A criação do PT é fruto do intenso processo de mobilização social do final da década de 70. Uma nova onda de greves por um movimento sindical combativo, a luta contra a carestia e o enfrentamento à ditadura se encontram na formação da organização política de massas da classe trabalhadora. O manifesto do novo partido, lançado em 10 de fevereiro de 1980, no Colégio Sion em São Paulo, afirmava que “os trabalhadores querem se organizar como força política autônoma”, e conclui convocando à construção coletiva de uma sociedade igualitária, “onde não haja explorados e nem exploradores”.
O primeiro a assinar a ficha é o revolucionário internacionalista Apolônio de Carvalho, herói de 3 pátrias e dirigente comunista histórico. Na sequência, os intelectuais Mário Pedrosa, Antonio Candido e Sérgio Buarque de Holanda.
O programa do partido se foca na liberdade sindical, o desmantelamento dos órgãos de repressão, na melhora das condições de vida da classe trabalhadora, na defesa de uma “reforma agrária ampla, massiva e sob o controle dos trabalhadores”, na luta pela soberania nacional e contra a dominação imperialista, e termina expressando apoio aos movimentos de defesas dos direitos das mulheres, dos negros e dos povos indígenas.
Do seu primeiro diretório nacional, máxima instância dirigente, faziam parte nomes como Lélia Gonzalez, Paulo Freire e Chico Mendes.
Construído sobretudo a partir da iniciativa de líderes operários e sindicalistas, desde o início incorpora as lutas por liberdade e contra as opressões. Em seu discurso na primeira convenção do partido, Lula já fala da importância da questão racial, da necessidade de combater a “cultura machista”, de não tratar homessexualidade como doença e expressa solidariedade à causa indígena. À síntese das várias lutas de uma classe trabalhadora diversa dá um nome simples e universal: socialismo. Um socialismo que, não podendo ser resultado de decreto, precisa ser construído de baixo para cima.
Abaixo reproduzimos o discurso de Luiz Inácio Lula da Silva na primeira Convenção Nacional do Partido dos Trabalhadores, realizada em 27 de setembro de 1981, em Brasília.
Companheiros e companheiras,
Em nome da Comissão Nacional do Partido dos Trabalhadores, e em meu próprio nome, quero expressar às companheiras e aos companheiros a grande alegria com que vemos a realização desta nossa Primeira Convenção Nacional. A Lei de Reforma Partidária, com todos os seus formalismos, com todos os seus detalhes, não conseguiu esfriar nosso entusiasmo. Embora divergindo do autoritarismo que inspira a lei dos partidos , ela foi cumprida nesta convenção, como tem sido cumprida em todas as atividades do Partido dos Trabalhadores desde o seu início. E chegamos, hoje, cumpridas todas as exigências legais, à Convenção Nacional, que nos permite obter o registro definitivo do nosso Partido.
Já somos um partido de massas
Aprovamos aqui, como manda a lei, os nossos estatutos e o nosso programa, e elegemos o nosso primeiro Diretório Nacional. Todos os que vêm acompanhando a formação de nosso partido sabem que nem os nossos estatutos, nem o nosso programa, nem os nomes que integram o Diretório Nacional surgiram para o debate apenas no momento desta convenção. Eles vêm sendo discutidos pelas bases do Partido há bastante tempo, nas nossas convenções e pré-convenções municipais e regionais, assim como na Pré-convenção Nacional, que realizamos em São Paulo, em agosto passado.
Porém, companheiros, mesmo a legislação partidária sendo restritiva, como é, provamos a toda a nação que não existe lei capaz de impedir a organização e a prática democráticas da classe trabalhadora. Fomos além do que a lei exigia: criamos mecanismos internos de participação democrática, sistemas de consulta, sistemas de pré-convenções, multiplicando os debates internos, permitindo ao maior número possível de nossos militantes e filiados ampla participação em todas as decisões. O Partido dos Trabalhadores nasceu dos que nunca tiveram vez e voz na sociedade brasileira.
