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Ônibus de Caucaia, no Ceará, que adotou a Tarifa Zero em 2021 / Foto Divulgação.

Qual Tarifa Zero queremos para São Paulo?

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Prefeito Ricardo Nunes lança ideia de olho nas eleições de 2024, mas também porque o modelo de financiamento baseado na receita das catracas não é mais viável. Rede municipal encolheu e Passe Livre pode ser a salvação, mas precisa ser alicerçado em transparência e participação social.

Nas últimas semanas, após Ricardo Nunes (MDB), prefeito de São Paulo, anunciar que solicitou um estudo sobre a viabilidade da Tarifa Zero no transporte público da cidade, declarações de apoio à ideia se multiplicaram. Milton Leite (UNIÃO), presidente da Câmara dos Vereadores e um dos parlamentares municipais mais influentes no setor de transportes, não só garantiu que a proposta saíra do papel, como afirmou que o sucesso da medida garantirá a reeleição de Nunes em 2024 – em uma possível disputa com Guilherme Boulos (PSOL), deputado federal mais votado por São Paulo na eleição de 2022, com mais de um milhão de votos.

O potencial de angariar votos com a abolição das catracas ajuda a entender a nova posição de Nunes e Leite, mas esse não é o único fator a ser considerado. Trata-se de um jogo político complexo que não se limita a São Paulo. Não por acaso, Baleia Rossi (MDB), presidente nacional do MDB, partido que elegeu 784 prefeitos, o maior número entre todas as siglas em 2020, anunciou no embalo das declarações de Nunes a intenção de transformar São Paulo em um “case” e fazer da Tarifa Zero uma “bandeira nacional” do partido. Quem diria em junho de 2013, no auge da mobilização iniciada pelo Movimento Passe Livre (MPL), que o MDB abraçaria a causa com tanto entusiasmo?

O posicionamento acontece em um momento em que as políticas públicas de Tarifa Zero se multiplicam com velocidade. O número de municípios com Passe Livre universal saltou de 30 no final de 2020 para 52 em 2022, um aumento de 73,3%! Consideradas as populações de todas as cidades, o número de pessoas beneficiadas mais do que dobrou no período, de 1 milhão para 2,3 milhões. A projeção é baseada no monitoramento que o autor, junto a um grupo de pesquisadores, mantém de maneira aberta de todas as experiências já identificadas, organizadas em um mapa com os municípios.

 Gráfico elaborado pelo autor a partir de relação com experiências identificadas

A adoção massiva de políticas de Tarifa Zero em 2021 e 2022 está relacionada à dificuldade de se manter o equilíbrio financeiro das redes atuais, e aí está uma das chaves para melhor compreender a posição do prefeito de São Paulo e de outros políticos de tradição conservadora. Muitos municípios, especialmente médios e pequenos, decidiram instituir redes de livre circulação em função da falência pura e simples do modelo baseado na receita obtida com as catracas. A pandemia de Covid-19, que implicou na redução do número de passageiros, foi a gota d´água e muitos sistemas colapsaram, com empresas quebrando e deixando de cumprir contratos por todos os cantos.

Agora há experiências de Tarifa Zero inclusive de cidades maiores, como Caucaia, com 368 mil habitantes. Mesmo capitais têm cogitado adotar a política. São Paulo não é a primeira capital a anunciar estudos para implementação. Em julho, representantes da prefeitura de Cuiabá afirmaram publicamente que a cidade encomendou um levantamento para a Fundação Instituto de Pesquisas Econômicas visando liberar as catracas ainda em 2022.

Colapso e encolhimento do transporte público

A pandemia acelerou uma tendência que, se medidas radicais como a adoção do Passe Livre não forem adotadas, pode ser irreversível. O transporte público está encolhendo no Brasil e dá sinais de colapso – não é exagero falar em colapso, em Teresina o sistema chegou a ser suspenso. Em São Paulo, em dez anos, o número de passageiros transportados por ano caiu de 2.9 bilhões para cerca de 2 bilhões em 2022 (até novembro, 1.8 bilhões haviam sido transportados, o que possibilita a projeção), uma redução de cerca de 30%.

