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O antifascismo e o avanço nos direitos só podem ser operados a partir da ação de movimentos de massa que enfrentem as principais bases dos fascistas (rurais e urbanas). Foto de ITHA.

O anarquismo frente ao fascismo e ao debate eleitoral

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Os anarquistas compreendem que a transformação radical da sociedade, de forma emancipadora e autogestionária, só será possível com o aumento da força social das classes oprimidas em um projeto internacionalista. O fascismo deve ser esmagado, mas as urnas não são capazes de fazer isso. Seguiremos no combate ao fascismo, sem sectarismo, ao lado daqueles que querem votar ou não.

Somos todos obrigados a viver, mais ou menos, em contradição com nossas ideias; mas somos socialistas e anarquistas precisamente na medida em que sofremos esta contradição e procuramos, tanto quanto possível, torná-la menor. No dia em que nos adaptássemos ao meio, não mais teríamos, é óbvio, vontade de transformá-lo, e nos tornaríamos simples burgueses; burgueses sem dinheiro, talvez, mas não menos burgueses nos atos e nas intenções.
– Errico Malatesta

Eu explicaria, nas minhas palavras semanais, no Sindicato da Construção Civil, o conceito anarquista de lei, como criação burguesa e como criação revolucionária. Há, com efeito, duas espécies de leis: as que representam a pressão dos possuidores sobre os não possuidores, e as que representam conquistas dos não-possuidores contra os seus amos. Estas são leis impostas pelas revoluções, exemplo: a Magna Carta, a Declaração dos Direitos dos Homens, a Lei 13 de Maio, etc. […] Mas, para conseguir tais leis, nunca foi preciso ter representantes nos parlamentos. A imposição faz-se na rua, nas fábricas, nas minas, nos centros de trabalho e nos quartéis.
– José Oiticica


Este artigo é uma resposta ao texto “Anarquistas em defesa do voto em Lula”, publicado na Jacobin Brasil em 06 de setembro de 2022. O anarquismo nunca foi um dogma, mas há uma confusão deliberada em achar que, por sua postura anti-autoritária, há “tantos anarquismos quanto anarquistas”, e que qualquer coisa defendida por um auto-intitulado anarquista possui validade como parte do “anarquismo”. Mas isso não está correto. Apesar da sua diversidade, ao olharmos globalmente a história do anarquismo em seus 150 anos de luta, podemos extrair um conjunto de princípios e elementos que o constituíram historicamente. Defender esses princípios e criticar desvios reformistas –  já que o anarquismo sempre teve uma perspectiva revolucionária – nada tem de dogmático ou autoritário. Não podemos deixar que outros tentem impor ao anarquismo perspectivas estratégicas estranhas à nossa ideologia.

Comecemos falando sobre o caso brasileiro da experiência do anarquismo diante do varguismo e do corporativismo sindical. Em 1930, em meio às transformações políticas que estavam ocorrendo no Brasil com a ascensão de Getúlio Vargas ao poder, muitos sindicalistas, socialistas e anarquistas – que haviam combatido intensamente a política coronelista conhecida como “República do café-com-leite” – chegaram a ver com bons olhos o novo governo. Isso porque, entre outras coisas, o varguismo representava um combate àquela fase política e econômica anterior, além de exaltar alguns direitos dos trabalhadores, o que calhava, nesses pontos, com a luta de muitos militantes.

Quando uma repressão brutal contra os elementos mais radicais da esquerda se instalou, juntamente com a ascensão do corporativismo sindical, em enfrentamento aberto ao sindicalismo revolucionário, a maioria desses militantes constatou afinal que suas antigas posições estavam equivocadas. Não obstante, durante esses anos, mesmo antes desta repressão, outros militantes anarquistas inseridos em seus órgãos econômicos e políticos já haviam denunciado as ilusões do varguismo. Nesse caso, a Federação Operária de São Paulo (FOSP) e a Federação Operária do Rio Grande do Sul (FORGS), assim como os periódicos A Plebe, O Syndicalista e A Lanterna, estavam construindo uma estratégia de fortalecimentos das bases para o iminente ataque. 

