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Pintura René Magrite

Rumo ao século 22

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Tradução
Lígia Marinho

O século 21 herdou condições do passado que são moldadas por crises que atualizam nossos problemas e criam novas contradições. Na busca de sínteses, nossa estratégia trata de transições – e os prazos que as cercam.

O texto a seguir está na 5ª edição impressa da Jacobin Brasil. Adquira a sua edição avulsa ou assine um de nossos planos!


A questão da estratégia para uma mudança política radical é uma questão que demanda uma visão clara dos antagonismos, das alternativas e dos caminhos para a sua execução. Se reconhecemos que as muitas crises da atualidade são efeitos comuns – e não desvios – do projeto capitalista, para produzir respostas, é necessário nomear o antagonista de uma maneira que as pessoas sejam capazes de identificá-lo como a fonte do problema e fazer oposição a ele. Não é algo fácil, visto que a hegemonia capitalista é também atada à sua habilidade de mascarar a realidade, criar consenso e promover o medo entre quem ousa questionar o que está errado; então, temos que imaginar o que vem em seguida. Se opor a algo sem oferecer uma alternativa que seja tanto atrativa como possível é insuficiente. Se o capitalismo é ruim, o que deveríamos ter no lugar dele? Há muitas opções em discussão, incluindo algumas que são potencialmente piores que o capitalismo na Terra. Se esse sistema destrói o planeta, o que dizer de uma nova era de capitalismo colonial no espaço? Bilionários vêm usando essa ideia para instigar a imaginação e a fé em soluções tecnológicas como uma maneira de alavancar contratos lucrativos e atrair mais investidores, enquanto pesquisadores, cientistas e o movimento ecológico se veem obrigados a afirmar o óbvio para a vida no século 21: não há planeta B. Nossa tarefa, portanto, é mostrar que substituir o capitalismo não é o suficiente, já que substituições podem ser frágeis e temporárias. O que vem a seguir precisa enfrentar as falhas do sistema corrente e ser melhor de muitas maneiras, para que o capitalismo simplesmente deixe de fazer sentido para aqueles que – por equívoco – ainda pensam que esse sistema é necessário para fomentar a produção, a inovação e os empregos. A alternativa é tornar o capitalismo antiquado, inútil e obsoleto.

Enfim, precisamos chegar lá. O problema com a pergunta do “como fazer” é que muitas vezes é percebida como uma simples questão de mecanismo e instrumento que podem ser escolhidos dentre um arsenal pré-estabelecido. Se alguém precisar ir da Cidade do México para Guadalajara, deve escolher entre dirigir, tomar um ônibus, um avião ou até mesmo caminhar. Uma visão puramente instrumental da pergunta “como fazer” despolitiza as condições e consequências dos métodos empregados e nos impede de avaliar continuamente a compatibilidade entre a tática escolhida e a estratégia geral. Nossas ferramentas estão sujeitas às condições políticas, ao tempo e ao ritmo, à disponibilidade da cadeia de suprimentos e de recursos, ao engajamento dos atores, ao conteúdo e à possibilidade de desvio e ajuste. Isso significa que, uma vez que identificamos que o capitalismo é o principal problema e propomos que a melhor alternativa é justamente o socialismo – por sua vez superado pelo comunismo – a forma como fazemos isso não é simplesmente a escolha entre reforma ou revolução, mas essencialmente as condições que devem ser construídas para que um novo poder assuma e seja sustentado. Não podemos apenas desejar que o capitalismo acabe e então declarar a sociedade socialista no dia seguinte.

As condições que herdaremos

Quando Karl Marx escreveu que os seres humanos fazem sua própria história, porém sob condições herdadas do passado, seu ponto principal não era dizer que devemos aceitar as condições que nos restringem, mas que nossa tarefa é construir diferentes condições para herdar no futuro – condições que nos darão melhores chances de implementar elementos de nossa estratégia. Quando propomos que o socialismo é um sistema que nos salvará do capitalismo ao torná-lo obsoleto, devemos saber que isso não é tão simples quanto afirmar a necessidade da revolução socialista hoje porque sem ela não vamos sobreviver como sociedade. Para aqueles que já estão familiarizados com a terrível necessidade da queda do capitalismo, isso nada mais é do que uma obviedade usada para afirmar suas posições radicais. A realidade é que – e é doloroso afirmar – não estamos nem um pouco próximos de levantes revolucionários e do estabelecimento de paradigmas socialistas alternativos em escala global hoje ou num futuro imediato. Dizer isso não é derrotismo anticomunista, mas sim reconhecer as condições concretas que herdamos do nosso passado. Em vez disso, abraçar criticamente nossos fracassos nos leva a enfrentar as contradições temporais da construção da condição socialista em um mundo em rápido aquecimento. Nos faz enfrentar o tempo: tempo que perdemos, tempo que empregamos agora e tempo que simplesmente não temos. Se a revolução é o freio de emergência do trem de alta velocidade que é o Antropoceno – para usar a intervenção de Benjamin – precisamos também de um plano de evacuação que seja tão importante quanto o soar do alarme. A transição ecológica é o modo de adotarmos medidas de segurança para nos prepararmos para o impacto da revolução e nos equipar para desembarcar em terreno desconhecido.