A redução do uso das redes ocorreu no mesmo período em que a população da cidade saltou de 11,8 milhões para 12,3 milhões, um crescimento de 4,2%. Ou seja, a proporção de pessoas andando de ônibus na cidade caiu consideravelmente. A demanda, que em 2020, no auge da crise sanitária, chegou a 1,5 bilhão, voltou a subir, mas ainda dentro de um padrão de queda constante e gradual. A frota contratada também encolheu. Em janeiro de 2013, a cidade contava com 14.917 ônibus. Em novembro de 2022, 13.341.

 A linha de tendência (pontilhada) dos últimos anos permite visualizar com clareza como o transporte coletivo vem encolhendo na cidade, mesmo antes da pandemia. Gráfico elaborado pelo autor a partir de dados da SPTrans.

 O encolhimento não acontece apenas em São Paulo. Em Curitiba (PR), a média mensal de passageiros transportados caiu de 25,2 milhões em 2013 para 11,1 milhões em junho de 2022. Há pouca transparência e os dados são informados pelas empresas, que durante a pandemia basearam-se na queda da demanda para pleitear subsídios públicos, mas, ainda assim, há uma indicação clara de que o sistema encolheu mais do que pela metade em uma década. No mesmo período, a cidade assumiu a liderança no desconfortável ranking de capitais com as passagens mais cara do Brasil. A cobrança subiu de R$ 2,5 em 2012 para R$ 5,5 em 2022. Tudo em um ciclo de aumento de passagens, redução do número de passageiros e novo aumento de passagens para compensar a queda de demanda, rotina que ameaça tornar inviável o transporte público da cidade.

Não faltam exemplos em diferentes regiões. Belo Horizonte, Porto Alegre e Salvador são capitais que também atravessam graves problemas na gestão e manutenção do transporte público. A crise nacional tem a ver com a falta de priorização de investimentos, isso considerando diferentes níveis de administração. Na lógica do rodoviarismo que impera no Brasil, o transporte motorizado individual é sempre favorecido. Seja com gastos vultuosos com obras de infraestrutura, como rodoanéis, alargamento de avenidas, construção de pontes e túneis, seja nas políticas de incentivo à aquisição de carros e motos, que vão de facilitação de financiamento à redução de imposto sobre produtos industrializados (IPI). Mesmo quando há recursos para o transporte coletivo, eles costumam ser destinados a obras e não para financiamento ou gestão.

A diferença de tratamento é simbólica e envolve diferentes esferas. Um passageiro que anda de ônibus sem pagar pode ser preso, conforme o infame Artigo 176 do Código Penal. Um motorista que comete barbaridades no trânsito e simplesmente ignora multas, não. As mesmas pessoas que torcem o nariz quando escutam falar em Passe Livre, tratam com naturalidade estacionamento livre em áreas públicas. O espaço utilizado para parar automóveis poderia ser melhor aproveitado com ciclovias, pistas de caminhada e parquinhos para crianças, só para citar algumas áreas públicas possíveis no espaço hoje reservado para uso privado de motoristas.  

Por fim, não dá para esquecer ao tratar da crise no transporte público do impacto da uberização. Sistemas alternativos de transporte de pessoas e mercadorias estruturados a partir de plataformas representam uma concorrência desleal em que multinacionais se beneficiam da falta de regras e da exploração de trabalho precarizado. 

São Paulo em crise

Em São Paulo, o encolhimento do sistema de ônibus em São Paulo tem a ver também com erros graves de gestão, como a emblemática reestruturação defendida pelo então prefeito João Dória Jr. (PSDB). Em 2017, o mandatário deu início a um processo de corte e encurtamento de linhas, forçando a população a mais baldeações. Tudo a partir de um discurso alicerçado em “eficiência”, em que ônibus vazios eram considerados pouco “produtivos”.

O cálculo de remuneração das empresas, até hoje baseado em passageiros transportados e não em quilômetro rodado, é parte estrutural do problema e também tem relação direta com a gente andar espremido igual sardinha em lata todo dia. O equilíbrio financeiro é tão delicado que, quando a demanda diminuiu durante a pandemia, mesmo com a recomendação de distanciamento social para salvar vidas, as empresas reduziram a frota em circulação!