Para nós, a realização desta Primeira Convenção Nacional do PT significa mais que mero cumprimento de exigências legais. Por isto, esta Convenção se realiza num clima de festa e de luta. É festa porque o Partido dos Trabalhadores é, como já disse, “uma criança inesperada”. E o clima de luta tem razão de ser porque, como toda criança inesperada, o Partido dos Trabalhadores tem que continuar lutando para continuar vivendo, sobretudo tem que continuar lutando para continuar crescendo.
A verdade é esta, companheiros: nosso partido está aí, um menino que ninguém, além de nós, queria; um menino que nasceu contra a descrença, a desesperança e o medo. Dizemos que é um menino porque ele não tem mais de dois anos e meio.
Essa criança provou que seria forte no Congresso dos Metalúrgicos do Estado de São Paulo, realizado em dezembro de 1978, em Lins.
Começou a engatinhar no Congresso Nacional dos Metalúrgicos, em Poços de Caldas [Minas Gerais], em junho de 1979. E só conseguiu dar seus primeiros passos quando saiu às ruas para participar das lutas de nosso povo contra a opressão e a fome.
Muitos duvidaram de nós, e ainda hoje há aqueles que ousam duvidar da capacidade de organização política dos trabalhadores. No início, diziam que éramos um partido dos trabalhadores de macacão, obreirista, limitado, estreito e fechado aos demais setores da sociedade. Se o Partido estava apenas nascendo, como é que esses eternos descrentes na capacidade política dos trabalhadores brasileiros poderiam saber tanto a nosso respeito? O Partido dos Trabalhadores nasceu dos operários de macacão e se orgulha de ter nascido de macacão.
Tínhamos consciência de que, independente do setor social a que pertencessem, os que acreditavam na classe trabalhadora, mais cedo ou mais tarde, estariam ao nosso lado. Foi com imensa alegria que recebemos, como primeiro intelectual a aderir ao Partido, este trabalhador das artes chamado Mário Pedrosa, há mais de 50 anos dedicando sua vida à luta dos trabalhadores brasileiros. Depois do Mário, que homenageamos hoje, outros vieram; o que há de melhor na cultura e na intelectualidade brasileira. Bastou que isso acontecesse para que surgissem os eternos descrentes, dizendo que o PT, embora nascido dos trabalhadores, se converteria em partido de intelectuais, inviável como todos os outros. Aqui, é preciso que se diga com toda a clareza: o Partido dos Trabalhadores não pede atestado de ideologia ou carteira profissional a quem quer que seja, mas sim disposição de luta, fidelidade ao nosso programa e ao nosso estatuto. Dentro do Partido, somos todos iguais, operários, camponeses, profissionais liberais, parlamentares, professores, estudantes etc.
O que esta Convenção Nacional prova a todos os descrentes, todos os desesperados e a todos os medrosos é que o Partido dos Trabalhadores é e sempre foi inteiramente viável. Vale a pena lembrar algumas coisas, companheiros. Quando partimos, em junho deste ano, para a formação das nossas comissões municipais, os descrentes diziam: “O PT não conseguirá” . Nós conseguimos, e formamos 627 em todo o País. Quando partimos, no início deste ano, para a campanha de filiação, os descrentes diziam: “O PT é inviável”. Conseguimos, e somos, hoje, perto de 300 mil em todo o País.
Hoje, ao realizarmos a nossa Convenção Nacional, há quem duvide do próximo passo. Há quem pense que o PT não conseguirá os 5% dos votos, exigidos em lei, nas eleições de 1982; que o PT não conseguirá os 3% dos votos em nove estados. Nós, petistas, temos certeza de que voto não será nosso problema, pois já somos um partido de massas. O grande desafio que temos pela frente é não incorrermos nos mesmos erros daqueles que pretenderam falar em nome da classe trabalhadora sem ao menos ouvir o que ela tinha a dizer.
