Na história recente do Brasil, desde 2013, a anticorrupção se transformou na principal bandeira político-ideológica na ascensão das direitas e suas diversas ramificações. Nas eleições de 2022, a candidatura de extrema direita, representada por Jair Bolsonaro, se utiliza desse discurso para conseguir votos de eleitores antipetistas.
Por isso, precisamos desmistificar a ideia de que os governos petistas foram os mais corruptos da história republicana do Brasil. Tais fatos não excluem a possibilidade de críticas a esses governos, seu modelo de governabilidade, políticas econômicas e métodos de negociação. No entanto, a ideia de que Lula e o PT são os “grandes criadores da corrupção no Brasil” é um mito que originou Bolsonaro, fortaleceu a Lava Jato e legitimou o desmonte de uma série de políticas de desenvolvimento econômico e social no país.
As origens históricas da anticorrupção
No Brasil, a anticorrupção como discurso funcional para as direitas se fortaleceu nos anos de 1950. Sumariamente, nessa época, se debatia no Brasil entre as diversas forças políticas e sociais a viabilidade de um desenvolvimento capitalista inclusivo socialmente, democrático e que pudesse superar o subdesenvolvimento.
A anticorrupção foi a bandeira aglutinadora contra a criação da Petrobras, o monopólio estatal da exploração do petróleo, desenvolvimento industrial, protagonismo do Estado como agente econômico e, principalmente, a participação de forças populares e sindicais na vida política brasileira. A oposição de direita aos governos de Vargas, Kubitschek e Goulart se utilizavam dessa pauta.
Em 1954, por exemplo, a União Democrática Nacional (UDN) liderou uma série de denúncias contra a “generalização de práticas de corrupção” no governo Vargas. Essas denúncias eram o “carro-chefe” de uma das primeiras tentativas de golpe civil-militar, articulado entre forças empresariais, parte das Forças Armadas e políticos de direita, respaldados pelo governo dos EUA. O suicídio de Vargas, como declarou Trancredo Neves, adiou em 10 anos o intento golpista dos militares.
A hipocrisia da ditadura militar
Além do dito “combate ao comunismo”, a Ditadura Civil-Militar brasileira prometeu “combater a corrupção” e trazer uma era de decência para o país.
Durante o governo de Castelo Branco, instaurou-se mais de 1.100 Inquéritos Policiais-Militares (IPM´s) para investigar possíveis casos de corrupção. Na prática, tais inquéritos apenas serviram para a perseguição e cassação de direitos políticos de lideranças de centro direita, até então apoiadoras do golpe, como o próprio Juscelino Kubitschek e Ademar de Barros.
Além do “combate seletivo”, a Ditadura amplificou a grande corrupção como instrumento político e econômico para fortalecer os processos de oligopolização da economia brasileira. Por exemplo, as grandes empreiteiras, investigadas pela Operação Lava Jato, ganham dimensão nacional e internacional através de relações privilegiadas com o governo militar. Segundo o historiador Pedro Henrique Campos, a Camargo Corrêa, por exemplo, em nome das boas relações com os militares chegou a financiar o terrorismo de Estado e até operações contra agrupamentos da esquerda armada e democrática, como a Operação Bandeirantes.
Corrupção na Petrobras não começou em governos petistas
Em 1989, a reportagem assinada pelo jornalista Ricardo Boechat venceu o prêmio “Esso de Reportagem” daquele ano. O tema? Um caso de corrupção envolvendo o general da ativa Albérico Barroso Alves, presidente da BR Distribuidora. O general havia nomeado auxiliares que tentaram extorquir banqueiros em troca da manutenção das contas da maior distribuidora de derivados do petróleo do país em seus bancos.
Além disso, em diversas delações da própria Lava Jato e acordos de leniência, como o da Setal Engenharia e Construções com a Superintendência-Geral do Conselho Administrativo de Defesa Econômica (SG-Cade), contam que as empreiteiras investigadas na Operação Lava Jato já operavam em cartel nas licitações da Petrobras desde o final dos anos 1990.
A corrupção não quebrou a Petrobras
Segundo dados divulgados pelo Ministério Público Federal (MPF) e Polícia Federal (PF), os casos de propina envolvendo a Petrobras somam mais de 6 bilhões de reais. A despeito da alta cifra, esses números representam 7% do faturamento total da empresa.
