UMA ENTREVISTA DE
Sofia Schurig e Sofia AlbuquerqueO bolsonarismo não sumirá com uma derrota de Jair Bolsonaro no segundo turno. O Brasil precisa ser reconstruído, após quatro anos de um governo fascista que desmontou todos os aspectos do funcionalismo estatal. Este ano, apesar de importantes deputados de esquerda terem sido eleitos, a extrema direita ocupou ainda mais o Parlamento.
Enquanto a esquerda corre para se adequar, indo ainda mais para a centro e visando a conciliação, a direita se torna mais extrema. O que tudo isso significará em um novo governo Lula? Para pensar sobre esse possível futuro, que apenas será decidido no dia 30 de outubro, conversamos com Sofia Manzano, economista, professora e ex-candidata à presidência pelo Partido Comunista Brasileiro (PCB).
Sofia Manzano nasceu em São Paulo, em maio de 1971 e desde cedo atuou na política de massas. Em sua campanha presidencial, Manzano colocou a juventude como prioridade em suas pautas, desde a redução da jornada semanal de trabalho até a criação de políticas fortes para a reparação do meio-ambiente. Algo se torna evidente: a esquerda precisa repensar que futuro quer para a juventude.
Militante desde 1989, ela integrou, em 1992, aos 21, o Comitê Central da Reconstrução Revolucionária do PCB. No mesmo ano, com ajuda de outros militantes comunistas, ajudou a reconstruir a União da Juventude Comunista (UJC) e passou a ocupar o cargo na presidência da organização, que estava inerte por conta da ditadura militar. Passou a década de noventa em países latino-americanos e alguns europeus, em busca de contatos internacionais para o partido. Ainda, foi do movimento estudantil e dirigente do Centro Acadêmico Leão XIII, na PUC, participando de múltiplos congressos da União Nacional dos Estudantes (UNE).
Ela se formou em Ciências Econômicas na PUC-SP, tem mestrado em Desenvolvimento Econômico pela Unicamp e é doutora em História Econômica pela USP. Desde 2013, Manzano reside em Vitória da Conquista, município baiano, e dá aulas na Universidade Estadual do Sudoeste da Bahia (UESB).
SS
Nesta eleição para o Parlamento, vimos que a extrema direita ganhou muito mais espaço, enquanto a direita tradicional perdeu. Ao mesmo tempo, a esquerda vai cada vez mais à direita e se adequa cada vez mais. Algumas pautas progressistas essenciais perderam espaço para pautas moralistas, como a questão da legalização do aborto, da descriminalização das drogas ou da renda universal mínima.
No entanto, alguns partidos da esquerda radical e setores da centro esquerda tentam resistir. Em partes, isso parece dar certo, ao menos no jogo legislativo. Isso cria um panorama onde a esquerda tradicional está mais de direita, e a direita ainda mais extrema. Gostaria de saber se você concorda com esse cenário apresentado, além de ouvir suas opiniões sobre a nova bancada.
SM
Ainda é bastante cedo para analisarmos completamente a composição do Congresso, porque fazer parte de uma legenda, de um partido, é muito fluído no Brasil. De fato, o Partido Liberal (PL) elegeu muitos deputados, diversas outras legendas da direita que apoiam Bolsonaro também elegeram e algumas das figuras importantes do bolsonarismo mais reacionário foram eleitas. Entretanto, devemos entender que tudo depende do segundo turno, porque o Congresso Nacional, mesmo após a Assembleia Nacional Constituinte, flutua conforme os objetivos do capital, evidentemente, mas também das possibilidades de ação que o Executivo propicia.
Então, enquanto se tem uma bancada de direita, tem um conjunto de lideranças e outros deputados eleitos que ampliaram, digamos, uma pauta de esquerda importante. Como você mesmo disse: alguns deputados do PSOL ou mesmo de outras legendas, que representam, por exemplo, os povos indígenas – poderão ter uma força no Congresso a depender de muitos outros elementos, não apenas a composição do parlamento.
“Podemos trazer de volta um conjunto da população que está imerso nessa subjetividade mórbida que o bolsonarismo — uma expressão do fascismo no Brasil.”