O Partido dos Trabalhadores é uma inovação histórica neste país. É uma inovação na vida política e na história da esquerda brasileira também. É um partido que nasce do impulso dos movimentos de massas, que nasce das greves e das lutas populares em todo o Brasil. É um partido que nasce da consciência que os trabalhadores conquistaram após muitas décadas de servirem de massa de manobra dos políticos da burguesia e de terem ouvido cantilenas de pretensos partidos de vanguarda da classe operária. Só os trabalhadores podem conquistar aquilo a que têm direito. Ninguém nunca nos deu, ninguém nunca nos dará nada de graça.
Mudar a relação entre capital e trabalho
Nosso partido nasceu como expressão política da luta sindical. A maioria dos nossos dirigentes continua no movimento sindical, e nele encontra a fonte de suas energias e a representatividade de sua prática política. Entretanto, desde os nossos primeiros passos, o PT jamais confundiu política partidária com sindicalismo e nem admitiu fazer do movimento sindical uma correia de transmissão do Partido.
Defendemos, sempre, a autonomia do sindicalismo frente aos partidos políticos. O sindicato é uma ferramenta de luta de todos os trabalhadores, independente das preferências partidárias que tenham. Como partido, não devemos incorrer, jamais, no erro que denunciamos no governo: o paternalismo e a tutela do movimento sindical.
Se lutamos por autonomia e liberdade sindicais, é não somente frente ao Estado, mas também frente aos partidos. Acusam-nos de termos abandonado o sindicalismo para fazer política. Isso não nos preocuparia se companheiros da base não fossem, muitas vezes, sensíveis a essa argumentação. Por isso, é a esses companheiros que nos dirigimos, e não a carreiristas que roubam do trabalhador o direito de fazer política.
Companheiros: em nosso país, o sindicato, controlado pelo governo, não é suficiente para mudar a sociedade. O sindicato é a ferramenta adequada para melhorar as relações entre o capital e o trabalho, mas não queremos só isso. Não queremos apenas melhorar as condições do trabalhador explorado pelo capitalista.
Queremos mudar a relação entre capital e trabalho. Queremos que os trabalhadores sejam donos dos meios de produção e dos frutos de seu trabalho. E isso só se consegue com a política. O Partido é a ferramenta que nos permitirá atuar e transformar o poder neste país. Em nossa luta, a atividade partidária deve completar a sindical, sem que uma queira substituir ou excluir a outra.
Em todos esses anos, desde que surgiu o Partido, jamais nos afastamos do sindicalismo – e não há cassação, prisão ou condenação que nos afaste da luta sindical. Alguns companheiros dizem que, como dirigentes do PT, já não devemos “perder tanto tempo indo à porta de fábricas”. Queremos deixar bem clara uma coisa: no dia em que dirigentes do PT não puderem mais ir às portas de fábrica, aos locais de trabalho, ou lá onde se luta pela terra, é melhor fechar o PT. Não somos um partido de gabinetes, de salas atapetadas, de conchavos nos bastidores. É lá na porta da fábrica, no local de trabalho, na luta pela terra, na periferia que nos abastecemos, que aprendemos com o povo, que corrigimos a direção de nosso projeto político, que reafirmamos a nossa fidelidade ao trabalhador brasileiro.
Construir a unidade da classe trabalhadora
Hoje, o movimento sindical passa por um momento muito importante: o da criação da Central Única dos Trabalhadores, de cuja comissão executiva preparatória fazemos parte.
Enquanto lutamos pela construção da Central Única, alguns nos acusam de defender o pluralismo sindical. O que defendemos, companheiros, é antes de tudo a liberdade de as várias tendências existentes entre os trabalhadores se fazerem representar no movimento sindical. Mas isso não significa e nem pode significar sindicato paralelo ou uma central de trabalhadores pela cabeça.