A Petrobras, até então, se tornava um dos maiores conglomerados petrolíferos do mundo. Segundo dados do INEEP, os investimentos da empresa saltaram de 9 bilhões, em 2004, para 55 bilhões em 2013.
Processo que gerou milhares de empregos diretos e indiretos e desenvolvimento industrial e científico que possibilitaram a descoberta e a exploração do pré-sal. Além disso, institucionalizou-se o fundo social do pré-sal a fim de aumentar o financiamento público do SUS e da educação pública.
Os maiores beneficiados pela corrupção na Petrobras foram os aliados de Bolsonaro
Políticos e dirigentes petistas se envolveram com o pagamento e recebimento de propinas para “caixa 2”, isso não deve ser negligenciado. No entanto, os maiores beneficiados pelos casos de corrupção da Petrobras foram políticos e partidos do chamado “Centrão” e da centro direita. Políticos do MDB apoiadores de Bolsonaro, como Eduardo Cunha e Michel Temer, PSDB, PP e PL (ex-partido e atual partido do presidente).
O atual ministro da Casa-Civil de Bolsonaro, Ciro Nogueira, foi um dos principais envolvidos nesses esquemas segundo as próprias investigações. Um dos motivos para a queda de Dilma Rousseff, segundo diversos analistas, foi sua tentativa de desmontar esses esquemas de corrupção institucionalizada no aparato estatal brasileiro, na Petrobras e em Furnas, por exemplo. Algo que encontrou um grande inimigo: Eduardo Cunha.
O modelo de combate à corrupção da Lava-Jato é seletivo
As investigações da Operação Lava Jato, em especial de seu núcleo de Curitiba, foram extremamente seletivas com dois objetivos: 1) Acelerar o processo de impeachment do governo Dilma; e 2) Prender Lula e retirá-lo da corrida eleitoral de 2018.
Essa seletividade foi comprovada pelo vazamento de mensagens entre o ex-juiz, atual senador do Paraná, Sérgio Moro, e os procuradores da força-tarefa. Além disso, a participação de Moro como ministro de Bolsonaro, a construção de uma corrente política lavajatista na cena eleitoral de 2022 e o apoio militante dessa corrente para Bolsonaro são algumas provas dessa seletividade e orientação política.
O modelo de combate à corrupção da Lava-Jato é antinacional e neoliberal
Sérgio Moro, Deltan Dallagnol, Rodrigo Janot e outros expoentes da Lava Jato tiveram parte de suas formações acadêmicas e políticas nos EUA. São entusiastas das legislações e do modelo de combate à corrupção imposto por Washington ao redor do mundo.
Para eles, o Estado é o grande promotor da “grande corrupção”. Quanto mais políticas de desenvolvimento e sociais, protagonizadas pelo Estado, pior. A origem dessas concepções estão em doutrinas estadunidenses sobre a “modernização” e, mais recentemente, sobre os “caçadores de rendas” (rent-seeking) nos países subdesenvolvidos. Os servidores públicos e a atuação política, social e econômica do Estado são os grandes suspeitos de corrupção. A solução? Privatização e fortalecimento da “mão invisível do mercado”.
Desse modo, os agentes lavajatistas lutaram para que o Brasil adotasse uma série de legislações e práticas importadas dos EUA. No entanto, essas práticas e legislações nem sequer são praticadas naquele país e serviram, no Brasil, apenas para criminalizar políticas de desenvolvimento nacional, como o protagonismo da Petrobras na exploração do pré-sal e a política de conteúdo nacional dessa empresa.
Modelo de combate à corrupção da Lava-Jato fortalece sentimento antipolítica
Nessa perspectiva, a “arena pública” seria um espaço “corrupto” e “sujo”. O “setor privado” é “limpo” e “competitivo”. Desse modo, a anticorrupção seria um instrumento para “salvar democracias”, visto que o voto popular seria incapaz de não eleger “corruptos”.
Esse discurso fortaleceu o sentimento antipolítica que viabilizou o crescimento da extrema direita em vários países, na América Latina são exemplos o Brasil, Peru, Guatemala, Honduras e Argentina. De fato, a fraqueza das democracias representativas deve ser criticada. No entanto, a mera negação da política abstrai determinações mais complexas como as de classe social, gênero, raça, dentre outras.