Não podemos saber exatamente o que vai ser desse Congresso, porque esses deputados do PL, por exemplo, que hoje se elegeram na esteira do Bolsonaro, mudarão para outras legendas e outras posições numa rapidez expressiva, caso Bolsonaro perca no segundo turno. Inicialmente, é difícil já sairmos derrotados desse processo apenas por conta de quem foi eleito para o legislativo. É óbvio que tem uma importância, mas podemos perceber, por exemplo, que um Congresso que seria, teoricamente, menos de direita do que esse, foi o que promoveu o impeachment, o golpe, contra a Dilma. Tudo depende da movimentação das forças políticas, bem para além do Parlamento.
SS
Bolsonaro está tirando dinheiro de vários órgãos e projetos públicos para o orçamento secreto, em prol de conseguir mais auxílios econômicos, como a PEC Kamikaze e apoio no Congresso. Além disso, temos as milícias digitais, atuando fortemente no compartilhamento e produção de desinformação contra a campanha petista. Na sua opinião, quais serão as principais dificuldades de Lula neste segundo turno, e como a esquerda (tanto a centro esquerda quanto a esquerda radical) poderão se unir para superar tais dificuldades?
SM
Bom, há vários níveis de dificuldade, mas Lula tem algumas vantagens para vencer a eleição. Ele já saiu com seis milhões de votos na frente. Isso é uma vantagem expressiva e unificou um campo muito grande que percebe a necessidade imediata de derrotar Bolsonaro.
Acredito que as principais dificuldades estão nas fake news, em combater elas e ser mais incisivo. Quer dizer, ele também tem outro inimigo interno, digamos assim, no campo da política, a direita liberal no campo da economia, que fica puxando o tempo todo para pautas que prejudicam Lula. Por exemplo, recentemente, o Henrique Meirelles fez um tweet com um fio grande, dizendo da necessidade absoluta de fazer a reforma administrativa para equilibrar as contas públicas. Enfim, toda aquela “conversinha” que sabemos que não tem nenhum fundamento cientifico, mas que a direita quer por que quer a reforma administrativa. A campanha do Lula está a todo momento sendo colocada em cheque, dando vazão pro bolsonarismo expandir ainda mais a sua área de influência.
“O fascismo bolsonarista está acionando instintos animais e irracionais na população para vencer a eleição.”
Agora, o que mais preocupa hoje, são as fake news, é o discurso irracional que acaba tocando as pessoas de uma forma que é própria do fascismo. Por exemplo, os discursos que a Damares faz, a provocação que Bolsonaro fez na Basílica de Nossa Senhora Aparecida, tudo isso não é sem querer. Isso é organizado para criar a todo momento uma comoção entre o bem e o mal na população mais fragilizada — sendo que eles se colocam, mesmo fazendo o mal o tempo todo, como os salvadores. Essa é uma dificuldade, mas acredito que o Lula apresenta uma reação importante nisso, que é não menosprezar esse elemento subjetivo e irracional usado nessa campanha. O fascismo bolsonarista está acionando instintos animais e irracionais na população para vencer a eleição. O Lula consegue tentar frear, de certa forma, esses instintos irracionais e não utilizar da mesma estratégia.
Acredito ser bem possível ganhar eleição. Você também perguntou: o que temos que fazer para ajudar nesse sentido? É não usar das mesmas estratégias irracionais de combate a esse irracionalismo. Quando se coloca toda uma rede de fake news, um conjunto de elementos de ataques brutais contra a religiosidade — uma ou outra, agora foi o catolicismo — não podemos nos colocar no mesmo patamar para atacá-los da mesma forma. Devemos resgatar na população aquilo que ela tem de racional e humano, isso também envolve um resgate do subjetivo humano que não é irracional, não é essa pulsão de morte que o Bolsonaro resgata na população.
Então, qual é esse elemento no meu entender? É a perspectiva que podemos, como humanidade, construir um futuro generoso. Uma humanidade que já produziu, por exemplo, a quantidade de músicas espetaculares que temos, manifestações culturais tão diversas, bonitas e alegres. Resgatando esses elementos, podemos trazer de volta um conjunto da população que está imerso nessa subjetividade mórbida que o bolsonarismo — uma expressão do fascismo no Brasil. Hoje, estava ouvindo algumas músicas, pensando: “Gente, quem já produziu isso, não pode caminhar para o fim da existência humana”. Já produzimos tantas coisas maravilhosas e precisamos resgatar esse sentimento lindo e maravilhoso para trazer de volta o aspecto humano da sensibilidade, porque o bolsonarismo está ativando o aspecto desumano da sensibilidade.
