Viver a crise climática é ver as notícias de bandos de pássaros exaustos caindo do céu em meio à extrema onda de calor na Índia e testemunhar o tipo de imagem apocalíptica e distópica que muitos de nós já esperávamos. Conforme as fontes de água secam, os pássaros se desidratam e despencam diariamente.
Isso acontece apenas algumas semanas depois do último lembrete de que a mudança climática não é uma ameaça distante. Ela já está aqui e causa a morte e sofrimento não apenas de animais, mas de populações humanas de vastas áreas do planeta. Por volta de 1,5 bilhões de pessoas vivem em regiões que incluem a Índia, Paquistão e Sri Lanka, onde as temperaturas estão atingindo níveis recordes.
O último mês de abril foi o mais quente da Índia dos últimos 122 anos e o mais quente do Paquistão em 61 anos. Em Jacobabad a temperatura chegou próximo a 50 ºC com máximas acima de 30º durante a noite. O resultado foi de dezenas de mortes e certamente muitas outras irão acontecer, sem falar na subnotificação de casos.
Além das mortes trágicas, o calor extremo está causando estragos aos meios de vida. A agricultura no Paquistão e na Índia emprega 40% e 60% da força de trabalho, respectivamente. Isso significa que os choques climáticos têm um efeito desproporcional em trabalhadores do campo e que dependem intimamente do clima. Segundo reportagem do The Guardian, as colheitas de trigo caíram pela metade nas áreas mais atingidas. As condições de trabalho pioram conforme o mal desempenho, ao passo que os preços dos alimentos aumentam cada vez mais.
Ciclo vicioso
Isso não é mais novidade. É por causa da intensificação da mudança climática que as ondas de calor mataram pelo menos 6.500 pessoas na Índia desde 2010.
O subcontinente continuará entre os mais severamente atingidos. É nesse contexto que o governo da Índia garantiu o fim de emissões de dióxido de carbono até 2070, anúncio feito na cúpula da COP26 em Glasgow. Para um país que atualmente lida com tão graves efeitos da mudança climática, 50 anos parece muito tempo para aguentar os efeitos das contínuas emissões, e de fato é, mas a meta definida é reflexo do fracasso da classe política global em conter a crise.
A esquálida meta do Reino Unido de reduzir suas emissões até 2050 tem contribuído para definir um ritmo vagaroso para todos os outros países. Dado esse cenário, os detalhes do acordo da Índia, incluindo o plano de tornar 50% da planta energética renovável até 2030, parecem mais impressionantes. Contudo, qualquer ambição de descarbonizar em um médio prazo é debilitada por imperativos de curto prazo de aumentar o uso de combustíveis fósseis.
A demanda por eletricidade explodiu, visto que mais pessoas precisam usar ventiladores e ar condicionado por mais tempo. No momento, cerca de três quartos da energia da Índia provém do petróleo, do gás e do carvão. Tentou-se superar essa escassez com o cancelamento de viagens de trens postais e de passageiros para transportar mais carvão. Também aproveitaram a vantagem de baixa no preços do gás natural liquefeito (LNG) da Rússia, que, em meio à guerra, tem encontrado dificuldades para exportar para outros países.
A Índia encontra-se numa posição perversa onde, em meio ao calor extremo induzido pelas mudanças climáticas causadas pelo uso de combustíveis fósseis, a resposta racional é procurar urgentemente mais combustíveis fósseis, exacerbando, portanto, a crise e criando as condições para eventos ainda piores num futuro próximo. Ou seja: o ciclo vicioso continua.
Desigualdades climáticas
Isso enfatiza uma desigualdade global no coração da injustiça climática. Enquanto a classe capitalista do Norte Global organizou o planeta de acordo com seus interesses de impor um sistema econômico poluidor catastrófico para lucrar com ele, é a maior parte do mundo que se encontra presa num beco sem saída, navegando entre as fronteiras da atual crise climática.
A onda de calor na Índia também deixa claro as extremas desigualdades climáticas experienciadas entre as classes no interior das nações. As classes mais pobres são insuportavelmente mais afetadas na medida em que os trabalhadores rurais mal pagos têm prejuízos, sem acesso ao mínimo de recursos para ter condições de pagar por eletricidade ou equipamentos para diminuir a temperatura. A distribuição desigual de ar-condicionados é outro exemplo de adaptação climática para os ricos (eles mesmos tornando a crise pior) e aumentando sofrimento para os mais pobres.
Isso é exacerbado pela escassez de energia, o que tem resultado em interrupções no suprimento de energia que chegam a durar, na Índia, de 8 horas ao dia e mais de 12 horas no Paquistão. Isso significa longos períodos sem trégua de calor em seus piores momentos, sem falar em outros impedimentos como o acesso a outras necessidades, incluindo água.
Justiça climática global
Essa onda de calor extrema e letal é o exemplo mais recente dos efeitos das mudanças climáticas e que enfatiza a urgência de transformações econômicas. A descarbonização rápida e global se tornará mais e mais crítica, mas também a necessidade por uma transição planejada que repare as injustiças e desigualdades globais, ao invés de entrincheirá-las. O ímpeto por trás da rápida descarbonização — seja em nível local, nacional ou internacional — deveria ser proteger aqueles que estão no fio da navalha do aquecimento global.
Da mesma maneira, temos que empenhar esforços para destravar uma adaptação global justa aos impactos das mudanças climáticas. Lamentavelmente, temos visto emissões ao longo da história para saber com certeza que nós viveremos os efeitos delas nos próximos anos, ainda que interrompêssemos a extração de combustíveis fósseis imediatamente. Existem demandas para que ar condicionados sustentáveis sejam um direito universal garantido a todos que estão expostos ao risco de calor mortal. O mesmo é verdade para o acesso a comida, renda, moradia, saúde e outras necessidades básicas. Precisamos trabalhar numa adaptação para a maioria e não no lucro para poucos.
Para possibilitar uma transição energética e uma adaptação global justas, devemos criar as condições para uma economia política global na qual a obtenção de mais combustíveis fósseis não seja mais uma resposta automática para países como a Índia. Isso não quer dizer dar e receber lições de moral das elites ocidentais, mas fazer uma reorganização das instituições internacionais para desempoderar o capital e re-empoderar o trabalho global. Isso requer um investimento coordenado em novas infraestruturas e tecnologias, bem como novos sistemas de valor sustentados por um tratado de não-proliferação de combustíveis fósseis. Apenas por meio dessas transformações globais nós poderemos quebrar o motor movido a combustíveis fósseis na espiral de morte do capitalismo.
Sobre os autores
é cofundador do Labor for a Green New Deal.