Privatizações geram mais corrupção
Ao contrário do que se vincula na mídia, os maiores casos de corrupção da história brasileira ocorreram na década de 1990, principalmente por meio da privatização de empresas e bancos públicos estratégicos.
O caso do BANESTADO, banco paranaense, foi emblemático. Estima-se que mais de 30 bilhões de reais foram enviados para o exterior, por meio de uma conta CC5. Esse dinheiro seria oriundo de propinas pagas pelas privatizações e envolveriam os principais agentes políticos e jurídicos da república.
Lula é inocente sim
Além da votação no STF que declarou a suspeição do julgamento do ex-juiz, Sérgio Moro, sobre os casos envolvendo o ex-presidente Lula, ele foi absolvido e declarado inocente em 26 processos judiciais. São eles: 1) caso Triplex do Guarujá, 2) caso do sítio de Atibaia, 3) Tentativa de reabrir o caso do sítio de Atibaia, 4) caso do terreno do Instituto Lula, 4) caso de doação para o Instituto Lula, 5) ”Quadrilhão do PT”, 6)”Quadrilhão II”, 7) caso Delcídio, 8) caso terreno do Instituto Lula, 9) caso Palestras do Lula, 10) caso da lei de Segurança Nacional, 11) caso filho do Lula, 12) caso irmão do Lula, 13) caso sobrinho do Lula, 14) caso “Invasão do Triplex”, 15) caso “Carta Capital”, 16) Caso “Angola”, 17) Caso “Guiné”, 18) Caso “MP 471”, 19) caso “Costa Rica Léo Pinheiro”, 20) Caso “Reabertura do Sítio de Atibaia II”, 21) caso “Sonegação de Impostos”, 22) caso dos “Filhos do Lula”, 23) Arquivamento do “Caso Triplex”, 24) caso “Caças Gripen”, 25) caso “Obstrução de Justiça” e 26) caso “Ministrão”.
Infelizmente, uma das maiores fake news nesta eleição é a associação entre esquerda e a grande corrupção. A corrupção sempre foi um dos principais instrumentos para o desenvolvimento das relações entre Estado e mercado no capitalismo no Brasil. Trata-se de um problema complexo, o trato moralista sobre essa questão apenas é funcional para perpetuar tais práticas.
A esquerda pode ir para ofensiva também nesse debate com algumas diretrizes: 1) Neoliberalismo aprofunda as práticas antidemocráticas e de corrupção. 2) O fortalecimento do controle social da arena pública e a atuação coordenada do Estado é parte da solução, não um problema. A defesa do orçamento público e participativo, dos conselhos democráticos para a elaboração das políticas públicas e o controle social das empresas públicas são algumas medidas fundamentais nesse sentido. 3) Combate à corrupção é assunto de soberania nacional: casos de corrupção não podem servir para justificar a privatização do patrimônio público e a desestruturação de cadeias produtivas nacionais e postos de trabalho. No modelo lavajatista, o povo trabalhador foi o mais afetado. Os grandes empresários continuaram bilionários, a despeito do aumento do desemprego e desigualdades sociais.
Desse modo, o “combate à corrupção” associado a defesa de projetos nacionais de transformação do país, está longe de ser um tema desconfortável para a esquerda, mas é uma questão que desmonta a hipocrisia da extrema direita e seu núcleo neofascista. A extrema direita brasileira e seus aliados do “Centrão” se beneficiam desse discurso a fim de sustentarem a negação da necessidade de construção de qualquer sistema nacional de anticorrupção. A falta de transparência, a “bolsonarização” de parte dos aparatos estatais e o famigerado “Orçamento Secreto” ou “Bolsolão”, apenas reforçam a funcionalidade do “discurso anticorrupção” para, justamente, expandi-la desenfreadamente como instrumento de lucros e acumulação.
Portanto, a defesa de um sistema nacional de anticorrupção que tenha o aprofundamento democrático e o controle social da economia pública, o desenvolvimento econômico e social e a soberania nacional como princípios fundamentais é parte das lutas populares da esquerda e a vitória de Lula representa melhores condições para avançarmos nesses debates e conquistas.
Sobre os autores
é historiador e doutor em Serviço Social pela UFRJ, autor da tese “O Imperialismo Legal: os elos entre a Lava Jato e o Imperialismo Tardio no Brasil”, defendida em 2022.