SS
Na área teórica da comunicação, fazemos muitos debates sobre o que se tornou a comunicação política brasileira, em destaque para a esquerda nas redes. Por exemplo, a esquerda de fato, precisa, chamar Bolsonaro de maçom, enquanto temos 33 milhões de famintos? Por outro lado, é assustador perceber que chamar ele de maçom tem mais efeito do que pessoas comendo osso, por conta dos evangélicos.
Mesmo com uma vitória do Lula, presumindo também que Bolsonaro aceite o resultado das urnas, o bolsonarismo não acabará – a direita brasileira foi hegemonizada pelo bolsonarismo, como o republicanismo nos EUA se tornou o trumpista. Como você acredita que poderemos voltar a viver politicamente, no âmbito da militância e do discurso político, com o bolsonarismo ainda ocupando tantos setores da sociedade?
SM
Independentemente do Bolsonaro tentar dar golpe ou não, isso não vem ao caso. Nós, como atores políticos, pessoas políticas e militantes, precisamos entender que o que permite que o bolsonarismo se crie e perpetue no Brasil é a falta de expectativa no futuro. Os brasileiros, sejam eles os mais jovens ou mais velhos, não veem perspectiva de futuro. Esse fim do horizonte faz que se crie esse ressentimento e a violência. Quer dizer, se não tem futuro, então posso matar o vizinho do lado, sem consequências.
A reivindicação que o bolsonarismo faz de uma liberdade irrestrita não é uma liberdade de viver em sociedade, mas uma liberdade de fazer o que quiser e não ser punido por nada, porque quero assim. E isso vemos desde uma discussão de condomínio até falas do próprio Bolsonaro.
Então, como enfrentar isso? Há várias maneiras. Primeiro, apresentando uma perspectiva de futuro, um projeto ou programa que comece a empolgar os brasileiros, sobretudo a juventude, para ajudar nessa construção de perspectiva de futuro. Eu, como comunista, volto sempre a dizer que o comunismo é a proposta mais generosa que a humanidade produziu. É uma necessidade ir em busca do comunismo, mas, para isso, temos que nos organizar. Para isso, precisamos estar atuando na sociedade, no cotidiano de nossas vidas. Essa é uma questão.
“O bolsonarismo, independente do Bolsonaro, tem outros frentes fascistas que podem ser acionados para fazer brotar essa pulsão de morte decorrente da falta de perspectiva de futuro.”
A outra questão diz respeito às lutas pontuais e o movimento que um futuro governo Lula pode gerar na sociedade, que é um programa para a melhora efetiva nas condições de vida objetivas. A vida precisa melhorar para que as pessoas possam ter condições de se organizar, se mobilizar, mas nunca podemos parar de pensar em nossa organização política. É apenas nos organizando e atuando na sociedade que teremos condições de acionar esse futuro. Simplesmente condenar o bolsonarismo, achar ruim, ir votar e acabou, não resolve. O bolsonarismo, independente do Bolsonaro, tem outros frentes fascistas que podem ser acionados para fazer brotar toda essa situação sombria que representa o movimento — essa pulsão de morte decorrente da falta de perspectiva de futuro, de falta de horizonte. Teremos que continuar na luta.
Não podemos entregar os pontos e achar que a simples resolução de problemas pontuais enfrentará o fascismo. O fascismo deve ser enfrentado nos dois pontos. Do lado objetivo, das condições materiais, através de condições materiais para que a população viva, mas também dando um sonho, um horizonte, uma utopia. Essa utopia não pode ser o reino após a morte. Ela deve ser construída aqui, e para construí-la, temos que nos organizar, lutar e se desenvolver pessoalmente.
SS
Há uma classe no Brasil que cobra muito para que Lula prometa realizar políticas neoliberais em seu projeto econômico. Entretanto, se ele fizer isso, não terá como dar a condição de vida material que os brasileiros tanto precisam agora, como você citou. Por exemplo, não há como fazer quaisquer projetos de auxílio social com o teto de gastos sem recorrer a algo como o orçamento secreto.
Hoje, a campanha petista promete aos eleitores que, no âmbito econômico, tudo será como 2003. Mas será? Naquele primeiro mandato, Lula não só se aproveitou do cenário econômico mundial, mas teve ajuda de vários economistas dedicados a reconstruir o país, e não sei se essa conjuntura ocorrerá novamente. Em sua visão de professora e economista, o que Lula poderá concretizar no cenário econômico, se eleito?