A liberdade e a representatividade que queremos no sindicalismo brasileiro não admite que uma tendência se arvore em padroeira da unidade, da qual devemos ser todos fiéis devotos, sob pena de heresia ou excomunhão política. Não é em aliança com pelegos que faremos a unidade do movimento sindical, mas sim na luta, nas campanhas, nas greves. Quem não vai à luta não tem o direito de falar em unidade, pois faz o jogo do patrão e do governo, que é o de domesticar e dividir o sindicalismo brasileiro. E quem pode nos acusar de não lutar junto com a classe trabalhadora?
O Brasil é, certamente, um dos raros países deste continente que jamais conheceu uma reforma agrária. Temos tanta terra e tão poucos proprietários, embora o governo se diga defensor da propriedade… A única reforma agrária que nosso país conheceu foi quando a metrópole portuguesa o dividiu em capitanias hereditárias. E essa divisão prossegue. A terra passa, hereditariamente, para as mãos de cada vez menos proprietários, com maiores extensões de áreas improdutivas. As multinacionais aceleram a exploração capitalista no campo e reforçam o latifúndio, expulsando milhares de famílias, que já não têm para onde emigrar. Neste país tão grande, o lavrador sem terra já não tem para onde ir. Só lhe resta uma alternativa: lutar!
Todo apoio à luta pela reforma agrária
O PT apoia e apoiará sempre a luta pela reforma agrária, pelo direito à terra para quem nela trabalha, pelos melhores preços dos produtos dos agricultores com a eliminação dos atravessadores ou intermediários. É por isso que estamos sendo processados na Amazônia; mas os processos não nos assustam. Assustam-nos as milhares de famílias sem o pequeno pedaço de chão de onde extrair os frutos necessários à vida. Assustam-nos os grileiros, os jagunços e os capangas, que são o braço armado, acima da lei, dos que juntam terras como mero capital a ser valorizado pelo tempo e pela economia inflacionária que pesa sobre nós.
Temos viajado por todos os recantos deste país. Consideramos que o problema da terra é, sem dúvida, o mais grave em nossa conjuntura. É ele que provoca os ciclos migratórios, a inchação das favelas nas cidades, o aumento do preço dos gêneros de primeira necessidade, os gastos com a importação de produtos, que, em princípio, são típicos do nosso solo. Como os lavradores, estamos cansados de esperar uma solução, e já não acreditamos em estatutos que não saem do papel. Só nos resta apoiar a luta de quem vive da terra, fortalecer o sindicalismo rural, criar condições para maior entrosamento entre cidade e campo. O PT sabe que o homem da terra está fazendo uma reforma agrária por suas próprias mãos. Como partido, é dessa luta que queremos colher os elementos concretos, práticos, que nos permitirão definir uma política precisa sobre a questão da terra. Não cabe a nós, da cidade, definir o que é bom para os companheiros do campo. Cabe a vocês, companheiros
da área rural, ensinar-nos o que devemos fazer, como devemos agir, em que podemos apoiá-los. Somos um partido dos trabalhadores da cidade e do campo. E é desta união que germinam as sementes de nossa proposta partidária.
Decorrente da falta de liberdade sindical e da inexistência de uma reforma agrária, afeta gravemente a vida dos trabalhadores brasileiros, hoje, o desemprego – fruto amargo da falida política econômica adotada pelo regime vigente. A economia atual rege-se pelas flutuações do mercado e não pelas necessidades da nação. Esse modelo capitalista é essencialmente perverso e não cremos que ele possa ser remediado. Mas não podemos esperar a mudança do sistema enquanto os desempregados engrossam o contingente de marginais, de prostitutas, de párias sociais. Temos que lutar agressivamente por mais empregos, pela estabilidade no emprego, pelo salário-desemprego, pelo salário mínimo real unificado. E um pequeno, mas importante, passo nessa luta será dado no próximo 1º de outubro, Dia Nacional de Luta, quando iremos às ruas manifestar o nosso descontentamento e as nossas reivindicações mais urgentes.
