Honduras ganhou as manchetes em 2009, quando o presidente Manuel Zelaya foi deposto por um golpe, disfarçado de manobra jurídica. O “disfarce” não impediu que se arrancasse o presidente de pijamas, para enviá-lo à Costa Rica em um avião militar.
Zelaya pertencia ao Partido Liberal, um dos braços da política oligárquica que comandava o país desde sempre. Mas naquela ocasião, seu partido se uniu ao rival Partido Nacional. A manobra foi desencadeada pela proposta de adicionar uma “quarta urna” nas eleições que se aproximavam: além de eleger um novo presidente, deputados e prefeitos, a população seria consultada sobre a proposta de uma nova constituição.
Naquele momento, a onda progressista estava no auge: além de Lula, Kirchner, Tabaré Vázquez, Morales, Correa e Lugo na América do Sul, Daniel Ortega presidia a Nicarágua e Mauricio Funes se elegera em El Salvador. Neste contexto, a hipótese de uma constituinte, despertou o espectro do bolivarianismo. A classe dominante interpretou a consulta como o primeiro passo para Zelaya se perpetuar no poder. Desencadeou-se então, uma virulenta campanha anticomunista ecoando uma Guerra Fria que não existia, contra um presidente que nunca foi de esquerda, mas que aumentou o salário mínimo e aderiu à Alternativa Bolivariana para as Américas (ALBA). Zelaya foi deposto cinco meses antes do fim do seu mandato.
Após o golpe, a militarização
O Partido Nacional pode ser considerado como o principal vitorioso do golpe, pois desde então, comandou o país por três mandatos consecutivos. Já durante a presidência de Pepe Lobo, entre 2010 e 2014, o então líder do congresso Juan Orlando Hernández (JOH), emergiu como homem forte do país. Influído pela escola militar onde estudou, o sucessor de Lobo revelou uma visão militarista da política, pautada pela conquista de espaços institucionais, neutralizando reações inimigas.
A fidelidade militar e policial foi conquistada pelo bolso mais do que pela ideologia. Nomeações arbitrárias asseguraram o alinhamento do poder judiciário, que avalizou sua reeleição em 2017. Uma amarga ironia, quando se recorda o pretexto do golpe poucos anos antes. Por fim, JOH cultivou a lealdade da cúpula religiosa, notadamente evangélica mas também católica, enquanto uma vasta rede de programas sociais teceu uma rede de controle clientelista.
Em resumo, JOH construiu e exerceu o poder à moda antiga: ele não é o salvadorenho Bukele, um jovem que reina nas redes sociais e se autodescreve como “o ditador mais cool do mundo mundial”.
Do narcoestado a narcoditadura
O alinhamento incondicional aos Estados Unidos faz parte deste savoir faire, e JOH seguiu Trump na mudança da embaixada em Israel, para Jerusalém. Mais importante, o governo colaborou extraditando criminosos ligados ao narcotráfico, o que não foi um gesto desinteressado. Ao contrário, há indícios de que o governo atuou à maneira do poder miliciano no Rio de Janeiro, onde operações policiais debilitam organizações criminosas, para colocar outras em seu lugar. Vínculos crescentes entre narcotráfico, parmilitarismo e os três braços do poder estatal, além da polícia e o Exército, deram contornos ao que muitos descreveram como um narcoestado.
Nos territórios, relações promíscuas com o extrativismo transnacional produziram despossessão e violência, visibilizada pelo assassinato de Berta Cáceres em 2016. Como alternativa de trabalho, prosperou a indústria maquiladora, atraída por salários baixos e ausência de regulamentações.
Para quem não topa um nem outro, restava migrar. E os hondurenhos protagonizam caravanas massivas, que atravessam a região a pé. Aqueles que conseguem se instalar nos Estados Unidos, de modo legal ou ilegal, sustentam a economia do país com suas remessas.
É uma realidade paradoxal: enquanto uns lutam pelo direito a migrar, os povos no território lutam pelo “derecho a quedarse” (direito a ficar). A população hondurenha emerge como uma fronteira avançada do “devir negro do mundo” sugerido por Mbembe: uma espécie de limbo planetário em um mundo que produz cada vez mais pessoas sem lugar.