SM
Acredito que Lula não terá muitas condições, caso não enfrente contundentemente as limitações dadas na conjuntura brasileira. Entre elas, o teto de gastos, a reforma trabalhista, a reforma do ensino médio. Além disso, há as pressões da grande mídia para que as contrarreformas se aprofundem, como a privatização da Petrobrás e um conjunto de estruturas do Estado. Essas são pautas burguesas, independentemente de estarem na extrema direita, ou compondo a chapa do Lula, porque elas também a compõem.
Não é à toa que os economistas liberais e alguns ultraliberais estão apoiando o Lula. Ele terá muitas dificuldades em enfrentar essa pauta econômica ultraliberal e nós vamos ter que ver se esse movimento de ascensão do lulismo enquanto movimento de massas — que tem se demonstrado nos últimos dias em gigantescas manifestações — se perpetuará na defesa dos projetos de Lula para o futuro.
Nós, do PCB, rompemos com o governo Lula em 2005 — antes do mensalão, inclusive — porque ele estava abrindo mão de acionar seu potencial político de massas pelos conchavos com a direita. Não só no Parlamento, mas com as forças da burguesia no cenário interno. Então, nós teremos que observar o seguinte: Lula irá continuar com a mesma estratégia de conchavos? Assim como você falou, a conjuntura econômica era diferente naquele período. E de fato era. Por isso, ele tinha ainda mais condições de fazer e resolveu fazer menos do que poderia. Além da conjuntura econômica ter sido muito mais favorável, ele tinha um apoio de massas muito grande por vencer a eleição, um partido organizado e com militância.
Se o Lula não acionar esse potencial político de massas, que não é só o número de votos que você teve, o número de votos vira no dia seguinte. É preciso continuar acionando o seu potencial de massas para pressionar os diversos setores internos da burguesia e das facções políticas para encaminhar medidas necessárias. Lula terá um problema muito sério de governabilidade em um curtíssimo espaço de tempo, mas isso não é um problema para a burguesia interna e para o capital.
“É preciso ir para a ofensiva da forma que nós mobilizamos a juventude e a classe trabalhadora para ir até ao Congresso e exigir que pautas importantes sejam atendidas.”
Desde que começaram as conversas para que Geraldo Alckmin se tornasse vice no passado, cheguei a dizer que essa era a maneira mais fácil do PSDB chegar à presidência da República sem precisar enfrentar o Lula, sendo o próprio vice. Se ele não aproveitar de todo esse conjunto da população brasileira que está depositando essa esperança e confiança para mobilizar essas forças e implementar um programa econômico que não aprofunde ainda mais o projeto ultraneoliberal, ele perderá completamente o apoio que eventualmente consiga ter no Congresso, e nós teremos um Alckmin como presidente da República.
SS
Me lembro de ter lido o seu plano de governo e de outros candidatos, e o que você menciona sobre a juventude me chamou a atenção, porque seu plano de governo continha algumas propostas únicas. A que teve maior destaque, inclusive na imprensa, foi a redução de jornada de trabalho para 30 horas semanais. Isso não é nada radical, mas é básico até mesmo em países neoliberais na Europa. No Brasil, questões básicas sempre são vistas como inacessíveis. Sei que, como você disse no início, ainda é cedo para vermos algo no Congresso. Mas você acredita que, em um cenário onde o Lula seja eleito, cria-se uma conjuntura para lutarmos para que melhorias básicas deixem de ser radicais?
SM
Acredito que se amplia uma possibilidade de luta, não se abre, porque as possibilidades de luta sempre existem. Elas ampliam justamente porque conseguimos eleger um conjunto de deputados de diversos espectros progressistas da sociedade brasileira e estão mobilizados. Não apenas mobilizados no sentido de ficar na defensiva no Congresso, mas ir para a ofensiva. Acredito que o mais importante na minha campanha presidencial foi mostrar para um conjunto — ainda muito pequeno da juventude trabalhadora brasileira — que precisamos sair da defensiva e ir para ofensiva.
