Press "Enter" to skip to content
Sala de comando do projeto Cynco no Chile de Allende sobreposta com grafo representando interconexões entre setores da economia.

Um dia na agência de planificação

[molongui_author_box]
Tradução
Everton Lourenço

Como seria um dia na agência de planejamento de uma economia socialista? Como lidaríamos com a contabilidade? Quais seriam seus mecanismos básicos, e o desenho institucional democrático que os acompanharia?

Bem-vindo à agência de planificação central (ou agência de planejamento central), o órgão responsável por organizar a produção em uma economia socialista. Na ausência de um mercado que determine os custos dos bens de consumo, devemos recorrer à matemática, informática e telecomunicações para atribuir a cada produto um valor ou custo. Em oposição ao mercado, que é caótico e coordenado pela concorrência, as decisões de uma economia planificada são conscientes, tomadas democraticamente pelos trabalhadores através de diferentes órgãos como conselhos, organizações de consumidores ou referendos.

Um desses órgãos é a agência de planificação central, por meio da qual teremos a oportunidade de visualizar um panorama das ferramentas técnicas e da coordenação entre os diferentes órgãos que viabilizam uma economia planificada. Em contraste com o capitalismo predatório, encontramos uma simbiose na qual o conhecimento e a informação são compartilhados para fazer a sociedade avançar em direção a uma melhor gestão dos recursos naturais, tempo de trabalho e maior qualidade de vida.

Os planos econômicos

Uma das tarefas fundamentais da agência de planejamento é elaborar os planos econômicos para os anos futuros, que podem ser divididos em três categorias gerais: planos estratégicos, planos macroeconômicos e planos detalhados (Cockshott & Cottrell, 1993). Os planos estratégicos, mais gerais, são propostos aos trabalhadores por meio de referendo e são implementados de acordo com suas preferências. Neles são escolhidos, por exemplo, a quantidade de impostos destinados aos serviços públicos, a proporção de bens de consumo e de produção a serem fabricados, o investimento em infraestrutura, a importância dada ao problema ecológico, etc.

Com base nesses planos estratégicos, a agência de planejamento elabora planos macroeconômicos, com as proporções de produção/consumo, poupança/crédito, impostos/despesas públicas etc; e planos detalhados, onde são estimadas as unidades dos diferentes produtos que temos que fabricar com base nas preferências dos trabalhadores e nos próprios limites ecológicos e de recursos do planeta. Esses planos não são uma coisa burocrática imposta a partir do alto, pelo contrário, os cidadãos participam de sua elaboração por meio de diferentes órgãos, como grupos de consumidores, conselhos especializados ou institutos de pesquisa.

Por exemplo, se, de acordo com o plano estratégico, o uso do transporte público deve ser aumentado em 10%, o plano detalhado deverá responder o que isso significa em termos de quantos ônibus, trens e bondes de cada modelo deverão ser produzidos; quantas rodas e motores serão necessários; e, para estes motores, quantos painéis, roscas e cilindros; e assim sucessivamente. Enquanto isso, o plano macroeconômico deverá garantir o orçamento necessário para viabilizar o objetivo.

O método de Leontief

Além de elaborar os planos gerais, a agência de planificação pode resolver diversos problemas a pedido dos trabalhadores, conselhos, etc, como outro órgão à serviço dos trabalhadores e não acima deles.

Por volta das 9h da manhã, chega a primeira ordem do dia vindo de um dos centros de inovação tecnológica: “os agricultores do sindicato das cooperativas agrícolas precisam planejar a produção de cereais para o próximo ano. Após vários testes com diferentes processos industriais, os pesquisadores do centro de inovação tecnológica propõem dois novos processos muito eficientes para aproveitar os grãos: um para a produção de farinha e outro para produzir cerveja. Os aspectos técnicos desses processos são detalhados de maneira precisa abaixo”.

