Para que o dito neste pequeno manifesto seja mais importante de quem o diz (ou de qual organização ou coletivo faz parte), alguns anarquistas resolveram colocar suas máscaras para se endereçar a outros anarquistas (e demais camaradas anticapitalistas e antigoverno) em defesa do voto em Lula.
Conhecemos amigas, amigos, companheiras, militantes, mais organizados ou não, que são anarquistas, e votarão em Lula. Alguns já o dizem abertamente. Outros votarão em segredo. Parece uma opção individual. Uma espécie de licença momentânea do anarquismo. Queremos considerar que talvez não o seja e mais, queremos afirmar a importância do voto em Lula nas eleições de 2022 de um ponto de vista anarquista.
O anarquismo é, sem dúvida, a nossa herança de luta. Uma luta incansável, ininterrupta, com os de baixo, contra o capitalismo, seus governos e todas as formas de opressão. Conhecemos a força que sustenta esta palavra, luta, nada menos do que a reinvenção da vida. Uma vida digna de ser vivida.
Mas no que diz respeito à herança, à tradição, ao nosso vínculo com esse movimento histórico tal como foi, tal como é, estamos vulneráveis. Pois, em muitos casos, vivemos dessa herança como um herdeiro vive de seu patrimônio, de seu latifúndio herdado, administrando as cercas, defendendo-as, tornando o solo improdutivo e reprimindo que outros modos de existência venham ocupá-lo e transformá-lo. O combate ao voto, expresso pelo slogan “não vote lute”, parece ser um desses casos, uma herança recebida e defendida, e ai de quem tente questioná-la.
Portanto, questionemos: anarquistas votam? Se votarem, deixam de ser anarquistas? Se não deixam por completo, deixam na hora em que votam? Estão iludidos? E se apenas não votar, continuam sendo anarquistas? O que importa? Evidentemente nada disso… Importam, sim, as circunstâncias históricas e políticas em que nos encontramos. E que nós as encontramos carregando nossa herança de luta anarquista. É essa tensão, entre o que somos e o que nos acontece hoje, aqui e agora, no Brasil e no mundo, o que importa. Como agir? Como não fazer do que somos algo que impede o que podemos ser e fazer diante das circunstâncias, sempre circunstâncias, singulares?
O ponto é, e podemos dizer sem receio, se há algo de que nós, anarquistas, entendemos, é a derrota. A derrota e a contradição, deve-se dizer. Não se trata de derrotismo, nem de capitulação. Mas de um aprendizado histórico. O fato de se viver sob o poder – secular e quase que irrestrito – da amálgama Capital-Estado, em luta contra ele, mas tentando, mesmo assim, ser feliz, impõe derrotas e contradições, mas também ensina muita coisa. Foram, e são, muitos os combates: contra fascistas, nazistas, contra imperialistas, contra liberais, contra stalinistas. E a primeira coisa a se aprender de todos esses embates é que os inimigos não são os mesmos. Não se equivalem. Há precedentes em nossa herança de luta: lembremos de Errico Malatesta, afirmando que a pior das democracias é sempre preferível a melhor das ditaduras. “Preferível”! Trata-se de uma avaliação, não de uma aceitação. Jamais esqueceremos do que são capazes nossos inimigos.
A diferença é tanta que, por vezes, aqueles que combatíamos tornam-se nossos aliados parciais. Aliados contra aqueles que, e isso podemos dizer sem titubear, são sempre nossos inimigos. Aqueles que corporificam o grau mais elevado de contradição, aquela que não é suportável, pois, caso seja aceita, acarreta o nosso fim. Aqueles que representam o conjunto completo de elementos (valores, crenças, práticas…) contra o qual nos batemos. Que eles sejam agrupados sob o termo “fascistas”, sejam eles nazistas, neonazistas, neoliberais ou não.
No entanto, não vivemos apenas de inimigos externos. Há um inimigo interno a combater: o ideal de coerência. Um ideal que, ao ser mantido sob o pretexto de nos aproximarmos da revolução que vislumbramos, acaba, na prática, por nos isolar, anarquistas, de outros grupos. Isolamento que faz de nós, por um lado, aliados fracos, mesmo impossíveis, e por outro, presas fáceis. Isto quer dizer que o ideal de coerência faz com que não nos vejamos como somos – pessoas que, apesar de lutar, de continuar lutando, tentando ganhar algum grau de felicidade e liberdade para todas as pessoas, acabam muitas e muitas vezes derrotadas; e não só isso, pois antes, durante e depois das batalhas, acabamos por tomar uma cerveja, por comer uma batatinha, assistir a um filme, ir a um show, acabamos, em suma, vivendo, contraditoriamente, dentro disso que combatemos.
Durante muito tempo, esse ideal de coerência nos impediu de votar. E mesmo aqui, temos precedentes. Um caso curioso: Espanha, 1931. Alguns anarquistas não só votam como fazem campanha. Estão convictos que o republicanismo é preferível à monarquia. O primeiro ganha, às eleições chegam em 1933. Os anarquistas militam em peso pela abstenção. Ganha um governo de direita. Perseguições, prisões, dura repressão… Com a esperança que se atenuasse a repressão e que muitas pessoas pudessem ser soltas, nas eleições seguintes, alguns anarquistas novamente fazem campanha e votam. Agora, em 1935, votam na Frente Popular, na coalização dos partidos de esquerda, muitos dos quais em 1933 perderam por causa da abstenção anarquista (quantitativamente expressiva). Alguns desses partidos que, em 1936, durante a Revolução Espanhola, irão literalmente sabotar, reprimir e combater tanto os anarquistas como a revolução em curso.
Tudo isso é ignorado. E, sob o pretexto de não legitimarmos as eleições, esse falso (ou verdadeiro, tanto faz) processo de participação política nas democracias representativas, não votávamos. Óbvio, nossa luta não parava, e dela fazia parte não votar. O que não víamos é que dependendo do inimigo no poder, nossa derrota poderia ser maior ou menor. E, ainda pior, os prejuízos e danos às pessoas que mais sofrem, sempre, poderiam ser ainda mais graves. Nossa coerência custa caro! E custará caro, novamente, caso não votemos este ano de 2022. É inevitável que tenhamos princípios, mas é preciso ver, o tempo inteiro, quais são os seus efeitos na realidade.
Nós, anarquistas, viemos por este texto, defender o voto. O voto contra nossa coerência, mas a favor de uma boa derrota e um bom combate. Uma derrota para um outro inimigo. Um combate que nos eleve, não aquele que simplesmente tenta retirar nossas cabeças da lama. Sim, votaremos para retirar Bolsonaro. Sim, ele e aqueles a seu redor são a lama, são a manifestação do pior. Votaremos para retirar Bolsonaro, pois algo que aprendemos em nossa história de derrotas e contradições é a importância de sabermos escolher a melhor e a pior derrota, o melhor e o pior adversário, para travar outros combates.
Sobre os autores
é um grupo anarquista autônomo formado por radicais de vários lugares.