Com as lutas do movimento negro, das mulheres e dos povos indígenas
Mudou muito o cenário político de nosso povo nestes últimos anos. Outrora se acreditava que só os partidos e os grupos políticos eram capazes de centralizar a organização do movimento popular. Hoje, porém, reconhecemos que os melhores frutos são aqueles que, como o nosso partido, têm suas raízes firmadas nas múltiplas formas de organização existentes no campo, nos bairros, nas periferias, nos centros de trabalho e de estudos, nos setores que têm interesse específico a defender, como as mulheres e os negros. Graças ao movimento popular, o movimento sindical teve maior expressão nos últimos anos. Enganam-se os que ainda pensam que só nas fábricas se apóia o sindicalismo brasileiro.
No bairro da cidade ou no local de moradia da roça, os trabalhadores têm mais liberdade para se encontrar, para se reunir, para se organizar e levar adiante suas lutas sindicais, com a participação de suas esposas, de seus filhos e de seus vizinhos. Graças a essa extensa rede de movimentos populares é que o PT se afirma como expressão política que nasce de baixo para cima.
Não admitimos que as creches, os clubes de mães, as associações de moradores, os movimentos de favelas, os grupos de luta pela terra, as entidades feministas, os núcleos artísticos e demais formas de o nosso povo se organizar na base sejam manipulados como currais eleitorais ou tratados à base do clientelismo político. Reconhecemos a autonomia do movimento popular frente ao Estado e aos partidos políticos. É fundamental para a libertação deste país que os moradores de um bairro ou os posseiros de uma região – independente de suas preferências partidárias – possam se encontrar na base, em torno de suas lutas específicas. Se temos, como militantes políticos, um papel junto aos movimentos populares é o de ajudá-los em sua educação política, sem, porém, induzi-los à nossa opção partidária.
Fazer política não é só militar no Partido ou nos partidos. É também participar da luta pelo esgoto do bairro e pelo melhor preço da safra no campo. É modificando, em cada lugar deste país, as relações sociais e as relações de produção que o nosso povo chegará, um dia, a modificar em todo o País as relações de propriedade, suprimindo a contradição entre o capital e o trabalho. Por isso, não admitimos que o movimento popular seja reflexo ou extensão de nossa atividade partidária; não queremos tutelá-lo. Ao contrário, é o nosso partido que deve exprimir os anseios do movimento popular, consolidando-os politicamente.
É importante dizer uma palavra sobre o movimento de mulheres, forma de organização específica que se multiplica por este país. Frente à cultura machista que respiramos, às estruturas de uma sociedade tida como exclusiva obra masculina, reconhecemos o direito e o dever de as mulheres lutarem por seus direitos, libertando-se da condição de objeto de cama e mesa, de serem destinadas unicamente a procriar, de escravas do lar, de trabalhadoras super exploradas.
A luta das mulheres deve ajudar a nós, homens, a nos reeducarmos na direção da sociedade igualitária que queremos construir juntos. Entretanto, estamos convencidos de que essa luta não pode desligar-se da luta global de todos os brasileiros por sua libertação. A questão feminina não interessa só às mulheres nem se reduz à conquista de liberdades pessoais que, por vezes, são meros paliativos burgueses. Homens e mulheres, juntos, devemos lutar incessantemente pela emancipação das companheiras que são escravizadas nas roças e nas fábricas, que enfrentam a maternidade com insegurança e medo, que prostituem seus corpos por não terem outro meio de vida, e que jamais tiveram como exprimir sua palavra.
Há, em nosso país, uma discriminação racial genericamente velada. Um negro, porém, sabe o quanto essa discriminação, que para os brancos pode parecer velada, é real, agressiva, profunda. Ele a sente na pele. Por isso, devemos apoiar a organização dos negros por seus direitos em nossa sociedade, ainda que isso venha a descobrir, à luz do sol, o racismo que carregamos nas entranhas. Desde os escravos, os negros lutam, no Brasil, por sua libertação. Os quilombos foram conquistas mais decisivas para se acabar com a escravidão que o pretenso liberalismo da coroa portuguesa ou dos republicanos mancomunados com o capital inglês. Por isso, defendemos o direito de os negros manife starem sua cultura, sua palavra, seus anseios.