O narcoestado comandado por JOH, foi se cristalizando como forma de gestão do capítulo hondurenho deste mundo em que não cabem as pessoas. Em 2017, o presidente renovou seu poder de modo fraudulento. Daí em diante, a decomposição social se acelerou. Honduras já não é somente um território de passagem para o narcotráfico, cuja extensão tampouco se limita ao norte do país. Entre a fraude e a delinquência, o país se aproximou de uma narcoditadura.
Debandada e derrota
Neste quadro, a pergunta que se coloca é: como foi possível a vitória de Xiomara Castro?
Para o campo opositor, só um triunfo eleitoral incontestável à maneira de AMLO no México, impediria uma nova fraude. Do ponto de vista de JOH, sua preocupação era eleger um aliado que lhe blindasse da extradição. Seu irmão foi condenado pela Justiça nos Estados Unidos e numerosos fios soltos vinculam o presidente ao narcotráfico. Neste ínterim, o filho do ex-presidente Pepe Lobo foi extraditado e preso, o que o enfureceu, alimentando a divisão no Partido Nacional. Se o Partido Liberal está em franca decadência, apresentando como candidato à presidência outro condenado que acaba de cumprir pena, seu rival segue o mesmo caminho.
Diante deste melê, é compreensível que o bipartidismo perca o beneplácito dos Estados Unidos. E de setores do capital. Faltando três semanas para a eleição, a campanha de Castro convenceu Salvador Nasralla, um radialista esportivo prestigiado entre os jovens, a abrir mão da candidatura para negociar o seu apoio. Pesquisas atestando o bom desempenho da candidata entre empresários, foram decisivas. Pouco depois, uma manada de líderes do Partido Liberal – o mesmo que corroborou com a derrocada de Zelaya -, se somaram à campanha. Estes apoios da direita criaram uma situação na qual o candidato de JOH só poderia se impor pela força, o que as Forças Armadas não toparam.
Conjuntura
Xiomara Castro se candidatou pelo Partido Libre, que surgiu como reação política ao golpe de 2009. O partido congrega quadros de esquerda, oriundos principalmente do movimento estudantil; democratas liberais, como o próprio Zelaya; e uma variedade de militantes sem filiação definida.
Libre conquistou maioria simples no Congresso. Mas para desmontar o legado que herdou, precisará de maioria absoluta, o que implica negociar com forças volúveis da direita. Este legado vai desde os dispositivos de criminalização do protesto social, que penalizam aglomerações de cinco pessoas; até as zonas econômicas especiais, que criam enclaves mercantis fora da lei hondurenha, em território hondurenho. Isso em meio a um Estado quebrado, que precisará negociar urgentemente suas dívidas com as instituições financeiras internacionais, para que os servidores públicos recebam salários.
Em resumo, o governo precisará negociar com a direita, com as finanças internacionais e com os Estados Unidos, as condições básicas de governabilidade, desde o primeiro dia.
Herança maldita
À primeira vista, o triunfo eleitoral da esposa de Zelaya, parece uma vingança da história. De fato, a derrota de um regime narcoditatorial, merece celebração.
No entanto, o país que Castro encontrará, é diferente daquele que Zelaya encarou. Ao longo destes 13 anos, tendências corrosivas que já estavam colocadas, mas que o governo Zelaya à sua maneira pretendeu conter, foram aceleradas. O narcotráfico, as maras, os militares e os paramilitares já existiam, assim como a corrupção e a violência. Entretanto, as relações entre estas e outras dimensões da degradação social foram aceleradas, conformando uma simbiose que encontrou expressão visível no narcoestado.
Ao mesmo tempo, a decomposição hondurenha afeta os Estados Unidos, que se vinculam ao país pela migração e pelo narcotráfico – questões que tem peso distinto na Nicarágua de Ortega. Em um momento de desprestígio de um regime repressor, que acelerou as tendências que produzem migrantes e delinquentes em escala massiva, Xiomara Castro emerge como o oposto da aceleração encarnada por JOH: é a alternativa da contenção.
A tentativa de contenção da violenta corrosão do tecido social, já estava colocada no governo Zelaya. Neste sentido, há ressonância entre ambos momentos. Entretanto, a crise se agudizou no país e ao redor: o alcance e os limites da contenção, são outros. As desventuras da contenção da crise latino-americana, que tem em Honduras uma fronteira avançada, é o que se testemunhará nos próximos anos.
Sobre os autores
é professor do Departamento de Relações Internacionais da Universidade Federal de São Paulo e autor do livro "Uma história da onda progressista sul-americana" e coautor do livro "O médico e o monstro", ambos publicados pela editora Elefante.