Prosseguindo a leitura, as primeiras informações importantes que encontramos são os coeficientes técnicos para cada processo industrial [1]. Esses coeficientes nos indicam a quantidade de cada material que precisamos para produzir uma unidade do produto final, e são coletados em uma tabela de insumos-produtos, onde podemos ler verticalmente as unidades de insumos de que precisamos para cada unidade do produto final. No nosso caso temos três insumos: cereais, eletricidade e água; e três produtos: cereais, cerveja e farinha. Para produzir cereais precisamos de cereais (sementes), água e eletricidade (para as máquinas agrícolas); para produzir cerveja precisamos de água, cereais e eletricidade (para torrar o malte e cozinhar o mosto); e finalmente, podemos produzir farinha com cereais e eletricidade (para limpar e moer o grão).

Tabela de insumos-produtos para a produção de cereais, cerveja e farinha, e o grafo associado.

Se quisermos planificar uma economia real, devemos coletar nessas tabelas todos os produtos e indústrias disponíveis. Esses dados são os mesmos coletados pelo escritório de Wassily Leontief no século passado [2], que os preenchia em cartazes com vários metros de largura e comprimento. Hoje podemos armazenar essas tabelas de milhões e milhões de produtos em um pequeno computador.

Aqui entra em jogo o método desenvolvido por Leontief [3] que, dadas as quantidades de produto final que queremos produzir de acordo com a estimativa do plano, permite calcular através da tabela de insumos-produtos a quantidade total de bens iniciais de que precisamos. O fato das matérias-primas estarem inter-relacionadas (até consigo mesmas) nos obriga a resolver um sistema de equações lineares para encontrar as quantidades desses insumos. [4] O desenvolvimento desse método rendeu a Leontief o Prêmio de Ciências Econômicas em homenagem a Alfred Nobel em 1973.

Uma vez que saibamos as unidades de cada produto que temos de produzir, podemos usar o tempo médio que se leva para produzi-lo e para produzir cada um de seus componentes para calcular o tempo total que os trabalhadores levam para elaborar uma unidade desse produto final. Portanto, esse tempo de trabalho incorporado em cada produto inclui tanto o tempo indireto necessário para fabricar as máquinas, eletricidade, matérias-primas etc, quanto o tempo direto gasto para fabricar o próprio item. Este tempo é conhecido como custo de mão de obra integrado e será uma grandeza central no cálculo econômico socialista.

Algoritmo de ajuste

Existem diversas propostas para avaliar os produtos disponíveis nos armazéns para os trabalhadores, ainda que, para simplificar, vamos nos concentrar na proposta baseada nas horas de trabalho apresentada por Cockshott & Cottrell (1993) e esboçada por Marx [5]. Em geral, os preços dos produtos serão determinados por aqueles custos de mão de obra integrados, ou seja, as horas de trabalho necessárias para fabricar esse produto. Para se obter um equilíbrio entre produção e consumo, cada trabalhador receberá como compensação o equivalente às horas que tiver trabalhado (os serviços públicos são deduzidos da compensação por meio de impostos).

Mecanismo de retroalimentação para ajuste dos preços dos bens de consumo.

No entanto, esses custos compreendidos em termos de custos de mão de obra seriam apenas uma primeira aproximação para o preço. Nunca será possível prever exatamente quantas unidades de melancia serão consumidas no próximo verão, pois isso depende de decisões individuais e de fatores externos impossíveis de se controlar. É por isso que precisamos de um sistema de controle de estoques que envie de volta aos planejadores dados sobre aquilo que os trabalhadores estiverem consumindo e aquilo que não estiverem. [6] [7] Essas informações serão utilizadas tanto em planos futuros quanto para correção dos preços dos produtos. Por exemplo, se apenas 80% do estoque de melancias for vendido, o preço pode ser reduzido proporcionalmente para que elas sejam consumidas antes que estraguem. Da mesma forma, se tivermos um produto em alta demanda, o plano futuro pode ser modificado para que ele seja produzido em maior quantidade.