A crise ecológica, mais do que qualquer outra crise que nos afeta hoje, altera radicalmente o nosso senso de urgência, porque acarreta no colapso das condições físicas e materiais que tornam a vida possível, ainda mais a vida sob o socialismo. Essa crise, assim como as outras, é principalmente produzida pelo sistema capitalista. Fatores da Grande Aceleração, desde o aquecimento global à perda de biodiversidade, estão atrelados à insustentabilidade do modo de produção vigente. E esses fatores não podem ser detidos pelas soluções capitalistas, pois, para manter seu ciclo de acumulação, o capital demanda cada vez mais da natureza. Hoje, o capitalismo verde é mais ameaça do que o negacionismo climático padrão. Parece racional reconhecer o consenso científico acerca das mudanças climáticas, no entanto esconder o papel do capitalismo nessa crise também é anticientífico. Sua deturpação das mudanças climáticas como um problema que pode ser manejado sem intervenção severa no modo de produção conduz a falsas soluções e é, em si, um tipo de negacionismo. As soluções arranjadas se dirigem a algumas questões críticas, mas apenas na medida em que são compatíveis com o objetivo final de gerar lucro. Mudar apenas a maneira de se comprar bens não soluciona o problema. Mecanismos de compensação de carbono têm permitido que grandes poluidores sigam poluindo enquanto outras empresas conseguem grandes lucros ao reduzir algumas de suas emissões. Carteiras de investimento bilionárias valorizam métodos de geoengenharia que não são comprovados em grande escala e que podem ter sérias implicações éticas e biológicas. Não se pode simplesmente substituir o que usamos como fonte de energia da indústria e da produção de bens e serviços atual por uma alternativa renovável, porque os recursos da Terra são finitos. É necessário fazer ajustes de quantidade e qualidade, e a distribuição desigual é uma questão.

O capitalismo precisa acabar para que a vida possa continuar; porém, as condições políticas vigentes não apontam para soluções que sejam radicais e rápidas o suficiente para confrontar a crise ecológica com o antídoto perfeito. Nós enfrentamos as ameaças imediatas da reorganização das forças de direita e fascistas – incluindo os ecofascistas – e o crescimento da dominância do capitalismo verde. À medida que nos organizamos para combater essas ameaças, nosso trabalho também é identificar e engajar em possíveis caminhos de ação que possam lidar com distintas coisas ao mesmo tempo.

Um programa de prevenção que pode começar sob o capitalismo, como colocou David Schwartzman, é essencial. Para escapar da colisão do trem antes de termos a chance de fundamentar uma sociedade socialista , o “como fazer” do nosso plano de evacuação envolve implementar ideias, políticas, microssistemas, reformas e outros arranjos sociopolíticos que desaceleram a marcha da crise enquanto criamos as bases para o poder popular que pode superar e dar suporte ao novo sistema. Essa é uma questão de sustentabilidade do tipo radical. Precisamos de uma estratégia que atue em duas marés, assim uma pode dar conta das contradições que a outra enfrenta. A estratégia exige que pensemos em questões de curto, médio e longo prazo simultaneamente, mas com flexibilidade e uma postura reflexiva que reconheça que a história não é uma sequência linear de eventos congelados e que novas contradições surgem à medida que a fazemos acontecer. Estabelecer bases sustentáveis para ações mais radicais no futuro é construir condições que nos levarão a problemas a que ainda não estamos preparados para abordar ou tampouco conscientes deles atualmente. Esses são problemas que, no entanto, desejamos, uma vez que eles só podem se materializar quando os que nos atormentam agora estiverem resolvidos. Se nossa estratégia for bem-sucedida, nossos problemas não dirão respeito apenas a postergar o fim do mundo que já se aproxima, mas, de fato, vão estar relacionados com o que faremos neste planeta pelos séculos que estão por vir nos bilhões de anos que ainda restam.

Quem pode implementar essa estratégia? Somente aqueles cujo real interesse seja preservar as condições para a vida na Terra enquanto fazem dessa vida algo que valha a pena ser vivido, de uma maneira inclusiva e pacífica. As pessoas que precisam reivindicar o tempo que lhes foi tirado pela exploração capitalista com o objetivo de estender o tempo da sociedade humana na Terra. Mesmo nos estágios iniciais, nossa estratégia não está em risco de ser enredada com o capitalismo verde porque o agente de mudança é a maioria da sociedade explorada pelo sistema. São as pessoas da classe trabalhadora, migrantes e refugiados, grupos indígenas, pessoas com deficiência, maiorias racializadas, mulheres e pessoas LGBTI+ que são marginalizadas e que não podem ser absorvidas pelos postos muito limitados que a mobilidade social do capitalismo oferece. Nossa estratégia requer a construção de poder coletivo em arranjos que de fato demonstrem à maioria da classe subalterna que é possível reorganizar a sociedade e que os resultados dessa reestruturação são desejáveis.

Resultados desejáveis estão no cerne de uma estratégia bem-sucedida. A vida precisa melhorar desde o início da implementação, pelos socialistas, de uma estratégia para assegurar o apoio de longo prazo ao horizonte socialista e possibilidade de ruptura, principalmente quando se está sob ameaças externas de repressão, sanções e guerras. Essas ameaças devem ser antecipadas, pois a estratégia desafiará os bolsos da hegemonia capitalista desde o início, alterando a maneira como lidamos com a natureza e criando as condições para uma ação contra-hegemônica organizada o mais próximo possível de uma consciência socialista generalizada. Quanto mais nos tornamos uma ameaça, mais as ameaças contra nós aumentarão. As ameaças não devem, no entanto, ser usadas para justificar mais dificuldades do que o necessário e que dissipam muita energia das áreas que melhoram a vida concreta. Ser atacado limita os caminhos para a ação e faz pressão sobre como tomamos decisões e que planos podemos desenvolver, mas os ataques não podem ser uma desculpa para tomarmos o caminho mais fácil e restringir as liberdades no cerne do socialismo. Nossa estratégia certamente preparará para a guerra, mas a evita construindo uma estrutura para a paz. 

