O Brasil se encaminha para eleições presidenciais em outubro — e para o Partido dos Trabalhadores (PT), que vem liderando as pesquisas contra o incumbente de extrema direita Jair Bolsonaro, o preço dos alimentos está no topo da agenda. Nas últimas semanas, houve uma enxurrada de vídeos nas redes sociais publicados por simpatizantes do PT levando seus protestos até supermercados e colando etiquetas nas prateleiras mostrando como eram mais baratos os produtos na época do presidente de esquerda Luiz Inácio Lula da Silva.
Em junho, ao mesmo tempo em que ocorriam esses protestos, o Movimento dos Trabalhadores sem Terra (MST) também protestou em praças de alimentação de shopping centers de luxo na maior cidade do Brasil, São Paulo. Durante esta ação, manifestantes agitavam bandeiras estampadas com a palavra “Fome” e carregavam pequenos pedaços de ossos, em referência às imagens recentes amplamente divulgadas de pessoas procurando restos de carne em caminhões repletos de carcaças.
Estas ações se inspiraram em um chocante relatório recentemente publicado pela Rede Brasileira de Pesquisa em Soberania e Segurança Alimentar e Nutricional (Rede PENNSAN). Ele aponta a triste realidade de 125,2 milhões de brasileiros, ou 58,7% da população, que vivem atualmente sob algum nível de insegurança alimentar. A força deste relatório reverberou em toda a mídia do país e muitas manchetes estamparam o número 33,1 milhões, o total de pessoas que sentem fome diariamente.
Por trás desses números está a conturbada relação entre alimentos, política e economia. Como afirma claramente o relatório da Rede PENNSAN, este “efeito colateral” é resultado direto de diversos — e óbvios— fatores. No curto prazo, a inflação alta — particularmente a dos preços dos alimentos — tem sido agravada pelo desmoronamento das cadeias de suprimentos por conta da pandemia da COVID-19 e da guerra na Ucrânia. No entanto, tudo isso está associado a fatores de longo prazo causados pelo aumento da desigualdade econômica, especialmente desde que a nova agenda de austeridade foi inaugurada após o golpe em 2016.
Calorias de alto risco
A dieta típica do brasileiro consiste em arroz, feijão, vegetais e alguma forma de carne, normalmente carne bovina, suína, frango ou peixe. O aumento do custo da carne bovina tem sido especialmente devastador — cresceu três vezes mais rápido que a taxa básica de inflação em 2021. Isto forçou a população como um todo a restringir o consumo no país que é o maior exportador do mundo de frangos e carne bovina e o quarto maior em exportações de suínos.
O consumo de carne bovina é importante marcador social na sociedade brasileira. Historicamente, é central para muitos dos pratos mais famosos da culinária local como a feijoda, um rico cozido de feijão, porco defumado e carne seca. Porém, devido ao aumento de preços, 55% dos brasileiros afirmaram ter parado de comprar carne vermelha.
Além disso, a carne também ocupa um lugar especial na psiquê nacional. Num país que se orgulha do churrasco, num estilo tradicional de preparo de alimentos sobre uma fogueira usando grelhas e espetos, o consumo de carne se tornou um marcador-chave da identidade brasileira. Este estilo de preparo tem se tornado popular desde meados do século XX, período no qual a população experimentou acesso cada vez maior a carnes a preços reduzidos devido ao aumento exponencial da sua produção. Como consequência, novos restaurantes abriram suas portas por todo o país, especialmente nas regiões produtoras de carne como o Rio Grande do Sul. Estes restaurantes ajudaram a cultivar um senso de integração regional cada vez maior, altamente associado a referência dos vaqueiros gaúchos. Ainda, o churrasco tem uma importante marcação de gênero. Todo o processo, da preparação ao cozimento, está altamente associada aos homens: não ser capaz de preparar uma peça de picanha é ter sua masculinidade questionada.
“O salário mínimo atual é de R$ 1.212,00, mas o mínimo necessário para dar conta das necessidades básicas alimentares deveria ser de R$ 6.535,40 em junho.”