No ano de 1934, esses mesmos militantes buscaram reorganizar a Confederação Operária Brasileira (COB), almejando que se formasse “um todo único da classe obreira, para a peleja comum contra o inimigo comum que é o capitalismo dominante e tirânico”, respeitando a “organização por federações locais, reunindo-se essas em federações estaduais e todas reunidas com as federações das uniões de indústrias”. A convocatória à ação comum pretendia reforçar o poder coletivo da classe, uma vez que “associados, os operários adquirem força necessária para seus interesses”. Essa articulação de base poderia fazer com que “a classe trabalhadora do Brasil [tenha] um organismo de defesa e luta forte e capaz de colocar a organização de nossa classe à altura das necessidades da campanha em prol da nossa emancipação”. 

“Longe de serem ‘dogmáticos’ ou ‘religiosos’, os anarquistas foram sim capazes de mediar suas teorias e pensamentos com a realidade presente.”

No mesmo período, anarquistas faziam alianças com socialistas de diversas matizes, contra a presença do fascismo e do autoritarismo varguista da época. Em diálogo com a Aliança Nacional Libertadora (ANL), advertiam que “enquanto os aliancistas estiverem na oposição, no combate ao fascismo, ao latifúndio e à tirania governamental […], não endeusando pessoas, mas batendo-se por ideias, discutindo e lutando ao redor de princípios, encontrar-se-iam lado a lado, anarquistas e aliancistas”.   

Esse contexto, assim como outros em que anarquistas estiveram juntos à classe trabalhadora, debatendo os rumos de sua própria libertação, mostra que, longe de serem “dogmáticos” ou “religiosos”, os anarquistas foram sim capazes de mediar suas teorias e pensamentos com a realidade presente. Sem deixarem de fazer associações e alianças com outras forças, apresentaram críticas, propostas e, principalmente, práticas e experiências que forneceram um arcabouço de ferramentas de luta para os oprimidos. Isso permitiu, ao mesmo tempo, não serem tragados e diluídos por outras ideologias, já que simplesmente não estavam “à reboque” de decisões de seus adversários ou oponentes políticos. Seguiam discussões tanto de suas bases (sindicalismo) quanto de sua família política e ideológica. Aqueles que não tinham feito esse mesmo exercício sofreram sua diluição política, passando até para outras fileiras ideológicas (não foram raros os casos de anarquistas que se transformaram em varguistas ou sindicalistas corporativistas) ou mesmo enfrentaram a repressão sem meios de defesa. 

Os pilares da dominação capitalista

Devemos compreender a sociedade e o sistema de dominação capitalista-estatista a partir de uma visão mais ampla. O anarquismo, e suas correntes teóricas, ao longo da história, buscaram entender que a realidade social é dividida em três esferas: econômica, política/jurídica/militar e a cultural/ideológica. A realidade social é fruto de uma totalidade formada por essas esferas e suas relações interdependentes. O sistema de dominação capitalista-estatista se mantém pela dominação nessas três esferas, sendo as eleições parte desse sistema. Seria uma ilusão pensar que a transformação social, ou a “escolha do cenário mais favorável”, ocorra no rito do pleito eleitoral, de 2 em 2 anos. 

“Um país da periferia do sistema capitalista, como o Brasil, é refém da ação do imperialismo e de suas ferramentas políticas e econômicas.”

Não escolhemos os juízes, não temos controle sobre o aparato repressivo, não mandamos no sistema econômico e tampouco temos presença nas inúmeras instituições estatais que não são abertas ao voto. Além disso, um país da periferia do sistema capitalista, como o Brasil, é refém da ação do imperialismo e de suas ferramentas políticas e econômicas. Os acordos e os arcos de alianças – inclusive dos candidatos progressistas – também diminuem consideravelmente a margem de navegação nesse sistema. O sistema eleitoral se abre até certo ponto, mas a “escolha” popular é sempre restrita e tutelada.

Segundo a Federação Anarquista Uruguaia (FAU):

Dentro do que foi produzido pelo pensamento socialista, corroborado em boa parte pelas experiências sociais, estão teorias sobre os mecanismos de reprodução do sistema vigente. Mecanismos básicos que, mesmo em contextos sociais altamente diferenciados, operam de maneira semelhante. Como um conjunto básico de “peças” relacionadas, articuladas, que possibilitam algumas coisas e impedem outras. Permitindo, por exemplo, que a riqueza e a pobreza cresçam; que os distintos poderes fundamentais estejam sempre nas mãos de uma minoria privilegiada; que os meios de comunicação conformem “ideais”, “valores” e padrões “culturais”, reafirmando o sistema vigente. Então, falar de eleições é fazer alusão a uma “peça” de uma estrutura de poder que é muito mais ampla.