Somos pelo direito de as minorias se organizarem e defenderem o seu espaço em nossa sociedade. Não aceitaremos que, em nosso partido, a homossexualidade seja tratada como doença e muito menos como caso de polícia. Defenderemos o respeito que merecem essas pessoas, convocando-as ao empenho maior de construção de uma nova sociedade.
Acusamos a Funai de não respeitar os direitos das nações indígenas em nosso país. Denunciamos o Incra e o latifúndio como principais responsáveis pela invasão das reservas indígenas e dos parques que possuem por tradição e direito. Somos solidários à causa indígena, ao movimento União das Nações Indígenas, a que falem seus próprios idiomas e preservem sua própria cultura. Não aceitamos que o índio seja tratado como peça de folclore. Embora, erradamente, tenhamos aprendido a tratar as tribos como selvagens, na verdade, muito temos a aprender de humanidade, de socialização, de respeito à natureza e de amor à vida com os indígenas.
Pelo desmantelamento do sistema da repressão
Companheiros! Pesa sobre nós e sobre todos os que, neste País, lutam pela justiça e pela liberdade, a odiosa Lei de Segurança Nacional. Não podemos cessar a nossa resistência ao regime autocrático, implantado no Brasil por golpe de Estado em 1964, enquanto esta lei existir, legitimando o aparelho repressivo. Cabe a toda a nação manifestar o seu repúdio a essa legislação. O Estado de Direito só será restabelecido quando ela se constituir vergonhosa lembrança para nossos juristas e magistrados e o aparelho repressivo for totalmente desmantelado, sem que o poder seja cúmplice do terror.
Não vemos a abertura como um presente dos deuses. Antes, ela foi uma conquista dos movimentos populares, da luta sindical, das campanhas pela anistia, dos protestos das Igrejas e demais setores de nossa sociedade civil. Em certo momento, os arautos do regime viram que era mais conveniente entregar os anéis que correr o risco de perder os dedos. A nova conjuntura internacional exigia que o Brasil tivesse um aspecto um pouco mais de mocrático. Não nos iludamos, porém. A abertura foi apenas por cima, na tampa da panela. Por baixo, a panela continua vazia e nada se alterou na vida oprimida da classe trabalhadora. A abertura não chegou à zona rural, às favelas, aos bairros da periferia. O povo sofrido desta nação continua tão excluído da vida política quanto antes – e quando assume a luta por seus direitos, é tratado como caso de polícia. Cabe, pois, ao PT incentivar a nação à conquista de uma abertura real, na qual o poder tenha caráter democrático e natureza popular.
Algumas coisas é preciso deixar bem claro: somos um partido legal, um partido de massas, aberto a todos os brasileiros que aceitem o nosso programa político e o assumam em sua prática social. Não surgimos para dividir a oposição, pois jamais aceitamos que a bitola partidária do regime autocrático fosse critério de unidade.
Surgimos das lutas da classe trabalhadora neste país. E se não representássemos uma significativa parcela do nosso povo, não teríamos o notável crescimento que estamos tendo, a ponto de superar a nossa capacidade de organizar os núcleos, que se multiplicam em todas as partes a cada dia.
Sabemos que diversas tendências políticas encontram-se em nossa sociedade.
Reconhecemos o direito desses companheiros se organizarem em torno de suas visões e de suas propostas. Lamentamos que, por força do regime repressivo em que vivemos, essas tendências atuem na ilegalidade, embora sejam justas e legítimas as suas bandeiras. Lutamos e lutaremos pela legalização de todas elas, a fim de que suas práticas sejam comprovadas pelo veredicto popular. Preocupa-nos, entretanto, se um militante veste, por baixo de nossa camisa, outra camisa. Nunca pedimos nem pediremos atestado ideológico a ninguém.