A crise só não é maior na cidade porque, desde a primeira tentativa de implementação da Tarifa Zero na cidade na década de 1990, durante a gestão da prefeita Luiza Erundina (ex-PT, hoje PSOL), a cidade subsidia parte do sistema. São Paulo é uma das poucas capitais que investe recursos públicos com regularidade no financiamento das redes. Se a arrecadação dependesse somente da receita das catracas, o preço das passagens seria ainda maior. O equilíbrio, porém, é frágil e, mesmo com os subsídios, o modelo tende a desmoronar com a queda de demanda. É com essa pressão que Ricardo Nunes (MDB) está lidando.

Não dá mais para buscar soluções mágicas. A prefeitura já tentou reduzir a evasão aumentando a fiscalização e controle. Os ônibus da cidade agora contam até com câmeras com reconhecimento facial (o que tem um custo, registre-se) para evitar fraudes e, ainda assim, as contas não fecham. Em um esforço para fazer funcionar o que não funciona, o ex-prefeito Bruno Covas (PSDB) chegou a reduzir em uma malandragem legislativa a idade mínima para terceira idade usar ônibus sem pagar, como se os velhinhos e velhinhas fossem os responsáveis pelo desequilíbrio financeiro. A decisão foi revertida na Justiça.

Mesmo as empresas já se tocaram que o modelo baseado total ou parcialmente nas receitas de catraca é cada vez mais insustentável. Em 2020, Francisco Christovam, hoje presidente da Associação Nacional de Empresas de Transportes Urbanos – NTU, já defendia que a pauta fosse considerada: “É bem verdade que o chamado ‘novo normal’ deverá estabelecer novos parâmetros e novos procedimentos para o período pós-pandemia e exigirá, de todos os agentes envolvidos na prestação dos serviços de transporte coletivo, uma nova postura, um novo posicionamento e uma revisão completa das práticas e dos métodos até hoje observados. (…) Por isso mesmo, uma parcela significativa das empresas operadoras, cuja arrecadação depende quase que exclusivamente do pagamento de tarifas, está propondo aos órgãos contratantes, leia-se Poder Concedente, uma mudança radical na fórmula de remuneração”, escreveu em artigo publicado no Diário do Transporte, para concluir: “A proposta da adoção da ‘tarifa zero’ ou mesmo de uma tarifa a valor reduzido não é algo que deva ser, a priori, descartado ou desconsiderado. Seguindo o exemplo do que acontece nas grandes cidades do mundo, que subsidiam parte expressiva do custo da produção dos serviços de transporte público, diminuir o custo dos deslocamentos da população pode significar uma demonstração tácita da prevalência do transporte coletivo sobre o individual e de uma visão avançada de gestão e de governança públicas”.

Assim, existe uma janela de oportunidade muito concreta para a implementação da Tarifa Zero, com dimensões políticas e econômicas favoráveis. A proposta tem defensores a esquerda e a direita, e até mesmo no Governo Federal, como o ex-secretário municipal de Transportes de São Paulo, Jilmar Tatto (PT) levantando a bandeira na equipe de transição do presidente Luiz Inácio Lula da Silva (PT). 

Qual Tarifa Zero?

Se o cenário é favorável e existe efetivamente a possibilidade de a pauta avançar, é importante pensar em que tipo de Tarifa Zero queremos. Abolir as cobranças por si só já teria um efeito simbólico e um potencial de transformação incrível, é verdade. Mas será que é o suficiente?

Será que basta alternar a fonte de receitas e continuar com o mesmo modelo de funcionamento, garantindo uma fonte mais estável para empresas sem nenhuma contrapartida ou transparência? Será que não daria para aproveitar o momento e reestruturar as redes, envolvendo a população em conselhos e audiências públicas para aprimorar o planejamento, gestão e administração?

E os trabalhadores? É bem verdade que em parte da cidade de São Paulo gradualmente os cobradores foram substituídos pelas tais câmeras eletrônicas, mas a maioria dos ônibus ainda têm catracas e pessoas que fazem o sistema funcionar. Tais trabalhadores devem ter planos de transição garantidos, seja para ampliar a operação do sistema frente ao inevitável aumento de demanda, seja em funções de fiscalização e operação. Não dá para simplesmente fechar postos de trabalho sem considerar os profissionais que sempre atenderam a população.