Em suma, nossa estratégia é orientada a uma transição ecológica que tornará possível a transição socialista. Ela transita de uma sociedade profundamente insustentável para uma em que o risco de colapso seja adiado por, ao menos, alguns séculos. Como o colapso planetário é um risco real neste século, como avaliou o Relatório de Avaliação Global sobre a Redução de Risco de Desastres 2022 , a transição ecológica deve ocorrer dentro de um curto limite de tempo, variando de agora até 20 ou 30 anos no futuro. Assumindo que o capitalismo será o sistema dominante nas próximas décadas, a maior parte da transição ecológica acontecerá sob esse sistema. E não será assim porque escolhemos fazê-la nesses marcos, mas sim porque, se ela não for feita imediatamente, não haverá possibilidade nem mesmo de fazê-la sob o socialismo devido ao esgotamento das condições de manutenção da vida. Nós ainda estamos nesse trem, apesar de tudo. É claro que, havendo uma ruptura do capitalismo para o socialismo, aspectos mais radicais da transição ecológica finalmente poderão ser afirmados, realizados, impulsionados e integrados no que será uma transição ecossocialista com diferentes pilares de propriedade e poder. A transição ecológica é a nossa primeira resposta e, se for feita de maneira adequada, nos permitirá implementar os melhores percursos de tratamento de longo prazo. Como as reformas promovidas pelos muitos planos e acordos da transição ecológica não são suficientes para superar de verdade o capitalismo, nossa estratégia exige uma forte construção do movimento que garanta essas reformas, mas também crie as condições para a ruptura. Andre Gorz falou de reformas não-reformistas por causa de seu potencial como “contrapoderes”, o oposto do reformismo que altera o sistema reparando-o. Assim, nossa estratégia socialista requer um período de alinhamento entre organização e um programa forte de transição ecológica enquanto estivermos sob o capitalismo para que os frutos dessa organização possam romper com o sistema para construir um ponto de convergência completa numa sociedade ecológica e socialista.

Na composição da nossa estratégia, duas marés políticas interagem uma na construção da outra. Uma maré carrega a transição mais rápida do ponto A ao ponto B, onde nós compramos o nosso tempo ecológico e oferecemos vislumbres a uma boa vida como e enquanto ainda estivermos sob o capitalismo. A transição ecológica envolve uma combinação de planos e acordos verdes de transição que aproveitam o poder limitado das reformas no princípio, com foco em reformas estruturais que enfrentam crises imediatas, fortalecem a gestão e o domínio público, encorajam a participação política em vários níveis, fazem uso de métodos e propagandas para construir consciência, empoderam organizações socialistas para lidar com problemas dentro de seu espectro de alcance, nacionalizam recursos, constroem infraestrutura que favorece o uso eficiente desses recursos e um modo de vida mais coletivo, alavancam além das fronteiras com uma perspectiva de integração regional, reparação e solidariedade internacional.

A outra maré é formada pela construção do movimento, onde fortalecemos a consciência de classe e os padrões democráticos socialistas que constroem o poder coletivo direcionado a uma ruptura mais radical que visa em definitivo os pilares da propriedade privada, do lucro e da acumulação, no que será a transição do capitalismo ao socialismo. A construção de movimento cria agência para a transição ecológica, mas supera sua temporalidade, haja vista que vai na direção da criação de condições para a tomada e construção do poder socialista. Uma vez sob o ecossocialismo, a construção do movimento é essencial para a consolidação do poder popular, e uma maré envolve a outra, e enquanto isso nossa estratégia continua sendo reavaliada e se ajustando a uma transição para o comunismo. Agora, nos voltamos a concentrar no período de transição ecológica de nossa estratégia, nas próximas duas ou três décadas.

A corrida contra o – e pelo – tempo

A crise ecológica faz soar um alarme: se certas condições ecológicas não forem atendidas, não haverá possibilidade de construirmos uma sociedade socialista, mesmo que a classe trabalhadora prime pelo socialismo. Nossa estratégia se situa no conhecimento e na materialidade do Antropoceno; ela deseja, no entanto, abreviar essa era por meios ecológicos. 

Essa conclusão deve guiar as conversas acerca de um Green New Deal (GND) e suas versões mundo afora. Geralmente, um GND é um pacote de reformas, investimentos e ajustes vinculados à mitigação e adaptação às mudanças climáticas, mas também a outros aspectos da crise ecológica, que devem ser implementados em curtos períodos de tempo. Os GNDs devem fazer parte da nossa estratégia, mas não devem ser a nossa estratégia, pois visam políticas públicas mais diretas e são vulneráveis ​​a mudanças de governo. Além disso, programas de dimensão local desse tipo também precisam ser coordenados através de programas regionais e seguir uma orientação global mais geral. Os debates sobre um Green Deal Global estabelecidos por movimentos sociais e organizações da sociedade civil precisam delinear princípios e oferecer saídas para acordos internacionais e o fortalecimento de alianças. A transição ecológica demanda uma forte ação coordenada para atingir metas de curto e médio prazo, e tais programas oferecem uma grande oportunidade para realizar projetos que podem ser avaliados objetivamente.

