó, 2021)
Sobre os autores
é formado em Letras, Pedagogia e Gestão Ambiental. Começou a mexer com a palavra escrita por meio do fanzine Velotrol, que editou de 1995 a 1999, e hoje já passou por várias redações do país. Escreveu para as revistas MTV, Cooperifa e Vice, entre outras. Vive em Pouso Alegre (MG).