Extraído com autorização do autor do livro Lula, volume 1: Biografia, de Fernando Morais (Companhia das Letras, 2021)
A milhares de quilômetros de distância da Europa e 680 de Brasília, trecho por onde o incansável Leonel Brizola transitava na luta pela reimplantação de seu partido trabalhista, Lula se reunia na plácida Poços de Caldas, no sul de Minas Gerais, para assentar o primeiro tijolo de sua sonhada catedral política, o Partido dos Trabalhadores (PT).
Com certidão de nascimento lavrada apenas em 11 de fevereiro de 1982, quando o Tribunal Superior Eleitoral (TSE) reconheceu oficialmente sua existência, o PT foi apresentado ao mundo como se tivesse nascido no auditório do Colégio Sion, no bairro de Higienópolis, em São Paulo, no dia 10 de fevereiro de 1980, na célebre foto em que aparecem, entre outros, ao lado de Lula, os intelectuais Sérgio Buarque de Holanda, Mário Pedrosa, Antonio Candido, a atriz Lélia Abramo e o revolucionário Apolônio de Carvalho. Mas havia só trabalhadores quando o partido veio à luz, de verdade, no dia 7 de junho de 1979, nos imponentes salões neoclássicos do Hotel Palace, elegante estabelecimento inaugurado em Poços de Caldas em meados dos anos 1930.
Nos sete meses que separam Poços de Caldas da cerimônia do Colégio Sion, entretanto, os mais brilhantes astros da esquerda brasileira se engalfinharam como há muito tempo não se via. É verdade também que, para desconforto das alas mais radicais, estivesse entre seus fundadores ninguém menos que Joaquim dos Santos Andrade, o Joaquinzão, tido por muitos deles como o mais acabado símbolo do pelego sindical.
Sem que quase ninguém soubesse, até chegar a Poços de Caldas, Lula e seus companheiros do ABC tinham ruminado durante meses seguidos a ideia de criação de um partido político de raízes verdadeiramente operárias. Primeiro foi o espanto pela ausência quase absoluta de trabalhadores entre os congressistas. A consciência de que havia apenas dois operários entre quase quinhentos senadores e deputados federais deixara Lula com a pulga atrás da orelha — e passou a ser tema obrigatório de todos os debates, encontros e congressos de que ele participava. Onde quer que fosse convidado para falar de questões salariais, de inflação, de desemprego, ele dava voltas, fazia circunlóquios e rodeios até que finalmente batia no alvo: boa parte da responsabilidade pela penúria vivida pelos brasileiros pobres residia na representação quase nula deles, os trabalhadores, nas Casas que faziam as leis que regiam tudo no país.
A metamorfose do Lula “detesto política e quem gosta de política”, que começara a se tornar pública no tal congresso dos petroleiros de meados de 1978, na Bahia, reaparece em janeiro de 1979 na cidade de Lins, no interior paulista, durante o IX Congresso dos Trabalhadores Metalúrgicos, Mecânicos e de Material Elétrico do Estado de São Paulo. Embora não fosse um centro industrial, a cidade havia sido escolhida por ter como prefeito o engenheiro Waldemar Casadei, representante do grupo “autêntico” do MDB.
Além de trazer outra vez à tona a discussão da criação de um partido operário, o encontro de Lins permitiu que a imprensa e a opinião pública tivessem acesso a informações que até então só circulavam nos bastidores sindicais: ao contrário do que se poderia imaginar, o dito “pelego” Joaquinzão, com seus bigodões e costeletas de cantor de boleros, estava ao lado de Lula; o Partidão, a julgar pelas intervenções de Arnaldo Gonçalves, presidente do Sindicato dos Metalúrgicos de Santos e respeitado dirigente do PCB, não queria nem ouvir falar no assunto. E, por fim, a boa receptividade de Casadei mostrava que o grupo autêntico era uma porta na qual o futuro partido poderia certamente bater. Não por acaso, os dois únicos trabalhadores que ele vira no Congresso eram emedebistas de São Paulo — os metalúrgicos Aurélio Peres, ligado ao PCdoB, e Benedito Marcílio, presidente do Sindicato dos Metalúrgicos de Santo André.