Mesmo sendo o churrasco uma faceta culinária importante na identidade nacional, a alta inflação atual colocou a carne além do orçamento dos brasileiros. A inflação está no seu maior pico desde 2003. De acordo com números publicados pela Fundação Getúlio Vargas (FGV) em maio, os preços ao consumidor cresceram 11,73% nos últimos doze meses. Isto levou a um impressionante aumento de 72,9% nos preços dos alimentos. Esta tendência também foi identificada pelo Departamento Intersindical de Estatística e Estudos Sócio Econômicos (DIEESE) que pesquisa anualmente os preços de alimentos no Brasil para os movimentos sindicais. Em março, o DIEESE mensurou aumentos nos preços dos alimentos em 17 capitais brasileiras, os maiores sendo no Rio de Janeiro (7,65%), Curitiba (7,46%), São Paulo (6,36%) e Campo Grande (5,51%).
O que é mais perigoso em relação a estes aumentos de preço é que eles não vêm acompanhados de aumentos nos salários. De acordo com o DIEESE, enquanto o salário mínimo mensal este ano é de R$ 1.212,00, o salário mínimo necessário para dar conta das necessidades básicas alimentares deveria ser de R$ 5.997,14 no início de 2022 e de R$ 6.535,40 em junho.
Daniel Fabre, advogado trabalhista de São Paulo, me disse, “todos na minha família, inclusive os da parte mais rica, estão reclamando dos preços dos alimentos… eu me considero classe média, mas para mim e minha família, alguns itens eu simplesmente parei de comprar”. Quando perguntado sobre salários, ele continua, “proporcionalmente meu salário continua o mesmo”, mas “o preço dos alimentos cresceram muito mais do que os salários”.
Uma história parecida também foi contada por Rafael Luccio, planejador de demandas em São Paulo. Vivendo com sua parceira que é médica, ele explica que costumavam conseguir fazer refeições em restaurantes e pedir comida em casa todos os dias. No entanto, “nos últimos dez meses, começamos a comprar apenas comida congelada porque é muito mais barata”.
Normalmente, o salário de Rafael é ajustado anualmente de acordo com a inflação, mas por conta das altas taxas de inflação nos últimos seis meses, ele diz, “eu estou ficando mais pobre a cada mês por conta da inflação”. Continuando, ele afirma, “eu costumava comprar 500 gramas de café que custava R$ 12,00 há alguns anos… hoje o preço literalmente dobrou”.
Assim como a maioria dos trabalhadores brasileiros, Rafael recebe o vale-refeição e o vale-alimentação de seu empregador todo mês, cerca de R$ 700,00. Geralmente, segundo ele, o valor cobriria seu custo com alimentos durante o mês inteiro. Mas, “em junho, os vales acabaram no dia 5, depois de apenas 5 dias… isso nunca tinha acontecido antes.”
“No dia de sua posse como presidente, Bolsonaro aboliu o Conselho Nacional de Segurança Alimentar e Nutricional (CONSEA), órgão que ajudou a formular políticas para garantir acesso aos alimentos.”
Esta piora na situação econômica se soma ainda à uma tensa situação política no Brasil que certamente aumentará nos próximos meses. As eleições presidenciais deste ano serão um grande choque entre a esquerda e direita. Neste desafio, acesso à alimentos continuará a ser um tema central, especialmente devido às abordagens totalmente diferentes que cada administração colocou em prática em relação às políticas de alimentação.
A grande mentira
No atual governo Bolsonaro, a alimentação foi politizada e a situação dos mais pobres se tornou ainda mais difícil. O presidente afirma que “dizer que pessoas passam fome no Brasil é uma grande mentira”. Esta negação reflete mais do que a relutância em admitir o crescente problema da fome no Brasil. Ela também ofusca a forma como suas próprias políticas contribuíram para isso.
Em primeiro de janeiro de 2019, dia de sua posse como presidente, Bolsonaro aboliu o Conselho Nacional de Segurança Alimentar e Nutricional (CONSEA), órgão que ajudou a formular políticas que garantiam acesso dos brasileiros a alimentos. Neste mandato, o governo propôs a privatização de 27 dos 92 armazéns de alimentos usados pela Companhia Nacional de Abastecimento (CONAB) que, no final, foram simplesmente fechados. Estoques públicos de gêneros alimentícios que formam a maior parte da dieta dos brasileiros como feijão, milho e arroz agora são totalmente insuficientes para atender à atual emergência alimentar.
Privatização e desregulação são as bases da agenda de governo de Bolsonaro. Ela ajudou a colocar o Brasil de volta no mapa da fome realizado pelo World Food Program em 2021 mesmo depois de ter sido retirado com êxito em 2014. Suas políticas se baseiam nos programas de austeridade herdados do governo anterior iniciada em 2016.
“É importante contrapor as narrativas publicadas na mídia liberal que enfatizam o consumo individual como a solução para as mudanças climáticas.”