A história do anarquismo diante do reformismo

O anarquismo é uma ideologia política revolucionária, socialista, anticapitalista, anti-estatista e anti-autoritária. A partir da crítica às diferentes formas de dominação, os anarquistas compreendem que a transformação radical da sociedade, de forma emancipadora e autogestionária, só será possível com o aumento da força social das classes oprimidas em um projeto internacionalista. Essa transformação, definitivamente, não se dará pelo uso dos aparatos das classes dominantes.

O surgimento do anarquismo, na segunda metade do século XIX, é uma criação histórica que tem como pano de fundo não apenas a luta sindical das décadas de 1850-60, mas também a crescente desilusão de um setor da classe trabalhadora com as disputas parlamentares e com as revoluções republicanas, das quais participaram muitos daqueles que depois se tornaram anarquistas. O anarquismo amadureceu como um socialismo que não tem ilusões com o Estado e nem com os seus mecanismos de dominação – parlamento, eleições e etc.. Portanto, não faz sentido que os anarquistas usem esses mecanismos ou os reforcem como uma saída política sem pôr em xeque seus próprios princípios e sua crítica ao sistema capitalista. Para fazer uma metáfora, querer ocupar o Estado para mudar o sistema de dominação é o equivalente a querer se tornar patrão para mudar o capitalismo.

O anarquismo se constituiu enquanto ideologia no seio da Associação Internacional dos Trabalhadores, a partir da década de 1860, desenvolvendo sua fisionomia política estritamente vinculada à estratégia do sindicalismo revolucionário. Uma estratégia de luta que era antiparlamentar e favorável a um projeto de transformação social operado pelo conjunto dos trabalhadores em suas entidades de classe. O anarquismo nasce e se desenvolve, portanto, rejeitando a ação parlamentar, isso é parte integrante de sua prática política, não sendo elemento passível de discussão, por ser um fato histórico, incontornável.

Desde os embates internos na Associação Internacional dos Trabalhadores (AIT), um (entre outros) elemento separa anarquistas e marxistas: o uso das eleições parlamentares como parte da estratégia para a emancipação da classe trabalhadora. Marx e Engels, que representavam um setor do movimento operário da época, possuíam certo otimismo com o uso da ferramenta eleitoral, enquanto Bakunin e seu grupo, a Aliança, que representavam outro setor do movimento operário da época, não.

“O anarquismo provou ser uma ferramenta material poderosa para a transformação social da realidade na Revolução Mexicana (1911), Ucraniana (1921), Manchúria (1929) e na Espanhola (1936).”

Nosso projeto, socialista e libertário, pretende substituir o atual sistema de dominação por um sistema político de autogoverno: a autogestão. Para isso, ao longo da história, militantes anarquistas analisaram a realidade e, a partir desta análise, conceberam estratégias de luta (diferentes para cada corrente interna do anarquismo) que fizessem os movimentos populares caminharem para essa proposta. Longe de ser uma ideia estanque no ar, em quatro ocasiões o anarquismo provou ser uma ferramenta material poderosa para a transformação social da realidade: na Revolução Mexicana (1911), na Revolução Ucraniana (1921), na Revolução da Manchúria (1929) e na mais conhecida, a Revolução Espanhola (1936). Em todas essas quatro revoluções (e mesmo nas demais, em que a influência anarquista foi marginal), o processo eleitoral foi periférico para o desencadeamento dos processos revolucionários. O central sempre foi o acúmulo, construção e fortalecimento de movimentos populares de massa, que tinham como objetivo a ruptura revolucionária e anticapitalista.

Alguns dirão: “mas não estamos falando em revolução, estamos falando em garantir reformas mínimas e barrar as contrarreformas”. Pois bem. Sempre que a perspectiva revolucionária vai sumindo dos horizontes dos lutadores sociais, o pragmatismo passa a ocupar o lugar da utopia. Os acordos de cúpula substituem as decisões da base e o anticapitalismo é substituído pela política reformista do “menos pior”. Mas, mesmo nesse aspecto do reformismo, o voto nos parece secundário. Citaremos aqui apenas dois episódios para não abusarmos da paciência dos que nos leem. 