Desde que o debate em torno de um Green New Deal ressurgiu nos Estados Unidos, após 2018, diferentes versões dele também foram introduzidas – algumas mais capitalistas, outras mais radicais – em todo o mundo. Independentemente do nome que cada país usa, apresentar programas do tipo GND em nossa estratégia tem vantagem dupla: eles têm mudanças que podem ser implementadas desde já e podem ser ferramentas de mobilização. Às vezes, os políticos e a mídia classificam o GND como um pacote de investimento, mas em nossa estratégia ele é muito mais do que isso. Os pacotes de investimento são importantes, especialmente quando consideramos as enormes mudanças na infraestrutura exigidas pela parte climática da transição. Só a conversão para fontes renováveis de energia ​​gera custos líquidos que ficam entre 30 e 60 trilhões de dólares adicionais, contando de hoje até 2050, a depender do estudo. Tornar habitações mais eficientes e construir novas casas confortáveis ​​e naturalmente climatizadas exigiria outros trilhões de dólares. Mudar a rede de transporte, promover novas tecnologias úteis e cultivar nossos alimentos de maneira eficiente, mas também saudável e sustentável, também exigirá muito investimento.

O setor financeiro atualmente diz que poderia alocar mais de 100 trilhões de dólares em ativos para financiar a corrida para emissões líquidas zero. Mas esse é o modo habitual de operar, uma vez que as estruturas de emissões líquidas zero ainda permitem que o “capital fóssil” ganhe com o sistema e não podem funcionar rápido o suficiente nas próximas três décadas para evitar que ultrapassemos os 2 ºC, muito menos 1,5 ºC. A razão é simples: o investimento é visto de dentro do paradigma capitalista, onde há muito mais diversificação e conversão do que uma verdadeira transição para outra coisa. O raciocínio de que a transição climática pode gerar muitos outros trilhões para o crescimento capitalista atrai investidores e agrada os políticos dispostos a incorporar a agenda climática, mas apenas se puderem ganhar com ela. O mercado financeiro investirá na “neutralidade de carbono” da mesma maneira que avalia ações, e não se ocupa com o grosso das preocupações ecológicas da Grande Aceleração, pois a lógica da acumulação capitalista permanece intocada. Além disso, elementos importantes da transição acabam sendo subestimados quando as propostas do GND chegam a programas políticos gerais, como é o caso da Inflation Reduction Act de 2022 dos Estados Unidos. Quando a política é ditada mais pelo viés do investimento climático do que pelo da justiça climática, ainda há espaço para a luta de esquerda, mas a probabilidade é de que o capital fóssil também estará lutando por sua parcela desse cheque. Devemos travar algumas dessas batalhas para garantir ganhos marginais, mas essa lógica não pode ditar nossa estratégia. 

Em nossa estratégia, os programas GND promovem o investimento com o objetivo de combater múltiplas crises e o combinam com iniciativas que agregam governos, comunidades, movimentos e pequenas empresas para reorganizar aspectos da nossa maneira de produzir, consumir e viver. O foco de um GND pode incidir sobre coisas que podem ser alcançadas rapidamente e, devido à conveniência dessas mudanças, servir como ponto central para reunir mais pessoas que possam ajudar na prestação de contas e nas demandas mais radicais. Onde se oferece garantia de empregos verdes, por exemplo, a mobilização pode garantir que os postos de trabalho criados paguem salários mais justos, ofereçam benefícios, subsidiem treinamento – incluindo mudança curricular para formar novos trabalhadores – e que sejam sindicalizados. Em combinação com essas medidas, mais pressão vinda de baixo também pode levar a um GND que torna a redução da semana de trabalho uma demanda primordial.

A redução da jornada de trabalho a níveis estáveis de produtividade altera a taxa de exploração dos trabalhadores, sendo, assim, uma demanda anticapitalista radical. Com uma longa história de organização, reduções de jornada significativas foram garantidas nos estados capitalistas centrais. Mais recentemente, a Espanha começou a testar a semana de trabalho de quatro dias. Em 2000, a França alterou a jornada de trabalho para 35 horas semanais, e pesquisas indicaram que as pessoas usaram o tempo livre recém-descoberto para ficar com a família, descansar e praticar esportes. Onde as taxas de produtividade já são altas, semanas de trabalho mais curtas podem até significar mais eficiência, o que é desejável em determinados setores, devido ao efeito positivo no bem-estar dos trabalhadores. Mais tempo livre leva a benefícios para a saúde, a menos deslocamentos e abre oportunidades para a organização política – fomentando ambas as marés da nossa estratégia. Além disso, ter mais tempo fora do trabalho também pode contribuir para que as famílias tenham cargas mais equitativas de trabalho de reprodução social e alterar a percepção das pessoas sobre o tempo que se deve gastar com locomoção.

A desaceleração do ritmo de vida tem implicações particularmente interessantes, e que podem combinar com os investimentos do GND em transporte público e infraestrutura ferroviária. Quando as pessoas têm que escolher entre pegar um trem e um avião, consideram o custo, a duração e a conveniência geral. O crescimento das companhias aéreas de baixo custo deixou as viagens mais acessíveis, mas também contribuiu muito para as mudanças climáticas. A abordagem “verde” de algumas dessas companhias aéreas é compensar suas emissões de carbono no mercado ou possibilitar que os clientes comprem suas próprias compensações. Por outro lado, as pesquisas sobre combustíveis alternativos para a aviação têm avançado. As tecnologias de combustível líquido baseadas em energia solar tendem a ser mais eficientes do que os biocombustíveis, mas sua utilização impacta o consumo de água e da rede solar e exigem captura direta de CO2 ou opções de captura e armazenamento de carbono. Isso significa que, por mais que desejemos que certas tecnologias melhorem para que setores da transição energética possam ser simplificados através da conversão direta de combustível fóssil para fontes renováveis, as coisas não são tão simples. Uma coisa é querer fazer a transição do setor aeronáutico, o que implica também mudanças em seu porte, outra é apostar na simples conversão de combustível [comum] em renovável que não leve em conta qualquer outra pressão ecológica associada à cadeia de produção e enorme volume de voos em todo o mundo – especialmente em sociedades mais ricas.