A coincidência de propostas e a afinidade com os autênticos do MDB levaram Lula, antes de armar o encontro de Poços de Caldas, a abrir para os setores de esquerda da política convencional a ideia da construção do novo partido. No fim de semana que antecedeu a reunião de Poços, ele e mais algumas dezenas de metalúrgicos instalaram o que ficou conhecido como “o encontro do Pampas”, nome tirado do Pampas Palace Hotel, situado na entrada de São Bernardo do Campo, que receberia na ocasião políticos e sindicalistas vindos de todo o Brasil.
O prédio de concreto à vista, arquitetura moderna e formato cilíndrico ferveu durante os dias 2 e 3 de junho. Como o próprio Lula repetiria depois, tinha chegado a hora da onça beber água. Com os alicerces do novo partido devidamente cimentados entre trabalhadores nos encontros da Bahia e de Lins (que se consolidaria em Poços de Caldas), a reunião do Pampas pretendia medir o grau de envolvimento dos parlamentares de esquerda no projeto.
Originalmente, o que se pretendia é que a reunião fosse fechada, o que evitaria que os rachas internos viessem a público. Mas só quando os trabalhos foram abertos, na manhã de sábado, é que Lula e os sindicalistas que já estavam decididos a criar o partido se deram conta de que havia quase duzentas pessoas no auditório, tudo sob o olhar atento de repórteres dos quatro grandes jornais nacionais da época, os paulistas Folha de S.Paulo e Estadão e, do Rio, o Jornal do Brasil e O Globo.
Não seria exagero afirmar que lá estavam representadas todas as tendências e correntes que viriam a compor o PT: sindicalistas, intelectuais, representantes da Igreja católica, ex-exilados, muitos deles egressos da luta armada e de setores do MDB. Esta, a propósito, seria uma das inovações que o partido traria para a política — algo inconcebível até então mesmo em partidos de esquerda, brasileiros ou estrangeiros: o direito à participação de grupos com concepções políticas próprias e com representatividade formal nos diretórios e nas comissões executivas, sempre considerada a proporcionalidade da representação.
As dificuldades começaram com o perfil frentista do partido de “oposição consentida”, conhecido de todos como um enorme balaio de gatos que misturava pelo menos três grupos: os “autênticos”, representados pela ala esquerda do partido, os “moderados”, que se apresentavam como adversários da ditadura mas evitavam radicalismos de qualquer natureza, e até os ditos “adesistas”, vistos como uma quinta-coluna do regime infiltrada na oposição. Havia gente de todas essas facções naquele fim de semana em São Bernardo e de vários pontos do Brasil, do gaúcho “autêntico” Alceu Collares (brizolista de primeira hora, contrário à criação do novo partido) ao “moderado” pernambucano Jarbas Vasconcelos.
De São Paulo podiam-se ver políticos já decididos a aderir ao PT, como Airton Soares e Bete Mendes. O também paulista e “autêntico” Alberto Goldman, membro do ainda ilegal PCB, era tão radicalmente contra a criação do partido que, mesmo convidado, nem sequer se deu ao trabalho de fazer presença. Para acentuar ainda mais a miscelânea daquela farândola, havia “autênticos” contrários à criação do PT por entenderem que o novo partido racharia a frente ampla compreendida dentro do MDB, beneficiando e aumentando a expectativa de vida do regime militar. Estrelas da política, como Fernando Henrique e Almino Afonso, que defendiam que o novo partido tivesse o caráter de frente socialista, não escondiam seu descontentamento com o rumo que a reunião tomava.