O primeiro deles diz respeito à vitória de Jacobo Arbenz na Guatemala, em 1951. Ao tentar empreender uma reforma agrária no país, medida que sequer é propriamente anticapitalista, Arbenz foi derrubado por um golpe de Estado organizado pelos EUA. Aliás, um jovem estudante de medicina que vivia na Guatemala naquele período passou a desenvolver sua tese de ruptura revolucionária a partir da desilusão com a estratégia eleitoral: Ernesto Rafael Guevara. 

O outro, ocorrido no Chile, em 1970, foi a eleição de Salvador Allende, talvez o exemplo histórico mais significativo do uso da estratégia eleitoral para promover reformas e barrar o avanço reacionário, resultando em mais um golpe que derrubou o governo.

O reformismo, portanto, não resolve o problema político, econômico e social. 

Por outro lado, temos diversos exemplos de que por meio da estratégia do sindicalismo revolucionário (de matriz anarquista) e de luta combativa, em diferentes países onde não se conceberam processos revolucionários, diversos direitos trabalhistas foram conquistados, forçando o Estado a aderir às demandas exigidas por meio da ação direta e da auto-organização da classe trabalhadora, aplicadas por meio da organização de greves e outras táticas revolucionárias e reivindicativas.

As verdadeiras polêmicas

As polêmicas internas significativas (ou seja, recorrentes na história e que dividiram o anarquismo) jamais se deram entre votar e não votar, mas sim nos seguintes temas: organização, o papel das lutas de curto prazo e o uso da violência

Em relação à organização, o anarquismo historicamente se dividiu entre organizacionistas e anti-organizacionistas, sendo os primeiros favoráveis à atuação anarquista nos organismos de massa – sindicatos, movimentos populares e etc.. Dentro do campo organizacionista, parte dos anarquistas defendem, além da participação nos organismos de massa, a fundação de organizações específicas anarquistas. Já os antiorganizacionistas são contrários às organizações formais no nível ideológico (anarquista) e social (dos movimentos populares), apesar de muitos deles terem mantido relações com diversos sindicatos ao longo da história. Cabe ressaltar que os anti-organizacionistas foram sempre minoritários. 

“Essa será a maior contribuição à derrota do bolsonarismo: uma forte unidade de luta popular por direitos e contra os setores reacionários.”

Falamos aqui enquanto anarquistas do campo dos organizacionistas, pois somos favoráveis ao acúmulo de força social em organismos de massa como a principal alavanca da transformação revolucionária da realidade. Isso não se esgota no curto calendário eleitoral. Por isso, estamos e estaremos, sem sectarismo, ao lado de outras companheiras e companheiros que – independentemente de sua posição política frente às urnas – constroem esses movimentos populares no dia a dia, para além das eleições. Essa será a maior contribuição à derrota do bolsonarismo: uma forte unidade de luta popular por direitos e contra os setores reacionários.

Sobre o papel das lutas de curto prazo, o anarquismo se dividiu entre possibilistas e impossibilistas. Os primeiros sustentam que a sociedade anarquista não surgirá de uma hora para outra e, portanto,  as lutas de curto prazo (por melhores salários, casa, trabalho, terra e diversas outras demandas que atendam as necessidades das classes oprimidas) possuem um papel importante na construção de uma perspectiva de transformação revolucionária da sociedade, principalmente quando conquistadas pela ação direta (de massas) e pela luta social. Essa ideia ficou conhecida nos meios anarquistas como “ginástica revolucionária”. Já os impossibilistas, ao contrário, acreditam que as pequenas reformas desviam a classe trabalhadora do caminho revolucionário, ajudando o sistema capitalista a se ajustar, ao não colocar em xeque seus fundamentos. 

Nos colocamos ao lado dos possibilistas, entendendo que a luta por melhores condições de vida é fundamental na caminhada revolucionária e que somente há reformas e avanços significativos nos direitos sociais quando lutamos por elas.

Por fim, sobre o uso da violência, a divisão entre os anarquistas não se deu entre um setor pacifista e outro favorável ao uso da violência revolucionária. Isso porque os pacifistas foram completamente inexpressivos na história do anarquismo, embora costumeiramente foram supervalorizados por uma literatura que não vê o anarquismo de maneira global. Neste tema, a divisão se dá especificamente entre aqueles que entendem que a violência revolucionária deve ser operada e funcionar em consonância com os movimentos populares previamente estabelecidos (a chamada estratégia de massas), e a estratégia insurrecionalista, que apregoa que a violência pode funcionar como um gatilho, uma forma de propaganda pelo fato que estimularia a rebelião das classes oprimidas.