Nossa estratégia deve encorajar a pesquisa e a inovação direcionadas à obtenção de melhores tecnologias de emissão de carbono baixa ou nula, mas precisa reconhecer que o simples avanço tecnológico não resolverá nossos problemas. As considerações da cadeia de suprimentos acerca da mineração nos ajudam a compreender que há limites para a produção e a implementação de tecnologia no setor de transporte. Thea Riofrancos demonstrou como o papel central do lítio nos cenários de energia renovável faz parte de um delicado “nexo de segurança-sustentabilidade” influenciado por expectativas de crescimento que introduzem um capítulo verde na longa história das chamadas “zonas de sacrifício” criadas pelo modelo extrativista – geralmente concentradas no Sul Global ou em territórios racializados no Norte Global. É simplesmente absurdo achar que devemos minerar em mais regiões do mundo a fim de extrair os materiais necessários para produzir 1 bilhão de veículos elétricos de passageiros (VEs) para substituir os que já temos nas estradas. Embora absurda, essa lógica foi completamente normalizada pelos paradigmas atuais de investimento verde, com governos, no Canadá ou na Noruega, optando por dar subsídios a clientes, concessionárias e montadoras para incentivar a venda de VEs de passageiros, em vez de expandir o transporte público tanto em quantidade como e em qualidade.

Nossa estratégia precisa definir as prioridades. Uma maneira de fazer isso é alinhar os interesses das pessoas com a infraestrutura que será fornecida. Se é necessário reduzir os níveis da aviação, como podemos oferecer às pessoas outros meios de transporte de longa distância que serão avaliados positivamente em termos de custo, duração e conveniência? Dê às pessoas mais trens de alta velocidade – a preços baixos, talvez até gratuitos! – em vez de rotas de avião e aproveite as estações localizadas em regiões centrais. O custo de vida e as crises energéticas na Europa em 2022 levaram a Alemanha e a Espanha a experimentar subsídios temporários para trens regionais e para o trânsito local. Ao levar a sério a crise climática, países e regiões podem investir em programas semelhantes ao GND e mudar a maneira como as pessoas usam o transporte. Com a infraestrutura adicional, outros efeitos positivos vêm na esteira, como a redução dos congestionamentos e dos índices de acidentes de carro. Mesmo que um trem de alta velocidade não seja tão rápido quanto um avião, quando desaceleramos o ritmo de vida, permitindo que as pessoas tenham mais tempo longe do trabalho, essa troca pode não ser tão ruim. A conveniência de simplesmente embarcar em um trem ao invés de passar pelo check-in no aeroporto, ou de pegar um ônibus gratuito sem se preocupar com catracas e compra de passagens, contribui com novos comportamentos e angaria o consentimento da população. Quando o capitalismo oferece alguma conveniência, geralmente é às custas dos consumidores ou do meio ambiente. Legumes pré-cortados são convenientes em um mundo onde se tem tempo limitado para tarefas domésticas, mas pagamos mais por eles e temos que lidar com o excesso de embalagens, geralmente de plástico. Nossa estratégia cria outro tipo de conveniência ao fornecer infraestrutura pública verde que torna a vida mais fácil e barata para os trabalhadores e que concilia as necessidades das pessoas e da natureza na transição ecológica. Precisamos mitigar danos e nos adaptar rápido, pois a transição ecológica só vai vencer essa corrida contra o tempo se também criar tempo através da reorganização da produção e de ambientes em que vivemos.

Algumas coisas têm que vir primeiro 

Nossa estratégia também é desigual e combinada. Entendemos que o capitalismo se desenvolveu pelo planeta de forma díspar e que o colonialismo ainda tem papel no avanço industrial e na divisão internacional do trabalho. O subdesenvolvimento do Sul Global é combinado ao avanço do Norte Global. Ao explicar esse fenômeno, o sociólogo brasileiro Florestan Fernandes destaca que a persistência do capitalismo dependente nos países periféricos faz parte de um cálculo capitalista. O desenvolvimento do capitalismo marginal acaba por ser fortemente dissociado das estruturas democráticas e favorece o estabelecimento de autocracias. A intervenção imperialista contribuiu e tirou vantagem do déficit democrático para promover interesses de Estados mais poderosos – promovendo ditaduras se necessário – como tem sido rotina na América Latina, mas também na África e no Oriente Médio.

Essa relação centro-periferia também tem profundas implicações ecológicas. O Climate Action Tracker avalia que, se as políticas atuais forem aplicadas, o mundo caminha para um nível de aquecimento de aproximadamente 2,7 ºC até o final do século. O Glasgow Climate Pact de 2021 falhou novamente em cumprir com as promessas e os cortes mais radicais. Não apenas as políticas atuais estão diluídas como também há lacunas em implementação que levarão a resultados ainda piores e mais desiguais. O Antropoceno é o período da história do planeta profundamente marcado pela sociedade humana – sim – mas de forma assimétrica. Os países mais ricos carregam responsabilidade histórica muito maior pelas mudanças climáticas do que os países menos desenvolvidos. O Our World In Data estima que os Estados Unidos, o Reino Unido e os 27 membros da União Europeia respondem juntos por 47% das emissões globais. E embora as mudanças climáticas afetem todo o planeta, os países mais pobres estão menos adaptados aos efeitos delas.