Otimização

Às 12h chega outra atribuição. No último plebiscito foi decidido que se deve planejar como as terras do campo de Múrcia serão utilizadas para cultivar seus dois produtos mais famosos, os limões e as uvas usadas para se fazer o vinho Jumilla, e é responsabilidade da agência desenhar um plano de produção adequado a esses acordos. Temos à disposição os férteis vales do pomar de Segura, que produzem 25 toneladas de limões ou 18 toneladas de uvas por hectare; e o terreno mais montanhoso do Altiplano de Jumilla, que rendem uma produção de 11 toneladas de limões ou 35 toneladas de uvas por hectare.

Para cultivar limoeiros necessitamos de 1 trabalhador por hectare e 1 trator para cada 200 hectares de terra cultivada, enquanto que para cultivar vinhas precisamos de 1 trabalhador e 1 trator para cada 20 hectares. Limões e uvas devem ser produzidos em proporções mais ou menos semelhantes e 1050 tratores e 10500 trabalhadores estão disponíveis. Portanto, qual seria a distribuição otimizada das terras agrícolas?

Esse tipo de problema é facilmente modelado utilizando programação linear. Resolvendo o problema com o pacote SciPy [8], em 0,006 segundos obtemos que 9500 hectares do campo Horta del Segura devem ser utilizados para o cultivo de limões e 5 para o cultivo de vinhas, enquanto que todos os campos de Jumilla devem ser utilizados para o cultivo de vinhas. Um resultado não muito óbvio à primeira vista, certo? Bem, essa é uma das vantagens da planificação: uma vez que estejam livres esses fluxos de informação existentes e que os segredos da produção já não estejam ocultos, não precisamos do thymos [9] de um empreendedor para realizar um projeto, mas, pelo contrário, de forma consciente e democrática podem ser escolhidas as soluções otimizadas aos problemas que afrontam nossa sociedade [10].

Embora ferramentas como essas nos ajudem a organizar a produção, nem sempre é possível encontrar a solução adequada em todos os aspectos. Em uma democracia socialista, os principais problemas deverão ser resolvidos mediante referendo após um debate prolongado e aberto. Por exemplo, caso se proponha um projeto hidrelétrico que inundaria um vale que é hoje um lugar de beleza e um habitat únicos, não faz sentido buscar uma fórmula econômica para decidir se o projeto deve seguir adiante. O problema é político, não econômico. É uma decisão que requer um julgamento deliberado de prioridades e não pode ser reduzida a uma simples comparação de números (Cockshott & Cottrell, 1993).

Poderíamos visualizar as cadeias das relações de produção na economia de um país.

Perspectivas futuras

Esperamos que você tenha gostado deste breve passeio pela agência de planificação. Como vimos, o planejamento socialista não será realizado apenas por meio de seu aspecto técnico, valendo-se do método e da otimização de Leontief e da otimização, mas também institucionalmente, graças aos diversos organismos democráticos através dos quais os trabalhadores poderão organizar a produção e a distribuição dos bens que desejarem produzir. Os planos econômicos não são, portanto, um sistema “algocrático”, controlado por uma inteligência artificial para além da consciência dos seres humanos, mas sim uma ferramenta para se realizar o planejamento consciente e democrático da economia. Não seremos engrenagens do plano, nem peões nas maquinações dos complexos industriais, pelo contrário: toda a classe trabalhadora é idealizadora, diretora e executora do plano.

Ainda assim, o programa cibersocialista continua longe de estar completo e o planejamento econômico é uma área de pesquisa em crescimento. No campo da análise de insumos-produtos, Cockshott, Härdin e Zachariah estão refinando o modelo original proposto por Leontief há mais de 70 anos; por exemplo, introduzindo as tabelas de “supply-use” (suprimentos-utilização). No campo da programação linear, concebida em meados da era soviética, foram realizados uma série de avanços algorítmicos e tecnológicos que permitem otimizar a economia de um país inteiro, por exemplo, a da Suécia (Hagberg & Zachariah, 2022). Além disso, Cockshott, Cottrell e Dapprich estão preparando um novo livro sobre o planejamento econômico na era das mudanças climáticas, onde usam os métodos de insumos-produtos e a programação linear para enfrentar o problema ecológico.