Neste tema, estamos ao lado da estratégia de massas e acreditamos que é impossível qualquer processo de ruptura, ou mesmo de enfrentamento sério ao fascismo, sem debater essa questão. O republicanismo empedernido de nossa esquerda institucional simplesmente bloqueou a discussão sobre esse assunto e isso, ao fim e ao cabo, é mais um sintoma da degeneração provocada pelo foco eleitoral. Em tempos em que os fascistas se armam e ameaçam figuras públicas da esquerda, nossa autodefesa deveria estar sendo debatida.

“A CNT e a Federação Anarquista Ibérica (FAI) tinham como organizar o combate ao fascismo em todos os níveis, o inverso do que vemos na social-democracia brasileira dos tempos atuais.”

Trazemos este panorama histórico e global do anarquismo, em seus 150 anos, para afirmar que a polêmica sobre os anarquistas votarem ou não nas eleições burguesas é completamente artificial e não encontra eco na história do anarquismo. Se é verdade que na Espanha a Confederação Nacional do Trabalho (CNT) liberou sua militância para votar em ao menos duas ocasiões (o que é diferente de ter realizado campanha eleitoral), à época a entidade possuía cerca de 2 milhões de filiados, mais de 20 anos de luta ininterrupta, contava com um programa de transição para uma economia socialista e autogestionária e tinha como principal intenção libertar seus presos políticos. A CNT e a Federação Anarquista Ibérica (FAI) tinham como organizar o combate ao fascismo em todos os níveis, o inverso do que vemos na social-democracia brasileira dos tempos atuais.

Outras polêmicas (muito mais importantes) foram recorrentes e consumiram mais energia da militância anarquista do que a questão do voto. O campo do anarquismo que integramos, em síntese, tem como estratégia de transformação da realidade: o acúmulo de força social nos movimentos populares, com lutas por reformas servindo como “ginástica revolucionária” e o desenvolvimento de formas avançadas de luta, colocando o tema da violência revolucionária em discussão, tendo como horizonte a construção de uma ruptura revolucionária. Qualquer debate de enfrentamento ao fascismo também deveria passar por essa estratégia, não pela decisão individual entre votar ou não.

A lenta incorporação da classe trabalhadora enquanto “cidadãos” na arena da incipiente democracia burguesa européia do século XIX não foi vista pelo setor libertário do socialismo como uma vitória, mas como uma forma de sufocar as lutas radicais que tomavam a Europa. Neste sentido, o anarquismo se mostrou correto, pois a universalização do sufrágio domesticou os setores revolucionários e operou um forte consenso de que a cada 2 anos mudanças profundas poderão ser realizadas, quando na realidade as estruturas sociais de exploração e dominação se mantêm intactas.

Para fortalecer nosso argumento, citaremos dois elementos estruturais que moldam a realidade brasileira. O primeiro é o racismo estrutural, fruto do genocídio operado pelo colonialismo português em nosso território e do tráfico negreiro. O segundo é a alta concentração fundiária em nosso país. Em que governo da história brasileira (mesmo os da centro-esquerda) houve mudanças estruturais importantes para promover o fim do latifúndio e do genocídio da população negra e pobre? Citamos esses dois aspectos da realidade porque consideramos que são centrais para todos os revolucionários e revolucionárias, aspectos centrais que alimentaram os elementos do protofascismo e do fascismo. Como esta eleição irá combatê-los? 

Entender o fascismo para esmagá-lo

Há diferentes interpretações sobre a caracterização do bolsonarismo. Há aqueles que o consideram um movimento de extrema direita, mas não fascista. Outros o caracterizam como protofascista, e há ainda um setor que enxerga no bolsonarismo um movimento neofascista. Independente da caracterização, é correto afirmar que o bolsonarismo é um movimento de extrema direita, misógino, patriarcal, militarista, racista e reacionário, apoiado principalmente pelas classes dominantes latifundiárias, por parte da burguesia e da pequena-burguesia. 

O bolsonarismo também fincou raízes em setores da classe trabalhadora e se espraiou pelos clubes de tiro, igrejas neopentecostais, baixo e alto oficialato das forças de segurança e armadas (paramilitares ou militares), entidades conservadoras e meios de comunicação reacionários. O arco de alianças do bolsonarismo inclui lideranças neopentecostais, alto comando de militares entreguistas, o agronegócio que lidera a política do crime ambiental, o empresariado proto-fascista e todos aqueles que apoiam um golpe institucional a partir desse trumpismo tropical difuso. 