Em nossa estratégia, os países mais ricos devem arcar com a maior parte dos custos da transição ecológica. É preciso que os programas internos do GND sejam financiados publicamente, e os mais ricos devem ter tributação mais pesada. Uma forte aliança entre as organizações de trabalhadores e o movimento ambientalista deve combater ameaças de demissões, o downsizing e as tentativas de transferir o ônus para os consumidores. E mais, mecanismos internacionais garantirão que os países mais pobres tenham acesso a fundos, quebras de patentes para tecnologias-chave e suporte técnico para que tenham um conjunto próprio de programas na transição ecológica. Não é apenas uma questão de financiamento verde e promessas feitas às Nações Unidas, uma vez que sua natureza voluntária levou a uma entrega abaixo do esperado até agora. Os países ricos prometeram, em Copenhague, destinar 100 bilhões de dólares por ano em financiamento para projetos de mitigação e adaptação climática no Sul Global, mas ficaram aquém em todos os anos, mesmo com a ajuda de financiamento privado. Para piorar, uma soma significativa dos bilhões disponibilizados foi em forma de empréstimos. Japão e França carregam mais do que seu quinhão da promessa, especialmente quando comparados aos Estados Unidos, mas os empréstimos reembolsáveis estavam no centro de sua contribuição. Isso ajuda a explicar o desequilíbrio no financiamento onde as iniciativas de mitigação são privilegiadas sobre projetos de adaptação que não geram dinheiro em troca e só aumentam o cenário de desastre de endividamento que asfixia as economias das nações mais pobres. Em seu discurso de posse, o novo presidente de esquerda da Colômbia, Gustavo Petro, enfatizou como a dívida é um obstáculo à transição no Sul Global.

Autores como Olúfémi O. Táíwò demandam um paradigma de reparação climática e perdão de dívidas que permitirá às nações mais pobres enfrentar o legado negativo da escravidão e da colonização em seu caminho para uma transição ecológica. As reparações pertencem a ambas as vertentes da nossa estratégia, indo além de uma transferência de dinheiro e oferecendo uma estrutura para uma transição justa que politize as condições do presente e do passado. A floresta Amazônica se estende por nove países, e embora esses territórios tenham o direito de melhorar a vida de seus habitantes, eles também compartilham a responsabilidade de cuidar da Amazônia, mas não fazer como os países do Norte Global, que não cuidaram de seus próprios ecossistemas. A mentalidade de que “eles fizeram primeiro, então nós também podemos” que permeia alguns discursos desenvolvimentistas na região é perigosa e tola. As organizações socialistas dos países periféricos devem aprender a exigir reparações, mas a credibilidade dessa ação reside em assumir a responsabilidade por um caminho de desenvolvimento diferente. Nossa estratégia reconhece que os estados do Sul Global têm responsabilidades de caráter ecossistêmico, mas, a menos que os países ricos compensem seus passivos históricos, o resto do mundo não terá capacidade material de fazer a transição.

Ainda hoje, há uma classe de pessoas anti-imperialistas que argumentam que as mudanças climáticas são uma farsa inventada pelos países imperialistas para retardar o desenvolvimento do Sul Global. Embora seja uma posição marginal, diferentes graus dessa afirmação chegam às abordagens de esquerda da crise climática. O tema do petróleo nos dá um bom exemplo. A reserva de petróleo bruto da Venezuela é de cerca de 300 bilhões de barris, a maior do mundo, e é comum dizerem que a soberania do país depende dela. O desenvolvimento e as exportações de petróleo podem garantir grande fluxo de capital estrangeiro que apoie investimentos em serviços públicos e infraestrutura, como se experimentou nos melhores anos da presidência de Hugo Chávez. No entanto, num cenário de capitalismo dependente, a Venezuela não pode se tornar um produtor de petróleo autossuficiente. Faltam a infraestrutura e os recursos subsidiários necessários para o refinamento do petróleo, e o país também é alvo de intervenções estrangeiras que ajudam a direita venezuelana, infringindo a soberania local, e de sanções brutais que desestabilizam a economia e pioram o padrão de vida para criar uma crise permanente. Mas mesmo que os socialistas venezuelanos tivessem tudo o que precisassem para usar todas as suas reservas de petróleo, a tão desejada soberania ainda seria impossível. O nível de emissões tornaria o planeta inabitável, e não há soberania sem vida. A única coisa que restaria seriam forças de eco-apartheid e ecofascistas, alinhadas com corporações, tirando vantagem do sucateamento da Terra e condenando a maioria dos seres humanos a lutar de maneira precária por sua sobrevivência.