É preciso ir para a ofensiva da forma que nós mobilizamos a juventude e a classe trabalhadora para ir até ao Congresso e exigir que pautas importantes sejam atendidas. Não adianta ter a estratégia da negociação. Existem algumas experiências que demonstram como isso é possível de ser feito e como isso é bem efetivo. A primeira experiência foi a própria Constituição de 1988. A Assembleia Nacional Constituinte fez com que a própria Constituição — que é considerada uma boa Constituição, pena que já desmontaram tanto ela que já não sobra nada do que ela era antigamente —, garantisse um conjunto de direitos importantíssimos. Os congressistas que compunham a assembleia eram na sua ampla maioria de extrema direita, direita ou do Centrão. Só para se ter uma ideia, o PT tinha 6 deputados, o PCB tinha 3, e alguns setores mais progressistas do trabalhismo tinham mais uns 10 ou 12. O resto era o centrão e a direita. Como é que foi possível aquela Constituição? Ora, só foi possível porque a sociedade estava tão mobilizada para que aquilo fosse feito.
“A legalização da maconha está sendo preparada de forma que só os grandes monopólios do agronegócio e das indústrias farmacêutica possam plantar, se beneficiar e distribuir os derivados da maconha.”
Então, é muito importante hoje, por exemplo, trazermos para fora do Congresso as pautas que são debatidas. Não apenas na noite em que a votação começa e na madrugada em que ela termina, para depois fazermos manifestações que não à isso, não àquilo. Temos que trazer essas pautas antes que elas se definam no Congresso, e fazer com que a população participe desse debate.
Durante a campanha, fui muito questionada porque a minha campanha foi uma das únicas que falou com bastante ênfase sobre a legalização da maconha. Fomos questionados por diversos meios “mas a população brasileira é contra a legalização da maconha, você não acha que você estreita o seu discurso se você defende a legalização?”. Respondo da seguinte forma: a legalização da maconha vai acontecer, porque já está sendo debatido. Agora, temos que trazer esse debate para a sociedade. A legalização da maconha está sendo preparada de forma que só os grandes monopólios do agronegócio e das indústrias farmacêutica e tabagista possam plantar, se beneficiar e distribuir os derivados da maconha, mesmo para o uso recreativo. Então, é como se teremos a legalização da maconha, mas você não pode plantar o seu pé de maconha em casa, porque aí é ilegal. A legalização vai ocorrer, nós como sociedade apenas não estamos participando desse debate.
Temos que fazer com que a sociedade participe de diversas outras pautas importantes e progressistas, para que se encaminhe essas pautas para um sentido progressista. Terá que haver alguma regulação do trabalho, principalmente para a juventude, porque da forma que o trabalho foi absolutamente desregulado pela reforma trabalhista, isso inviabiliza o próprio desenvolvimento dessa juventude e o desenvolvimento da acumulação de capital no Brasil. Agora, essa regulação ficará no Congresso e se tornará um novo pacote que nos enfiaram goela abaixo, ou iremos nos apropriar disso e falar que queremos uma jornada de trabalho de 30 horas semanais, que a mão de obra de todos os trabalhadores de aplicativo sejam intermediados por uma empresa pública?
Outra questão, a pauta LGBTQ+ irá avançar. Queremos que ela avance apenas para existir um grau de igualdade formal, ou que exista, por exemplo, uma política de cotas, a efetividade da garantia do direito do nome social, um programa de saúde específico para a população LGBT, principalmente para as mulheres trans?
Existem um conjunto de elementos que precisam ser debatidos pela sociedade. Precisamos trazer de volta a população brasileira para acionar essas pautas no debate diário e ir para a ofensiva. Vejo com bastante otimismo a atuação da esquerda e da esquerda socialista no Congresso.
SS
Para tomar a dianteira desses debates, acredito que falta o papel dos meios de comunicação. São eles que deveriam deixar a sociedade a par do que irá acontecer e do que está ocorrendo. Uma das funções sociais do jornalismo é, em teoria, esta. A revista o sabiá (parceira da Jacobin) foi criada com o lema “Democratizar o acesso à informação”, uma vez que ela não é distribuída de maneira igual na sociedade. Sabendo disso, acredito que uma das soluções pode ser o investimento em uma mídia estatal forte e independente da alternância partidária de poder.
No Brasil, nunca tivemos isso e sempre foi concentrado a mídia em pequenas famílias, ao contrário da Inglaterra ou da Alemanha. Para além de uma possível regulamentação dos meios de comunicação, essa é uma saída para reduzir o abismo que está entre a comunicação e a realidade do povo. Queria ouvi-la sobre isso, e como um novo governo de esquerda pode solucionar esse problema sem partir para alternativas extremas e autoritárias.