Tudo isso ocorria com a presença de algumas dezenas de sindicalistas que já davam a criação do PT como favas contadas, como o petroleiro Jacó Bittar, de Paulínia, o metalúrgico Henos “Saúva” Amorina, presidente do sindicato de Osasco, e seu vice, o caldeireiro José Pedro “Sarrafo” da Silva, que tinha um pé no chão de fábrica e outro no grupo de “Padres Operários” das Comunidades Eclesiais de Base da Igreja católica, o gaúcho Olívio Dutra, presidente do sindicato dos bancários de Porto Alegre, e Paulo de Mattos Skromov, do sindicato dos trabalhadores nas indústrias do couro de São Paulo.
Entre artistas e acadêmicos tinha-se a impressão de que a ideia da criação do Partido dos Trabalhadores parecia ser próxima da unanimidade. Embora o professor Sérgio Buarque de Holanda tenha entrado para a história como o primeiro intelectual a apoiar a criação do PT, a verdade é que o número 1 do mundo acadêmico a aderir ao partido de Lula foi o crítico de arte Mário Pedrosa. Filiado em 1926 ao Partido Comunista Brasileiro (nessa época, Partido Comunista do Brasil), que ainda engatinhava, sua passagem pelo Partidão durou pouco. Acusado do imperdoável pecado de aderir ao trotskismo, Pedrosa foi expulso do PCB em 1931, arrastando consigo, para o que viria a ser a Quarta Internacional, três outros luminares do marxismo brasileiro — Lívio Xavier, Fúlvio Abramo e Aristides Lobo.
Meio século depois, já reconhecido como um dos mais refinados intelectuais do país, Pedrosa não apenas endossou a criação do PT, mas tornou-se um propagandista do que considerava “algo que nunca existiu no Brasil, operários construindo seu próprio partido”. Fascinado pela perspectiva de algo tão revolucionário, saiu a campo recrutando adesões no meio intelectual. Seu primeiro alvo foi um antigo companheiro da Esquerda Democrática e do Partido Socialista, nos anos 1940, o professor Antonio Candido de Mello e Souza, já consagrado por sua vasta obra crítica, na qual se destacavam, entre outros, Formação da literatura brasileira e Os parceiros do Rio Bonito.
Candido refugou, alegando que não queria mais saber de partido político. Além disso, acrescentou, já tinham chegado a seus ouvidos rumores de que Lula fazia restrições públicas à presença de intelectuais e estudantes e se queixava de que “esse pessoal só quer saber de manipular e encher a gente”. Pedrosa não entregou os pontos:
– Candido, desde Lênin os partidos políticos são sempre concebidos por intelectuais. Pela primeira vez alguém, o Lula, no caso, quer juntar as duas coisas, operários e intelectuais. O partido vai precisar de gente como nós, ainda que como simpatizantes.
Se ainda não conseguira convencer Antonio Candido a assinar a ficha de inscrição, a argumentação de Pedrosa pelo menos trouxe-o de volta ao que considerava, aos sessenta anos, “a chatice da vida partidária”. Passadas algumas semanas, Candido e sua mulher, Gilda, acertaram de visitar um velho amigo, o médico de origem polonesa Febus Gikovate. Assim como Pedrosa, Gikovate fora seu colega na Esquerda Democrática e tinha sido militante do Partido Socialista Revolucionário, agremiação trotskista dirigida pelo jornalista Hermínio Sacchetta, da qual faziam parte, entre outras estrelas, o sociólogo Florestan Fernandes e a modernista Patrícia “Pagu” Galvão. Vitimado por um câncer, Gikovate estava internado na Santa Casa de Misericórdia, onde era professor. Antes de entrar no quarto dele, Candido e Gilda conversaram rapidamente com a esposa de Febus, que se ressentia dos penares do marido:
— Tentem animar um pouco o Febus, ele está muito deprimido com a doença.
Sem saber o que fazer, Antonio Candido cochichou com Gilda:
— Sei que isso não é muito correto, mas vou inventar uma mentira para ver se levanto um pouco o espírito do Febus.