Sem ampliação das linhas e do atendimento existente, sem transparência e contrapartidas com regras claras, sem cuidado com os trabalhadores, existe um risco grande de a Tarifa Zero terminar tão rapidamente quanto começou. A oportunidade é incrível, mas é preciso mobilização e pressão para que a proposta não seja simplesmente queimada ou transforme-se em um meio de sustentação para empresários sem contrapartida ou transparência. Neste sentido, não custa lembrar que, em poucos meses, agora em 2023, as Jornadas de Junho, maior mobilização pelo Tarifa Zero na história, completam dez anos. 

Futuros, tecnologias e justiça social

No seu livro Quatro Futuros, Peter Frase, editor da versão norte-americana da Jacobin, explora com habilidade utopias e distopias possíveis. O livro é uma delícia, com referências de literatura, música e cinema, na composição de quatro futuros possíveis. Ele propõe um exercício de imaginação baseado no futuro do trabalho, em novas formas de organização social e no possível esgotamento de recursos naturais. Essas questões são chaves para pensar também sobre Tarifa Zero, mobilidade e o tipo de sociedade que queremos construir.

Porque garantir sistemas de mobilidade livres e acessíveis têm tudo a ver com garantir acesso a oportunidades e direitos para todas as pessoas. O “poder democrático de um mundo sem catracas” não pode ser ignorado, como bem pontua Matheus Gomes (PSOL), deputado estadual mais votado de Porto Alegre, em seu artigo a importância do passe livre na derrota do bolsonarismo. Tal perspectiva encontra respaldo na Constituição Federal. Desde 2015, graças a uma Emenda Constitucional proposta pela deputada federal Luiza Erundina (PSOL), o transporte passou a ser um direito social previsto no Artigo 6 do texto.

Falta regulamentar tal direito e está em curso a formação de uma coalizão de organizações, movimentos sociais e gente comprometida com o direito à mobilidade. Tal frente pretende pressionar pela criação de um Sistema Único de Mobilidade, que, tal qual o Sistema Único de Saúde (SUS), seja acessível, livre e universal. Ou seja, baseado em Tarifa Zero, sem cobranças e verdadeiramente democrático. Para consolidar tal proposta, precisaremos de empenho dos governos municipais e estaduais, mas também do Governo Federal.  

Em contraposição a uma sociedade cada vez mais distópica, com motoristas de uber exaustos de tanto trabalhar e motoqueiros cada vez mais acelerados para entregar o máximo de fast food possível em prazos cada vez mais curtos, atropelando regras de trânsito e arriscando a própria vida, melhor pensar em um mundo em que deslocamentos de pessoas e mercadorias aconteçam de um jeito mais equilíbrado e justo. Em contraposição à ideia de Mobilidade como Serviço – ou Mobility as a Sevice, MaaS, como se diz no exterior – é preciso pensar em Mobilidade como Direito, um direito fundamental. 

Em vez de solucionismo tecnológico e soluções à Elon Musk, com carros autônomos e outras falsas promessas, melhor pensar em soluções reais e concretas. A Tarifa Zero pode e deve ser pensada como uma tecnologia social, e pode ser estrutural em qualquer plano de transição social e ecológica justa. Não basta substituir a fonte de energia ou inventar soluções para poder seguir desperdiçando combustível loucamente com carros gigantes e pesados, sob risco de acabarmos presos em congestionamentos gigantes de carros elétricos – carros movidos com baterias que, não custa lembrar, também têm um custo ambiental. 

Melhor pensar em utilizar combustível de maneira mais eficiente e isso significa, necessariamente, apostar em transporte coletivo. Tem melhor caminho para isso do que apostar na Tarifa Zero? A política pode até não se concretizar em São Paulo, ou mesmo acabar implementada de maneira torta, sem participação popular ou transparência, mas, ainda assim, o fato de o prefeito da cidade mais populosa da América Latina (12,3 milhões de habitantes) cogitar a possibilidade já é por si só transformador. Porque podemos e devemos sonhar com outros futuros possíveis.

Sobre os autores

é jornalista e autor do livro "Passe Livre – As possibilidades da tarifa zero contra a distopia da uberização" (Autonomia Literária, 2019).

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Published in Análise, Cidades and Política

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