Interessa-nos que todos sejam fiéis ao programa e às normas do PT. Interessa-nos que companheiros não queiram fazer de nosso partido massa de manobra de suas propostas. Não aceitaremos, jamais, que os interesses dessas tendências se sobreponham, dentro do PT, aos interesses do Partido. Denunciaremos, quantas vezes for preciso, certos desvios a que todos nós estamos sujeitos, como o economicismo, que pretende restringir a luta dos trabalhadores às conquistas imediatas de sua sobrevivência; o politicismo, que de cima para baixo quer impor seu dialeto ideológico aos nossos militantes, como se discurso revolucionário fosse sinônimo de prática revolucionária; o colonialismo daqueles que se autodenominam vanguarda do proletariado sem que os trabalhadores sequer os conheçam; o esquerdismo, que exige do Partido declarações ou posições que não se coadunam com seu caráter legal e a sua natureza popular; o voluntarismo dos que querem caminhar mais depressa que o movimento social; o eleitoralismo dos que desejam reduzir o PT a um trampolim de cargos eletivos e de projeções políticas; o burocratismo dos que nos criticam por ir às portas de fábrica e querem um partido bem organizado, mas sem bases populares; o oportunismo dos que só põe um pé dentro do PT e mantém o outro pronto a correr quando sentem que suas intenções não são aceitas pelos trabalhadores.
Nas ruas e nas urnas
Vamos concorrer às próximas eleições e apresentaremos candidatos a todos os cargos, em todas as regiões do País. Entretanto, não cremos que eleições sejam o que há de mais importante e definitivo para o nosso partido. Sem dúvida, elas têm sua importância e devemos conquistar, sempre, mais espaço na área parlamentar e nas funções executivas, de modo a fazermos ecoar as reivindicações dos trabalhadores. Mas nossas ferramentas de luta vão além de eleições periódicas: importa-nos fortalecer o movimento popular, os sindicatos, as oposições sindicais, os que lutam pela terra e todas as formas de organização, de mobilização e de união de nosso povo. É com esta plataforma que os nossos candidatos devem ter compromisso. Ninguém se elegerá pelo PT senão como candidato partidário, ciente de seus deveres para com as propostas e a disciplina partidária.
Quero ainda ressaltar nosso apreço por esses companheiros que, em todos os rincões do País, dão mostras de serviço efetivo aos interesses populares, enfrentando toda sorte de perseguições, calúnias, prisões e expulsões: os membros das comunidades eclesiais de base e os padres e bispos ligados a elas. Não somos um partido confessional e não aceitamos que a Igreja interfira em nossas atividades, assim como não queremos interferir nas atividades da Igreja. Entre a Igreja e o Partido deve haver clareza das funções diferentes, distintas, embora, muitas vezes, estejamos, na vida oprimida e injusta de nosso povo, unidos pelo mesmo anseio de libertação.
Contudo, repudiamos a prática partidária que pretenda reduzir as comunidades de base a núcleos partidários. Respeitamos, como questão de princípio, a fé de nosso povo e seu direito de liberdade religiosa, como atividade pública, mas não seremos, jamais, um partido de crentes ou de ateus. Para nós, a divisão é outra, é entre os que estão do lado da libertação e os que estão do lado da opressão. O Partido dos Trabalhadores não poderá, jamais, representar os interesses do capital.
Reconhecendo todos aqueles que na Igreja prestam serviços à causa do povo brasileiro, denunciamos as perseguições que o governo faz a leigos, padres e bispos, em nome do fantasma do comunismo. Nosso partido apoiará sempre, independente de sua confissão ou crença religiosa, todos aqueles que, neste país, são vítimas da intolerância, do arbítrio e da crueldade do poder.
