Embora Cuba seja responsável por apenas 0,08% da emissão global de CO2, essa pequena ilha caribenha é desproporcionalmente assolada pelos efeitos das mudanças climáticas. A frequência e a severidade dos eventos climáticos extremos — furacões, secas, chuvas torrenciais, enchentes — tem aumentado, causando danos no ecossistema, na produção de alimentos e na saúde pública. Se nada for feito para proteger as regiões litorâneas do aumento do nível do mar, mais de 10% do território cubano irá submergir até o fim deste século. Isso ameaça varrer do mapa cidades costeiras, poluir sistemas de abastecimento de água, destruir terras agricultáveis, destruir praias turísticas e forçar a realocação de um milhão de pessoas — cerca de 9% da população.
Entretanto, ao contrário de diversos outros países, onde a ação climática é sempre uma promessa para o futuro, em Cuba ações concretas estão sendo levadas adiante agora. Entre 2006 e 2020, vários relatórios internacionais identificaram a ilha como a líder em desenvolvimento sustentável. E na primavera de 2017, o governo cubano aprovou o Tarea Vida (“Tarefa de Vida”), seu plano de longo prazo para enfrentar a mudança climática. O documento identifica regiões e populações em risco, formulando uma hierarquia de “áreas estratégicas” e “tarefas” nas quais cientistas do clima, ecologistas e cientistas sociais trabalham em conjunto com comunidade locais, especialistas e autoridades para oferecer respostas a ameaças específicas. Planejada para ser progressivamente implementado em etapas, de 2017 a 2100, o Tarea Vida também incorpora ações de mitigação como a mudança para fontes de energia renovável e a aplicação legal de proteções ambientais.
No verão de 2021, fui para Cuba para aprender sobre o Tarea Vida e produzir um documentário para ser exibido durante a conferência internacional de mudança climática da COP26, em Glasgow. Minha visita coincidiu com o surto de casos de COVID-19 na ilha, as medidas de saúde pública para redução do contágio, bem como os protestos de 11 de julho. Apesar dessas condições, nos movemos livremente por Havana, entrevistando cientistas sociais e do clima, formuladores de políticas públicas, líderes da Defesa Civil cubana, pessoas nas ruas e comunidades vulneráveis às mudanças climáticas.
No litoral de Santa Fé, em Havana, encontrei com um pescador que vivia com sua família em prédios abandonados. Ele descreveu como, quanto a água inunda o terreno, sua casa fica como um barco no mar. Apesar da ameaça, eles pretendem permanecer: “Essa casa pode ser reduzida a um único tijolo e não vou sair”, ele disse. A primeira “tarefa” na Tarea Vida inclui a proteção das comunidades vulneráveis através de realocação de habitações ou de assentamentos inteiros. O Estado cubano paga pela realocação, incluindo a construção de novas casas, serviços sociais e infraestrutura pública. Contudo, não é algo obrigatório, o que significa que os residentes devem estar envolvidos no processo de construção e de tomada de decisão. Também existem exemplos de comunidades que propõem suas próprias estratégias adaptativas, que as possibilitem permanecer na costa.
Tarea Vida é a culminância de décadas de regulações de proteção ambiental, da promoção de desenvolvimento sustentável e de investigação científica. No país, é concebido como uma nova base para o desenvolvimento, parte de uma mudança cultural e um processo mais amplo de descentralização de responsabilidades, poderes e orçamentos para comunidades locais. Aqui, nós vemos que as considerações ambientais são integrais às estratégias de desenvolvimento nacional de Cuba ao invés de uma preocupação lateral. A necessidade também é um motor do Tarea Vida; a mudança climática já afeta a vida na ilha. “Hoje, em Cuba, o clima do país passa por uma completa transição de características tropicais úmidas para um clima sub-úmido, no qual os padrões de chuva, disponibilidade de água, condições do solo e temperaturas serão diferentes”, explica Orlando Rey Santos, um consultor ministerial que lidera a delegação de Cuba na COP26. “Teremos que nos alimentar de um jeito diferente, construir diferente, nos vestir diferente. É muito complexo”.