SM
A questão dos meios de comunicação não é apenas de agora, eles sempre foram um braço poderoso dos grupos dominantes no Brasil. Você deve saber que o Estadão e a Folha de São Paulo defenderam a ditadura e que a Globo demorou 50 anos para reconhecer seu erro na defesa da ditadura. Além disso, como meios de jornalismo, eles atuam como um jornalismo de apenas uma visão – o jornalismo econômico da Rede Globo, por exemplo, é uma piada. Esse um problema que deve ser enfrentado de duas formas.
A primeira delas é construindo meios de comunicação, como você mesma falou da revista o sabiá, e buscar inserção e conseguir estar junto à população. Usar plataformas como YouTube e Instagram para produzir conteúdos e disseminá-los com qualidade e seriedade, para assim se diferenciar do que a direita faz e até mesmo uma parcela da esquerda faz, num achismo de opinião. Agora, isso também passa por uma regulamentação. Na Europa e até mesmo nos EUA não há o que se tem aqui. O que há no Brasil não é uma liberdade de imprensa, mas um único grupo e classe social detendo todos os meios de comunicação públicos.
Não estou falando da Folha ou do Estadão, porque esses são jornais impressos, mas de televisão e rádio, concessões públicas com apenas uma classe social detendo esses meios de comunicação. É preciso ter algum mecanismo de regulação. Além disso, tem de se incentivar redes locais e de produção de conteúdo que representem outros interesses, assim como blogs e redes de rádios comunitárias, rádios das diversas formas e ter um maior controle sobre a utilização do espaço público pela mídia.
SS
Queria que entrássemos em um assunto importante: o futuro da juventude. Uma coisa que noto, tanto na redação, quanto nas redes e até mesmo na minha faculdade de Comunicação (FACOM-UFBA), é a desmotivação. Como podemos continuar vivendo enquanto o mundo está se acabando com as mudanças climáticas, uma crise econômica e social que apenas se agrava?
Dito isso, como você acredita ser possível incentivar a juventude não só para se organizar e movimentar politicamente, mas para fomentar uma motivação para que a juventude participe ativamente no processo de repensar um futuro melhor?
SM
Em primeiro lugar, tenho que dizer o seguinte: se você desistir, eles vencem. Jovem, se você desistir, eles venceram. Portanto, nós não temos alternativa. Todos nós, jovens ou não, não temos alternativa. A nossa única alternativa é lutar. Como fazer isso? Primeiro, precisamos lutar internamente. Tenho essa preocupação com o adoecimento mental da juventude, justamente por conta dessa falta de perspectiva. É preciso olhar para o passado e observar que nos piores momentos da humanidade, pessoas acionaram para superar aqueles momentos e sempre foram os revolucionários que acionaram esses gatilhos que superassem os piores momentos.
“No capitalismo, temos um bilhão de pessoas passando fome. A degradação ambiental é terrível. Ficamos o tempo inteiro avaliando a tragédia em que nos encontramos.”
É sair da defensiva e ir à ofensiva, em todos os aspectos. Se chegamos no ambiente da universidade e nos deparamos com uma situação em que ela está precária pela falta de professores, sem disciplinas, não podemos nos acomodar. A todo momento vemos essa acomodação nos ambientes universitários, que vem sofrendo cortes de verba brutais. Ficamos tentando nos adequar a essa restrição orçamentária e chegou a hora de não nos adequarmos mais, de simplesmente pararmos. Devemos parar e mobilizar todas as forças possíveis, ir para a ofensiva, ao invés de se adequar ao orçamento.
A segunda questão é também mobilizar em nós as subjetividades boas que nos impulsionem para a luta e a organização. É observar tudo o que a humanidade já fez de bom e belo, porque temos ressaltado muito o que temos de ruim. No capitalismo, temos um bilhão de pessoas passando fome. A degradação ambiental é terrível. Ficamos o tempo inteiro avaliando a tragédia em que nos encontramos e é muito importante saber dessa tragédia. Nós não podemos tapar o sol com a peneira, mas precisamos relembrar que a humanidade já produziu muitas coisas boas.