Rumo ao socialismo democrático
Há muita gente que pergunta: qual é a ideologia do PT? O que pensa o PT sobre a sociedade futura? Aqueles que colocam tais perguntas avançam, ao mesmo tempo, as suas próprias interpretações, que visam, em alguns casos, criticar o Partido. Não seria o PT apenas um partido trabalhista a mais? Não seria o PT apenas um partido social-democrata, interessado em buscar paliativos para as desigualdades do capitalismo? Sabemos de onde vêm essas dúvidas e essas interpretações. E sabemos disto até porque são compartilhadas por alguns militantes do próprio Partido, que construíram, para si, a teoria estranha de que o PT é uma frente ou um partido apenas tático.
O que importa aqui observar é que essas questões só servem para expressar a desconfiança em relação à capacidade política dos trabalhadores brasileiros em definirem o seu próprio caminho. São dúvidas de quem exige, desde já, uma receita da sociedade futura; são dúvidas de quem oferece o prato feito, que os trabalhadores deveriam comer. São dúvidas de quem está longe das tarefas concretas das lutas populares, de quem não aprendeu ainda a conviver com o povo, muito menos a sentir o que o povo sente.
Nós, do PT, sabemos que o mundo caminha para o socialismo. Os trabalhadores que tomaram a iniciativa histórica de propor a criação do PT já sabiam disto muito antes de terem sequer a ideia da necessidade do Partido. E, por isso, sabemos também que é falso dizer que os trabalhadores, em sua espontaneidade, não são capazes de passar ao plano da luta dos partidos, devendo limitar-se às simples reivindicações econômicas. Do mesmo modo, sabemos que é falso dizer que os trabalhadores brasileiros, deixados à sua própria sorte, se desviarão do rumo de uma sociedade justa, livre e igualitária. Os trabalhadores são os maiores explorados da sociedade atual. Por isso sentimos na própria carne e queremos, com todas as forças, uma sociedade que, como diz o nosso programa, terá que ser uma sociedade sem exploradores. Que sociedade é esta senão uma sociedade socialista?
Mas o problema não é apenas este. Não basta alguém dizer que quer o socialismo. A grande pergunta é: qual socialismo? Estamos, por acaso, obrigados a rezar pela cartilha do primeiro teórico socialista que nos bate à porta? Estamos, por acaso, obrigados a seguir este ou aquele modelo, adotado neste ou naquele país?
Nós, do Partido dos Trabalhadores, queremos manter as melhores relações de amizade com todos os partidos que, no mundo, lutam pela democracia e pelo socialismo. Este tem sido o critério que orienta e continuará orientando os nossos contatos internacionais. Um critério de independência política, plenamente compreendido em todos os países por onde andamos, que devemos aqui declarar em respeito à verdade e como homenagem a todos os partidos amigos. Vamos continuar, com inteira independência, resolvendo os nossos problemas à nossa maneira.
Sabemos que caminhamos para o socialismo, para o tipo de socialismo que nos convém. Sabemos que não nos convém, nem está em nosso horizonte, adotar a ideia do socialismo para buscar medidas paliativas aos males sociais causados pelo capitalismo ou para gerenciar a crise em que este sistema econômico se encontra.
Sabemos, também, que não nos convém adotar como perspectiva um socialismo burocrático, que atende mais às novas castas de tecnocratas e de privilegiados que aos trabalhadores e ao povo.
O socialismo que nós queremos se definirá por todo o povo, como exigência concreta das lutas populares, como resposta política e econômica global a todas as aspirações concretas que o PT seja capaz de enfrentar. Seria muito fácil, aqui sentados comodamente, no recinto do Senado da República, nos decidirmos por uma definição ou por outra. Seria muito fácil e muito errado. O socialismo que nós queremos não nascerá de um decreto, nem nosso, nem de ninguém.
O socialismo que nós queremos irá se definindo nas lutas do dia-a-dia, do mesmo modo como estamos construindo o PT. O socialismo que nós queremos terá que ser a emancipação dos trabalhadores. E a libertação dos trabalhadores será obra dos próprios trabalhadores.
Sobre os autores
é um político, ex-sindicalista e ex-metalúrgico, principal fundador do Partido dos Trabalhadores e o 35.º presidente do Brasil.