O casal entrou sorridente no quarto, e Antonio Candido lascou a mentira logo no começo:
— Meu chefe! Não vim aqui apenas para te visitar. Vim para cumprir uma tarefa política. É uma missão delicada.
— Qual é?
— Os operários do ABC estão querendo fundar um partido, e nos convidam para participar das reuniões deles. Não sei se vou, porque não quero mais participar de partido nenhum
Com o olhar sério, Gikovate respondeu:
— Esses operários estão fazendo o que nós queríamos fazer na idade deles e jamais conseguimos. Eles estão fazendo um partido, é nossa obrigação levar adesão.
Deitado, o velho trotskista cortou o sorriso do amigo:
— Eu não posso ir por causa da minha condição de saúde. Mas peço a você que vá, que me represente. Diga a eles que eu não vou nem ao partido nem à reunião, porque já estou indo pra outro lugar.
Antonio Candido se emocionou:
— Febus, não diga isso…
— Não, Candido. Eu estou morrendo, estou no fim. Espero que possa durar ainda algum tempo, e sua companhia me dá conforto. Mas vá nessa reunião e assine sua ficha de filiação como se fosse a minha
Passadas três décadas, ao se lembrar desse episódio, Antonio Candido confidenciaria:
— Febus morreu no dia seguinte. Foi aí que falei comigo mesmo: tenho que entrar nesse partido. Foi isso que me levou a filiar-me ao PT. Entrei sabendo que o PT não é um partido socialista; e eu sou socialista. Mas eu acho que o PT tem uma energia operária que se confunde com os interesses do povo.
A força do simbolismo fez com que o PT, ao ser criado oficialmente, tivesse como signatário da ficha número 1 não um intelectual, mas um revolucionário histórico, o velho Apolônio de Carvalho, herói da Resistência Francesa e das Brigadas Internacionalistas que lutaram contra Franco na Guerra Civil Espanhola. Mas a presença de nomes do calibre de Antonio Candido, Sérgio Buarque e Mário Pedrosa acabou se convertendo num ímã que atrairia para o partido, ao longo do tempo, intelectuais e artistas como Hélio Pellegrino, Chico de Oliveira, Bete Mendes, Florestan Fernandes, Francisco Weffort, José Álvaro Moisés, Lélia Abramo, Maria Victoria Benevides, Paul Singer, Paulo Freire, Marilena Chaui, Perseu Abramo e Vinicius Caldeira Brant, entre muitos outros.
No domingo à noite, quando Lula finalmente deu por encerrada a reunião do Pampas Palace Hotel, chegava também ao fim a longa e tortuosa gestação do PT. O sindicalista deixou para trás os políticos, artistas e ativistas em São Bernardo do Campo e enfrentou trezentos quilômetros de estrada rumo a Minas Gerais, para realizar, num encontro só de trabalhadores, em Poços de Caldas, o trabalho de parto do PT.
Só no dia 10 de fevereiro de 1980, no auditório do Colégio Sion, em São Paulo, o PT seria formalmente apresentado aos brasileiros. Como se estivesse com um olho no gato e outro no peixe, ao mesmo tempo que montava o partido, Lula preparava uma nova greve no ABC. Desde os primeiros dias do ano ele era vigiado à distância por agentes da repressão. Na madrugada de 19 de abril, no auge da greve, seria abruptamente despertado em casa e trancafiado no Dops junto com seus companheiros de diretoria do sindicato.
Sobre os autores
é jornalista, trabalhou no Jornal da Tarde, na revista Veja e em várias outras publicações da imprensa brasileira. Recebeu três vezes o prêmio Esso e quatro vezes o prêmio Abril de jornalismo. Foi deputado (1979-1987) e secretário da Cultura (1988-1991) e da Educação (1991-1993) do Estado de São Paulo. É autor de A ilha, Cem quilos de ouro, Olga, Os últimos soldados da Guerra Fria, Corações sujos e Chatô, todos publicados pela Companhia das Letras.