Cortar as emissões de combustíveis fósseis em escala global não é uma escolha, mas uma necessidade. Diferentes adaptações devem ser feitas de acordo com os níveis de desenvolvimento, para que os países periféricos não sejam muito penalizados. No entanto, a expansão da produção de combustível venezuelano certamente vai depender das vendas para os mesmos países do Norte Global que devem eliminar gradualmente a dependência energética do petróleo. A necessidade da transição ecológica significa que a Venezuela também não poderia contar com o mercado do Sul Global. A vantagem é que os países que ficaram à margem do desenvolvimento não precisam passar por um estágio linear de maior dependência de petróleo, carvão e gás natural. Dar acesso à eletricidade pela primeira vez para comunidades pobres pode ser um movimento mais limpo, indo direto da completa falta de fornecimento de energia para a implementação de uma rede elétrica renovável de fontes mistas – levando em consideração os impactos ecológicos e comunitários. O estágio de combustível fóssil não é necessário, desde que haja em nossa estratégia uma estrutura de reparações focada na democracia energética. Um país subdesenvolvido não pode planejar sua soberania ao redor dos combustíveis fósseis, pois a posse desse recurso o torna um alvo, seu nível de desenvolvimento no presente não é um simples produto do destino, mas algo mantido pela economia política internacional, e o resto do mundo, incluindo esse mesmo país, têm a necessidade de eliminar gradualmente a dependência de combustíveis fósseis. Um Tratado de Não Proliferação de Combustíveis Fósseis dentro de uma estrutura de transição justa pode ajudar a gerenciar esse processo entre os países.

Fazer o internacionalismo sustentável

Nossa estratégia exige uma reformulação da soberania em termos de sustentabilidade radical. A transição energética por si só nos dá tempo e, se for focada em atender primeiro às necessidades básicas, também contribui para organizar os esforços em torno de serviços públicos, moradia, planejamento comunitário, impacto tecnológico e um paradigma de mineração pós-extrativista. A transição ecológica será diferente em cada país, de acordo com as dívidas históricas, mas deve ser combinada com planejamento comercial e desenvolvimento para melhorar o cuidado para com as responsabilidades ecossistêmicas. A história nos ensinou que os países poderosos não vão submeter voluntariamente seus interesses econômicos a um bem maior. O imperialismo ecológico dos recursos naturais anda de mãos dadas com o imperialismo político-militar e contribui para a extinção e a barbárie. Os programas de transição ecológica requerem a participação dos trabalhadores, para que alinhem seus interesses nas nações mais ricas e nas mais pobres – preenchendo lacunas – e fazendo pressão comum sobre governos e instituições internacionais. O uso de energia na OCDE e nos demais países europeus é quase dez vezes maior do que nos países em desenvolvimento. Apesar de os ajustes na eficiência reduzirem essa lacuna, os padrões de consumo e o estilo de vida das sociedades mais ricas também devem mudar. O mundo desenvolvido também é cheio de desigualdade, e muitos trabalhadores não compartilham do que Ulrich Brand e Markus Wissen chamam de modo de vida imperial. Esse modo de vida exerce grande pressão ecológica sobre o planeta Terra e está ligado ao extrativismo industrial que impacta as comunidades do Norte e transforma regiões inteiras do Sul em zonas de sacrifício. Já que uma demanda desajustada por recursos minerais usados para alimentar o apetite capitalista e sustentar um modo de vida que promete carros grandes, casas grandes, muita carne e viagens aéreas baratas também é problemática, mesmo que alimentada por energias renováveis, nossa estratégia também implica decrescimento desigual e combinado.

O “decrescimento seletivo” diz respeito a setores econômicos, fronteiras e território. Algumas regiões precisarão de um nível muito mais alto de investimento para que as pessoas possam desfrutar de boa alimentação, moradia, transporte e empregos estáveis ​​pela primeira vez. Outras regiões, especialmente em países desenvolvidos, também investirão em setores estratégicos e os desenvolverão, enquanto contam com a redistribuição como um meio para melhorar a vida dos trabalhadores que sofrem com altos custos de vida e empregos ruins por meio de infraestrutura mais inclusiva e conveniente. Isso requer o controle popular dos recursos – um tema atual em México, Bolívia, Chile, Colômbia, entre outros países – e alternativas ao modelo extrativista hegemônico. A luta de classes dentro da política climática se dá, de fato, entre os trabalhadores e o capital, como Matt Huber coloca, mas isso não deve ser antitético ao entendimento de que trabalhadores e capital são organizados de maneiras muitas vezes contraditórias no Norte Global e no Sul Global, conforme argumentam os autores do decrescimento, ecossocialismo e marxistas da Teoria da Dependência. As contradições político-econômicas muitas vezes confundem os interesses dos trabalhadores em diferentes países, mas reconhecê-las adequadamente nos ajuda a identificar onde os interesses de classe coincidem. Nossa estratégia só funcionará se nos dedicarmos também à educação política crítica no ambiente de trabalho e na organização de movimentos, para que a práxis transformadora compense a influência da ideologia capitalista.

É possível reconhecer a existência de um modo de vida imperial bem como a sua distribuição desigual. Às vezes, a imagem de um Norte Global e de um Sul Global acaba atrapalhando, por sugerirem linhas geográficas em vez de padrões históricos de produção e distribuição de recursos, incluindo mão de obra. Os trabalhadores da indústria automotiva na Alemanha e no Brasil vivem realidades diferentes de infraestrutura, salários, direitos e geopolítica. No entanto, em suas respectivas sociedades, eles estão sujeitos a antagonismos de classe semelhantes e enfrentam os mesmos desafios.

A transição ecológica precisa fazer sentido para os trabalhadores em todos os lugares, garantindo uma troca de ideias internacional sobre proporções e qualidade. O imperativo usual para o crescimento econômico nos conduziu a empregos precários e altas taxas de exploração, de modo que uma troca de ideias sobre decrescimento desigual e combinado pode de fato melhorar a demanda por bons empregos verdes que atendam necessidades sociais e o tipo de organização de vida que as comunidades podem desejar se centralizarmos nossa estratégia em estruturas alternativas de suficiência, solidariedade e justiça, como sugerido por Bengi Akbulut.