“Da floresta tropical ao canavial”
Séculos de exploração colonial e depois imperialista e a imposição de um modelo agro-exportador levaram Cuba a uma situação crônica de erosão do solo e desmatamento. A expansão da indústria de açúcar reduziu a cobertura de floresta da ilha de 95%, na pré-colonização, a 14% à época da revolução em 1959, transformando Cuba de uma “floresta tropical em canavial”, como o historiador ambientalista Reinaldo Funes intitulou seu novo e premiado livro. Remediar esse legado histórico se tornou parte do projeto para a transformação revolucionária pós 1959, que buscou quebrar as correntes do subdesenvolvimento.
Apesar das aspirações revolucionárias iniciais, Cuba continuou a ser dominada pela indústria de açúcar através do comércio com o bloco soviético. As atividades produtivas que contribuíram para a poluição e a erosão continuaram, inclusive por causa da adoção da chamada “Revolução Verde” da agricultura mecanizada — uma estratégia adotada em vários países em desenvolvimento para aumentar a produção agrícola.
Contudo, os efeitos danosos foram gradualmente reconhecidos e progressivamente remediados, particularmente a partir da década de 1990. Tem havido uma crescente preocupação com a proteção de bens naturais do arquipélago cubano, que ostenta uma extraordinária biodiversidade e recursos costeiros de importância global. A agenda ambiental foi amparada pela capacidade institucional e científica de Cuba e facilitada por seu arranjo político-econômico.
Em seu trabalho sobre a legislação ambiental de Cuba, Oliver A. Houck observou que: “desde o início, as leis da Cuba pós-revolução promoveram valores públicos e coletivos. E as leis ambientais se encaixam perfeitamente aí.” Já em maio de 1959, a Lei de Reforma Agrária deu ao Estado a responsabilidade de proteger áreas naturais, iniciou programas de reflorestamento, e excluiu reservas florestais da distribuição aos coletivos agrícolas. O sistema socialista cubano prioriza o bem estar humano e o caráter social das propriedades facilita a proteção ambiental e o uso racional dos recursos naturais.
Esse processo não foi automático — foi preciso que geógrafos e ambientalistas liderassem a agenda ambiental do governo pós-1959. Entre eles, destaca-se Antonio Núñez Jiménez, um socialista e professor de geografia da década de 1950. Ele serviu como capitão nas colunas do Exército Rebelde de Che Guevara e chefiou o Instituto Nacional de Reforma Agrária, entre outros papéis. Influenciado por Núñez Jiménez, Fidel Castro também impulsionou o movimento ambientalista em Cuba. Tirso W. Sáenz, que trabalhou com Guevara no início dos anos 1960 e liderou a primeira comissão ambiental de Cuba de 1976 me disse que “Fidel foi a principal força motriz para a incorporação de preocupações ambientais na política cubana”. O Partido Comunista de Cuba também defendia abertamente a proteção ambiental e o crescimento sustentável, o que, de acordo com Houck, “deu bastante legitimidade aos programas ambientais”.
Em 1976, Cuba estava entre os primeiros países do mundo a incluir questões ambientais em sua constituição e também foi o ano de criação da sua Comissão Nacional para a Proteção do Ambiente e Uso Racional dos Recursos Naturais. Isso foi 11 anos antes do relatório Brundtland da ONU apresentar a noção de “desenvolvimento sustentável” ao mundo. Nas décadas seguintes, estudos e projetos foram desenvolvidos e regulações ambientais introduzidas, voltadas para a proteção da flora e da fauna. Em 1992, Fidel Castro fez um discurso atipicamente curto e apropriadamente alarmante na Cúpula da Terra no Brasil. Ele culpou as relações internacionais desiguais e exploradoras, resultantes do colonialismo e do imperialismo, pela destruição voraz do meio ambiente alimentada pelas sociedades de consumo capitalistas, pondo a humanidade em risco de extinção.