Os comunistas do século XXI devem prestar especial atenção ao desenvolvimento dessas ideias para explorar as possibilidades que o socialismo apresenta diante das atuais condições tecnológicas e obter um bom norte na direção do qual apontar. Mais cedo ou mais tarde, teremos que fazer as contas se quisermos responder às perguntas sobre o que queremos produzir e como queremos produzir.


Notas

[1] Um exemplo de obtenção desses coeficientes para uma fábrica química sueca pode ser encontrado no artigo de Tomas Härdin.

[2] Grande parte do trabalho de Wassily Leontief nos EUA baseava-se na elaboração dessas tabelas, ainda que infelizmente tenha cessado a sua atividade entre 1947 e 1958 porque aos olhos da administração estadunidense ele estava realizando tarefas semelhantes demais aos comunistas (Polenske, 1999).

[3] Essas técnicas, que foram desenvolvidas para o cálculo com dinheiro (Leontief, 1936), acabaram servindo também para o planejamento em espécie.

[4] O procedimento pode ser visto em detalhes em Matemática para planificar uma economia. É necessário mencionar que com o método de Leontief não podemos incluir nos cálculos diferentes procedimentos para se fabricar o mesmo bem; isso pode ser resolvido trocando as tabelas de insumos-produtos por tabelas de uso de suprimentos (“supply-use”) e programação linear (Hagberg & Zachariah, 2022).

[5] Uma alternativa seriam os custos de oportunidade propostos por Dapprich.

[6] O feedback (a retroalimentação do sistema com dados gerados na sua saída) e o controle são partes essenciais da proposta cibercomunista. Para mais informações, recomendamos nosso artigo sobre cibernética e cibercomunismo.

[7] Como menciona Diego Guerrero, este sistema de inventário é “uma forma descentralizada de gerenciamento da demanda e da planificação”, e não simplesmente “um nome para disfarçar uma defesa oculta do mercado” (Guerrer, 2007).

[8] O script específico pode ser encontrado aqui.

[9] Thymos é um antigo conceito grego para espírito ou alma (Prado Cueva. E, 2019).

[10] A crença de que empresas como a Amazon atualmente operariam obedecendo às intuições de um certo senhor careca que foi para o espaço por prazer é, no mínimo, ingênua. Esses gigantes do capitalismo já utilizam ferramentas como essas para planejar sua produção, logística e transporte (Phillips & Rozworski, 2019).


Bibliografia

Cibcom (2022). Matemáticas para planificar una economía.

Cockshott, P. & Cottrell, A. (1993). Hacia un nuevo socialismo.

Guerrero, D. (2007). Valores, precios y mercados en el postcapitalismo.

Hagberg L. & Zachariah D. (2022). Receding Horizon Planning – an Introduction. github.com/lokehagberg/rhp/

Leóntief, W. (1936). Quantitative Input and Output Relations in the Economic Systems of the United States. The Review of Economics and Statistics, 18, 105-125.

Phillips, L. & Rozworski, M. (2019). La República Popular de Walmart.

Polenske, K. R. (1999). Wassily W. Leóntief, 1905–99. Economic Systems Research, 11:4, 341-348.

Prado Cueva, E. (2019). El mito de la igualdad: el fracaso de las utopías ciber-comunistas. El Catoblepas, 188, 10.

Sobre os autores

CibCom

é um grupo de pesquisa interdisciplinar dedicado a explorar as possibilidades da planificação socialista da economia nas condições tecnológicas atuais. Seu objetivo é estabelecer os fundamentos institucionais, econômicos e computacionales necessários para construir un modelo de economia socialista democraticamente planificada, viável e eficiente, inspirado nas ideas de Marx.

Cierre

Arquivado como

Published in Análise, Economia, Política and Tecnologia

DIGITE SEU E-MAIL PARA RECEBER NOSSA NEWSLETTER

2023 © - JacobinBrasil. Desenvolvido & Mantido por PopSolutions.Co
WordPress Appliance - Powered by TurnKey Linux