A classe trabalhadora global terá que ajustar as expectativas à transição. Temos que rejeitar as construções ideológicas de uma vida consumista criadas pelo capitalismo e considerar limites energéticos e materiais em nosso planejamento de uma boa vida. Esses entraves geram conflitos acerca de quem poderia usar certo recurso (e que quantidade poderia usar) – e nem todos eles podem ser resolvidos por incrementos de alta tecnologia. A verdade é que às vezes são as tecnologias mais antigas que podem nos salvar, como mostra a virada para a agroecologia e seu uso mais eficiente do solo e sua contribuição para a redução das emissões. A reforma agrária e um processo justo de demarcação das terras indígenas são pré-condições para que os trabalhadores rurais ganhem com a transição ecológica, e isso ocorrerá através da superação da pobreza e da mudança da forma como alimentamos o mundo. Como não há transição justa sem soberania indígena, nossa compreensão do que vai para onde – sejam turbinas eólicas ou florestas replantadas – requer o aprimoramento da nossa abordagem dos direitos territoriais e da organização da vida. Os trabalhadores urbanos, independentes da região, ganham com isso e devem coordenar a demanda para que a exploração de recursos não crie uma nova zona de sacrifício nos locais onde a regeneração de alimentos e biomas deve ser prioridade. Também devemos ser honestos e deixar claro que muitos dos empregos prometidos na transição são temporários, vinculados à construção de novas infraestruturas. Superar a obsolescência programada também significa ter uma produção mais eficiente, menos substituições e manutenção menos intensiva. É possível converter alguns empregos dos setores sujos para o limpo, porém outros terão que desaparecer completamente, como os da indústria de armas. Sermos assertivos nesse assunto enriquece a maré da organização em sindicatos, associações e movimentos sociais em geral, para que nenhum trabalhador fique para trás. Esses cálculos ocorrerão dentro e além das fronteiras, possivelmente muitas vezes ao dia.

O sucesso de nossa estratégia depende da qualidade da construção do movimento internacionalista e de nossa capacidade de planejamento coordenado. A classe trabalhadora é muito diversa, nela incluímos os trabalhadores industriais, e os sindicatos têm um papel importante a desempenhar. Mas também há trabalho informal. De acordo com a Organização Internacional do Trabalho, havia cerca de 2 bilhões de trabalhadores informais em 2019. Alguns deles correm risco particularmente alto de perda de emprego e problemas de saúde conforme as mudanças climáticas avançam, um exemplo são as pessoas com empregos temporários em fazendas e em atividades de pesca, ou o de 15 a 20 milhões de pessoas que atualmente ganham a vida com reciclagem. Esses empregos também têm caráter climático, e não apenas os empregos em fábricas na produção de painéis solares ou baterias de lítio. As mulheres que fazem o trabalho de cuidado também são fundamentais para esse processo, e não simplesmente por causa do papel estratégico do setor de cuidado para a melhoraria da vida com baixo carbono. As mulheres tendem a ser as principais lideranças na resistência aos empreendimentos do capital fóssil na regiões em que elas vivem, e na demanda por redução da jornada e da dupla jornada de trabalho de seu gênero; elas também podem, por meio do movimento feminista, ajudar a construir pontes entre os interesses dos trabalhadores do Norte e do Sul. A cooperação entre esses setores é importante para uma verdadeira transição internacionalista justa e também pode fortalecer as campanhas para pressionar os governos para termos os programas de que precisamos. Quanto mais bem-sucedidos eles forem, maior a probabilidade de que bilhões de pessoas se juntem não apenas à classe profissional mais ambientalmente consciente e aos militantes engajados, mas também aos movimentos sociais nascidos de zonas de sacrifício que se envolveram nas lutas centenárias pela terra, pela água, pelas florestas e por uma boa vida em todo o mundo. Esse movimento internacionalista tem a classe trabalhadora em sua base, em seu desafio contra o capitalismo, já que ele é a fonte de nossa crise atual, mas esse movimento é repleto das várias identidades marginais, daqueles que têm tudo a perder se os combustíveis fósseis ou o ecofascismo não forem detidos.Por isso, na nossa estratégia, a maré de construção do movimento sempre tratará de questões urgentes relativas à transição ecológica, mas também deve planejar a ruptura, constatando o caráter absolutamente insustentável da locomotiva capitalista. Nossa estratégia exige ação ousada no presente, orientada pela utopia que pode nos guiar deste século para o próximo, visando a construção de uma sociedade justa e desejável. Nossa estratégia é sobre mais do que sobrevivência. É sobre a própria vida, e uma vida melhor. Isso por si só nos separa dos capitalistas e das tragédias que eles constroem. O longo caminho da transição é cheio de contradições e nos mostrará mais desafios do que o movimento socialista já experimentou até hoje. O tempo é essencial, e não podemos mais desperdiçá-lo, pois a nossa meta é conquistar uma sociedade emancipada e preservá-la por séculos.

Sobre os autores

é doutora em sociologia e militante ecossocialista. Escreve e edita para a Jacobin em inglês e é consultora editorial da Jacobin Brasil. Atualmente faz pós-doutorado no Grupo Internacional de Pesquisa sobre Autoritarismo e Contra-Estratégias da Fundação Rosa Luxemburgo e Universidade de Brasília. Criadora de conteúdo do canal de esquerda radical do YouTube Tese Onze.

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Published in Análise, Ecologia, Linha de frente, REVISTA, Revista 5 and Sociologia

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