Durante a campanha eleitoral, recebi muitos xingamentos de pessoas de extrema direita afirmando que eu era burra, ignorante, não teria sequer um telefone celular se não fosse o empresariado. Então, respondi que nunca ouvi falar de nenhum CNPJ que tenha feito um desenvolvimento tecnológico, quem desenvolve as tecnologias são os seres humanos. Precisamos sair da armadilha de pensar que este é o único mundo possível e ver que tudo até hoje, de bom e de ruim, foi produzido pelos seres humanos.
A questão central do que foi produzido de ruim no atual momento em que vivemos é a relação social de produção capitalista, por isso, ser anticapitalista não é retroceder a um mundo imaginário em que nós não tenhamos os avanços que temos até aqui, mas é superar a relação social de exploração. É possível viver tranquilamente neste mundo com a tecnologia que temos e com mais outras que produziremos sem haver degradação ambiental, humana e da saúde mental. Por que sei que é possível? Porque superamos coisas muito mais difíceis de se superar, basta ver as coisas que aconteceram ao longo da existência da humanidade.
Agora, qual é o entrave para produzir esse mundo generoso? O capitalismo. Dessa forma, podemos levar à juventude a perspectiva de que existe um horizonte de futuro que não é distópico, para não simplesmente se acomodar e dizer “esse país não tem mais jeito” ou “vou sair desse país”, porque os outros países também estão assim. Precisamos, coletivamente, pensar em estratégias de superação do capitalismo. Não apenas enfrentar as coisas ruins do capitalismo, mas enfrentar e superar.
SS
Além da leitura do cenário geral, que já é desmotivador por si só para qualquer um, você certamente deve receber muitos ataques e coisas odiosas. Então, como você lida com tudo isso?
SM
Os ataques às vezes são o mais tranquilo, porque vem de um grau de ignorância, de brutalidade. Quer dizer, a pessoa se dá ao trabalho de entrar na minha rede social para escrever “sua burra, vai estudar”. Não me importo com isso, não é nem a questão que me abala. Evidentemente, também sou muito abalada por toda essa situação muito dramática pela qual estamos passando. No entanto, aciono os gatilhos importantes para mim e que me fortaleçam nessa perspectiva de luta.
Gosto muito e sou apaixonada por música. Ver, por exemplo, desde uma peça de Bach, Beethoven, um samba brasileiro, um blues norte-americano, até agora, estava escutando Orishas — rap cubano. Você pensa o que os seres humanos já fizeram. Olha o grau de complexidade que eles já alcançaram. Será que jogaremos tudo no lixo por conta de um super lucro especulativo que não pode ser apropriado, nem materialmente? Esse é um dos meus gatilhos positivos — hoje se usa muito esse termo “gatilho” para o elemento negativo, então vamos falar de gatilhos positivos, os que dão força. Vejo muito que acho importante para a humanidade na arte. Para mim, a arte é a expressão mais sublime da humanidade. Agora, estamos sendo bombardeados por um lixo na música, na escultura, no cinema, que faz com que pensemos que e a humanidade não produz mais nada de bom. Mas, ela produz, ou pelo menos já produziu em algum momento. Temos que resgatar isso como um elemento bom.
“Tudo o que nós não podemos fazer é desistir, porque se desistirmos eles ganham. Existem várias formas acionarmos nossos gatilhos do bem, o que a gente tem que enfrentar são os gatilhos do mal.”
Outra questão que funciona muito bem para mim, é o fato de poder conversar com muito mais gente. Eu não leio as coisas e estudo só para me informar, eu leio e estudo para entender porque as coisas estão dessa forma, como elas chegaram aqui. Claro que você precisa ter informação, mas é preciso fazer as conexões entre essas informações. Não adianta fazer isso só para si, você tem que compartilhar isso. Então, para mim um dos elementos que me dá muita força e energia é a possibilidade de passar para mais gente estas conexões que vou aprendendo ao longo do tempo, e posso trazer para um conjunto maior de pessoas.
Pelo menos essas análises da realidade e passar isso para frente. Isso me motiva, me dá ânimo, me dá energia. Fora o fato de estar organizada, ter que preparar questões importantes para a própria organização. Assim, temos que enfrentar e enfrentamos. Tudo o que nós não podemos fazer é desistir, porque se desistirmos eles ganham, ganham mesmo. Existem várias formas acionarmos nossos gatilhos do bem, o que a gente tem que enfrentar são os gatilhos do mal, os gatilhos da depressão, do desânimo e pensar coletivamente como construiremos isso.