Naquele ano, a constituição cubana introduziu um compromisso com o desenvolvimento sustentável. Iniciaram-se investigações científicas sobre o impacto da mudança climática em Cuba. Em 1994, foi estabelecido um novo Ministério de Ciência, Tecnologia e Meio Ambiente (MCTMA). Ele elaborou uma Estratégia Ambiental Nacional, com adoção em 1997, mesmo ano da aprovação da Lei 81 na Assembleia Nacional. Laura Rivalta, graduada em direito pela Universidade de Havana e especialista em regulações ambientais, explica que essa lei deu ao MCTMA amplos poderes para “controlar, dirigir e executar políticas ambientais” ao passo que colocou “fronteiras e limites” às atividades de empresas estrangeiras operando em Cuba. “A nova Constituição Cubana aprovada em 2019 estabelece que o direito de gozar de um meio ambiente saudável e harmonioso é um direito humano”, ela acrescenta.
Sem a obrigação de lucrar
Quatro fatores sustentam a capacidade de Cuba para desenvolver esses ambiciosos planos de Estado. Primeiro, a economia dominada pelo Estado, com planejamento central, ajuda o governo a mobilizar recursos e direcionar estratégias nacionais sem ter que incentivar o lucro privado — ao contrário de outros países que dependem de “soluções de mercado” para as mudanças climáticas.
Segundo, o Tarea Vida está erigido sobre o recorde mundial de Cuba de antecipar e de dar respostas a riscos e desastres naturais. Isso tem sido frequentemente demonstrado em suas respostas a furacões e, desde março de 2020, em relação à pandemia de COVID-19.
O terceiro é o sistema de Defesa Civil de Cuba, consolidado depois da devastação do Furacão Flora em 1963. Durante minha visita ao comando nacional, a Tenente Coronel Gloria Gelis Martínez descreveu seus “procedimentos técnicos e operacionais para os alertas precoces de impactos de eventos meteorológicos extremos. Temos zonas de vigilância e zonas de alerta máximo onde monitoramos a aproximação de um evento e seus impactos”. Um Conselho de Defesa Nacional coordena esse sistema e é replicado nas esferas provinciais, municipais e estaduais por todo o país. O meteorologista Eduardo Planos explica:
No nível local, centros de estudos de risco focam em fenômenos específicos e o bairro é organizado. As organizações sociais em cada área tomam medidas preventivas. Os governos locais estabelecem conselhos de defesa, os quais organizam como o sistema funciona, distribuem itens de alimentação básica para que as pessoas não sofram carências e verificam instalações elétricas e planos de evacuação
O quarto fator é a capacidade de Cuba de coletar e analisar dados locais. Rey Santos reforça o que isso significa na prática:
Estudos indicam que o aumento médio do nível do mar será de cerca de 29cm por volta de 2050. Todavia, realizamos a mesma análise para 66 pontos do território nacional, pois existem diferenças que dependem das condições locais. Para fazer essas análises, precisa aplicar os dados do IPCC sobre a elevação global do nível do mar para cada local em Cuba só pode ser feito se você tiver um sólido amparo científico.
Tarea vida está funcionando
Os resultados de curto prazo do quadriênio 2017-2020 do Tarea Vida estão sendo avaliados. Esse período coincidiu com a gestão do presidente Trump e a chegada da pandemia de Covid-19. O governo de Trump acentuou as sanções dos Estados Unidos à Cuba, obstruindo ainda mais seu acesso a recursos e finanças. A pandemia afetou ainda mais a economia através da perda do orçamento do turismo. Apesar disso, algumas conquistas foram tangíveis: uma porcentagem massiva de 11% das casas mais vulneráveis da costa foram realocadas; fazendas de corais foram criadas; e 1 bilhão de pesos foram investidos no programa hidráulico do país. Os programas de reflorestamento aumentaram a cobertura de floresta em 30% desde 1959.
O que os países do Sul Global podem aprender com isso? O Acordo de Copenhagen de dezembro de 2009 prometeu o financiamento climático para os países em desenvolvimento, chegando a U$S 100 bilhões por ano em 2020.