Em 2015-16, a economia sofreu com forte recessão e crescimento do desemprego. Estes dramas se intensificaram com uma crise política que levou ao impeachment da então presidente Dilma Rousseff em abril de 2016. Antes mesmo, cerca de R$ 70 bilhões foram cortados do orçamento público em um esforço para conter a recessão. Esta mudança em direção à austeridade foi ainda mais intensificada sob a gestão do presidente seguinte, Michel Temer, que introduziu uma nova emenda constitucional estabelecendo uma moratória nos incrementos de gastos em saúde e educação. Estes cortes enfraqueceram os esforços de saúde pública ligados ao consumo de alimentos saudáveis para o combate à obesidade e outras doenças causadas pela má alimentação.
Uma guerra para salvar vidas
A situação das políticas alimentares do país de vinte anos atrás era totalmente diferente da atual. Em 2003, o PT inaugurou seu governo com Lula introduzindo um de seus mais importantes projetos, o Fome Zero, com o objetivo de erradicar a fome e a extrema pobreza. O plano foi posto em prática através da associação de várias políticas, desde transferências diretas de recursos pelo Bolsa Família, a abertura de restaurantes populares a preços baratos, a criação de cisternas para o combate à escassez hídrica e a introdução de campanhas nutricionais e distribuição de vitaminas e suplementos alimentares.
Entre todas estas políticas, o Bolsa Família é, sem dúvida, o mais lembrado. Para receber o benefício, famílias deveriam demonstrar a frequência de suas crianças na escola e mantê-las dentro do cronograma de vacinação. Esses requisitos foram totalmente abandonados pelo novo programa implementado por Bolsonaro em sua substituição, o Auxílio Brasil.
O Fome Zero, introduzido em 2003, havia sido concebido dois anos antes. Dessa forma, o PT conseguiu desenvolver um rol de políticas que não se provaram apenas populares, mas também demonstraram a importância de abordagens estruturais de longo prazo em desenvolvimento de políticas públicas.
Em seu discurso de posse, em primeiro de janeiro de 2003, Lula apontou essa importância:
Nós vamos criar condições apropriadas para todas as pessoas em nosso país para que tenham três refeições decentes ao dia, sem terem que depender de doações de ninguém. O Brasil não pode aguentar mais tanta desigualdade. Precisamos erradicar a fome, a extrema pobreza e a exclusão social. Nossa guerra não é para matar ninguém — é para salvar vidas.
Sistema Alimentar Socialista
A situação histórica e a crise das políticas alimentares atuais oferecem muitos elementos para a reflexão dos socialistas — em particular a importância de pensar estruturalmente os sistemas alimentares.
A crise atual é produto de tendências de longo e curto prazos, incluindo políticas de austeridade, estagnação salarial e crescimento desenfreado da inflação dos preços dos alimentos. Pensar estruturalmente os sistemas alimentares também oferece soluções a estes problemas, como exemplificado pelo caso histórico do Fome Zero que chama a atenção devido aos seus amplos esforços contra a fome no Brasil. Além disso, o fato de este programa ter sido formulado (pelo menos parcialmente) vários anos antes de sua implementação reforça a necessidade de abordagens estruturais de longo prazo no enfrentamento e socialização de sistemas alimentares.
“Socialistas devem evitar a procura de soluções individuais para problemas estruturais, o que permite que oponentes poderosos escapem de escrutínio e punição.”
Pensar estruturalmente a interseção de alimentação, política e economia é particularmente importante para contrapor as narrativas repetidamente publicadas na mídia liberal que enfatizam o consumo individual como a solução para as mudanças climáticas e evitam a cobertura de situações que criam pobreza alimentícia.
Socialistas devem evitar a procura de soluções individuais para problemas estruturais, o que permite que oponentes poderosos escapem de escrutínio e punição. Já vimos esta lógica em ideias como as das pegadas individuais de carbono, pensadas como meios de se alterar a responsabilidade pelas mudanças climáticas das grandes companhias de combustíveis fósseis para os consumidores individuais.
Em vez disso, a solução para problemas coletivos também deve ser coletivo — e portanto, político. Para que o Brasil supere esta crise aprofundada durante o governo Bolsonaro, é vital que o PT volte ao poder este ano — e que todo o suporte internacional seja mobilizado para este objetivo.
Sobre os autores
é um historiador que mora em Berlim e que recentemente concluiu sua tese de doutorado sobre a história do socialismo.