“O fascismo também surge em contextos históricos onde há desgaste e crise de governos progressistas.”

A lição do bolsonarismo e sua disputa da sociedade em todas as esferas (cultural/ideológica, político-militar e econômica) atesta que o fascismo somente avançou porque os fascistas resolveram disputar a sociedade, sendo a ocupação do Estado (organismo político da classe dominante) pela via eleitoral, uma consequência disto. A gênese do fascismo alemão e italiano demonstram o mesmo. Seu poder eleitoral advinha de um trabalho político sobre as massas, de cunho conservador e reacionário e que transformou seu movimento em regime.

O fascismo também surge em contextos históricos onde há desgaste e crise de governos progressistas. Exemplos disso foram a ascensão do nacional-socialismo após a crise da República de Weimar e do bolsonarismo, gestado depois de 13 anos de governos petistas. As manifestações populares de 2013 (erroneamente caracterizadas como parte de uma guerra híbrida) puseram em relevo as demandas sociais não atendidas pelos governos petistas (com pautas sobre transporte coletivo, saúde, educação, entre outras) e colocaram em crise o modelo de gestão petista. Esse modelo, cabe dizer, governava com apoio não apenas de movimentos progressistas, mas também de setores do neopentecostalismo, banqueiros, burguesia nacional e latifundiários ligados ao agronegócio. 

A partir da incapacidade de aprofundar as reformas exigidas pela burguesia, esta decide rifar o modelo petista de conciliação de classes e apoiar governos de contrarreforma (como os governos Temer e Bolsonaro), que colocaram as classes oprimidas numa situação defensiva de 2013 para cá.

A estratégia da linha de massas

Enquanto anarquistas, nossa estratégia passa pelo fortalecimento das entidades de base e pelas articulações da luta popular em todas as esferas da sociedade, com o objetivo de estimular as classes oprimidas para que saiam da atual condição defensiva, avançando em suas lutas, mesmo que, em princípio, em pequena escala, para que não apontemos para uma nova rodada de conciliação de classes e aceno à direita moderada, buscando o fortalecimento de nossas posições na luta de classes.

Para isso, não basta tampar o nariz e se aliar com a direita liberal. Essas alianças, inclusive, já evidenciam os limites que serão tolerados pelo próximo governo. O antifascismo e o avanço nos direitos só podem ser operados a partir da ação de movimentos de massa que enfrentem as principais bases dos fascistas (rurais e urbanas), não devendo ficar preso a um reduto contracultural ou de nicho. Para ser efetiva, a ação política da militância anarquista deve operar a partir de frentes sociais de luta, organizando de baixo para cima, entrando no conflito distributivo e não reforçando a legalidade aparente das instituições republicanas com o rito eleitoral. 

É necessário enraizar, criar e fortalecer movimentos populares e sindicais que cada vez mais tenham como horizonte uma perspectiva revolucionária. Com certeza não estaremos sozinhos nessa empreitada. E claro, sabemos que ela é de médio e longo prazo. O velho trabalho de base é o mar onde deve estar a militância anarquista. Esse trabalho cotidiano não se resume a um domingo eleitoral. A necessária frente das classes oprimidas é urgente para ganhar as ruas e avançar na luta pelos direitos. Entendemos que é assim que o fascismo será derrotado. 

“O antifascismo e o avanço nos direitos só podem ser operados a partir da ação de movimentos de massa que enfrentem as principais bases dos fascistas (rurais e urbanas).”

Entendemos também, contudo, que, paralelamente, precisamos fazer um sério debate sobre a hegemonia social-democrata e petista no interior dos sindicatos e movimentos populares organizados. É essa hegemonia que paralisa qualquer ação mais combativa e reduz o horizonte político ao mínimo possível.

A armadilha está posta: se não temos acúmulo de força social no horizonte presente, crescem as perspectivas de soluções “fáceis” e imediatas, que ao fim e ao cabo, esvaziam a perspectiva revolucionária. Entra aí um pragmatismo perigoso para aqueles que se reivindicam revolucionários: “se nada podemos fazer agora, que nos rendamos ao reformismo eleitoral e desistamos de disputar a sociedade”. 