“Eles contam o financiamento duas vezes, contam o dinheiro prometido mas não entregue, contam o dinheiro dados aos países e que é devolvido como doação porque é um empréstimo”, reclama Rey Santos. “O financiamento internacional é totalmente ponderado a favor da mitigação, que é um negócio. Há muito menos dinheiro para a adaptação. O financiamento é extremamente baixo para Pequenos Estados Insulares em Desenvolvimento [SIDS, no original], que estão entre os grupos mais vulneráveis”. Ele descreve os “belos” planos de mudança climática produzidos para cumprir acordos internacionais, mas que são logo arquivados. Contrariamente, “em Cuba, Tarea Vida é um processo vivo, é um produto de um sistema que o gestou”.
O acesso de Cuba às finanças internacionais é mais limitado do que o de outros países devido ao bloqueio dos Estados Unidos, o que impede que bancos de desenvolvimento multilaterais sejam acessados. Ao invés disso, depende de cooperações bilaterais e das Nações Unidas para financiamento e cooperação. A pressão e as sanções norte-americanas não atingem apenas Cuba diretamente, elas são direcionadas contra potenciais parcerias com outros países. Por exemplo, os Estados Unidos proíbem a venda de equipamentos para Cuba se pelo menos 10% de seus componentes tiverem sido produzidos por companhias norte-americanas.
O modo como Cuba lida com a adaptação e mitigação das mudanças climáticas oferece uma alternativa aos paradigmas dominantes no mundo baseados no setor privado ou parcerias público-privadas. Ele possui uma relevância crescente para SIDS caribenhos e outros países do Sul Global que estão emergindo da pandemia de Covid-19 com níveis de endividamento que irão obstruir o futuro acesso a financiamento internacional. Isso os trará perto da realidade de restrições a financiamento e recursos que Cuba tem enfrentado há décadas por causa das sanções dos Estados Unidos. O Tarea Vida se ancora em soluções domésticas de baixo custo, não financiamento externo.
Rey Santos alerta contra a tentativa de avançar uma agenda climática sem que antes sejam enfrentados problemas estruturais como a extrema pobreza e as profundas desigualdades sociais e econômicas. Ele diz que é impossível converter a matriz mundial de energia de combustíveis fósseis para energias renováveis sem reduzir o nível de consumo quando não há recursos suficientes para produzir painéis solares e turbinas de vento necessárias ou ter espaço insuficiente para instalá-las. “Se amanhã você tornar todos os transportes elétricos, você teria os mesmos problemas de congestionamento, estacionamentos, estradas e alto consumo de aço e cimento”, ele assinala. “É preciso haver mudança no modo de vida, em nossas aspirações. Isso é parte do debate sobre socialismo, parte das idéias de Che Guevara sobre o ‘novo homem’. Sem a formação de um novo homem, é muito difícil confrontar a questão climática”. Um plano como o Tarea Vida requer uma visão que não é conduzida por lucros ou auto-interesse. “Deve possuir como premissa a igualdade social e rejeitar a desigualdade. Um plano dessa natureza requer um sistema social diferente, e ele é o socialismo”, ele conclui.
Claramente, esse arranjo econômico não existe em outros SIDS. Mas, conforme a Cúpula da COP26 em Glasgow novamente mostra a ausência dos governos em agir a respeito do clima e a recusa em se intrometer com os interesses privados, a forma que Cuba usa as ciências ambientais, soluções naturais e promove participação comunitária pode legar exemplos de melhores práticas para aqueles que queiram enfrentar os desastres climáticos.
A première online do documentário “Cuba’s Life Task: Combating Climate Change” aconteceu em janeiro de 2021 e permanece disponível, com legenda em diversas línguas.
Sobre os autores
é uma professora de teoria social e econômica na Universidade de Glasgow. Seu último livro é We are Cuba! How a Revolutionary People Have Survived in a Post-Soviet World (Somos Cuba! Como um povo revolucionário sobreviveu em um mundo pós-soviético).