Foi essa mesma perspectiva reformista, hegemônica na esquerda desde os anos 1980, que atuou fortemente para desmobilizar, burocratizar e docilizar os movimentos de massa. Um exemplo disso foi a baixíssima capacidade de mobilização em resposta ao golpe jurídico-parlamentar de 2016 e ao bolsonarismo, de 2018 em diante, fruto do abandono da prioridade no trabalho de base e na construção coletiva junto à classe trabalhadora. Com pouca capacidade de mobilização, setores da esquerda passaram a defender o legalismo das instituições burguesas, quase como um prêmio de consolação, ao ponto de instituições conservadoras como a Rede Globo e o STF passarem a ser vistas como “aliados táticos”. 

Nesse meio tempo o bolsonarismo passou à ofensiva, se espraiando por todo o tecido social brasileiro e questionando o sistema com uma perspectiva de “revolta por dentro da ordem”, enquanto a esquerda hegemônica se limitou a defender as instituições e a legalidade da democracia burguesa, colocando todas as suas fichas na disputa eleitoral. 

O que dá base para uma estratégia de longo prazo é ampliar o acúmulo de força social no curto prazo, naquilo que se chama estratégia geral em sentido estrito, ou no tempo restrito. Nada disso passa pela adesão, crítica ou não, a campanhas eleitorais. Mas deve ser o coração da luta antifascista. Nesta luta antifascista, também é preciso disputar concepções, lutando para ganhar a rua da extrema direita. Mais importante ainda, no entanto, é se fazer presente nas camadas sociais mais exploradas e oprimidas, não permitindo que a classe trabalhadora e os setores do povo brasileiro estejam à mercê de pastores picaretas, forças paramilitares formadas por milícias de policiais e outras degenerações da sociedade burguesa. Era isso que deveríamos estar discutindo, não a adesão individual e despolitizada ao voto. 

O dia seguinte às eleições não desorganizará as forças políticas reacionárias presentes no país. Elas só podem ser enfrentadas corretamente se não diluirmos nosso programa em alianças com a direita liberal e a centro direita – com Alckmin e cia. Nossa perspectiva precisa apontar para uma agenda de luta nos movimentos populares e sindicatos, colocando em pauta os temas mais importantes para a classe trabalhadora brasileira.

Se queremos construir uma perspectiva socialista e revolucionária ampla, isso passa necessariamente pelo abandono das ilusões reformistas e eleitorais. Toda vez que a esquerda se filiou ao reformismo parlamentar, foi se degenerando em direção a uma política inócua, fazendo com que parlamentares e políticos profissionais tivessem mais poder do que as bases coletivas das organizações e dos movimentos populares. 

“Seguiremos alinhados no combate ao fascismo, sem sectarismo, com lutadores e lutadoras que possuem perspectivas diferentes às nossas e que decidiram votar nesta eleição.”

Não faz sentido pressionar ou assediar os anarquistas a votarem. Nosso debate deveria ser mais profundo e analisar as implicações desse intricado sistema de dominação. Para isso, é importante que nós anarquistas mantenhamos nossa coerência interna, de modo a não rifarmos nosso projeto. Aliás, se o anarquismo tivesse hoje uma força relevante a ponto de influenciar decisivamente essa eleição, a menor preocupação das classes dominantes seria com nossa “possibilidade” de voto, mas sim com a ameaça real a esse sistema de dominação.

Nós anarquistas continuaremos a votar: dentro dos movimentos populares (tomando as decisões), nas assembleias sindicais, das associações comunitárias/estudantis e das nossas organizações políticas anarquistas para construir um outro poder: o poder popular. Seguiremos alinhados no combate ao fascismo, sem sectarismo, com lutadores e lutadoras que possuem perspectivas diferentes às nossas e que decidiram votar nesta eleição. Enquanto estiverem conosco nas bases e construindo esse horizonte, seremos aliados.

Sobre os autores

é doutor em História (UFRRJ), professor do ensino fundamental, militante sindical e pesquisador integrante do Instituto de Teoria e História Anarquista (ITHA).

é doutor em História Social (USP), professor do ensino fundamental, militante sindical e pesquisador integrante do Instituto de Teoria e História Anarquista (ITHA).

é mestre em Geografia (UFSC), técnico em informações geográficas e estatísticas do IBGE, militante sindical e pesquisador integrante do Instituto de Teoria e História Anarquista (ITHA).

Cierre

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Published in América do Sul, Análise, História and Política

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