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Fotografia do Brasil de Fato.

(Des)obediência evangélica

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Na práxis político-religiosa dos evangélicos conservadores e de extrema-direita, os extremos se tocam. Por princípio, toda desobediência é essencialmente anárquica, e toda obediência — completa, divina, inalcançável — é essencialmente evangélica. 

Segundo o Primeiro Livro de Samuel, Deus, “Senhor dos Exércitos”, torna Saul rei e lhe ordena de forma peremptória: “Vai, pois, agora e fere a Amaleque; e destrói totalmente a tudo o que tiver, e não lhe perdoes; porém matarás desde o homem até à mulher, desde os meninos até aos de peito, desde os bois até às ovelhas, e desde os camelos até aos jumentos” (1 Samuel 15:3).

Durante e após a batalha, contudo, Saul obedece a Deus apenas parcialmente. Não só o rei não mata a Agague, rei dos amalequitas, como ainda reserva os melhores animais de Amaleque para sacrifício divino. Frente à tal desobediência, Deus expressa a Samuel seu arrependimento em ter tornado Saul rei. Porque é a obediência à sua palavra, e não sacrifícios, Samuel lembra a Saul, que causa prazer ao Senhor; “porque a rebelião é como o pecado de feitiçaria” (1 Samuel 15:23). “Porquanto rejeitaste a palavra do Senhor”, Samuel assevera, “já te rejeitou o Senhor, para que não sejas rei sobre Israel” (1 Samuel 15:26).

Nos últimos anos, tal episódio do Antigo Testamento desempenha um papel fundamental no pensamento de vários grupos evangélicos no Brasil. “Toda obediência parcial é desobediência completa” tem se tornado a regra de vida de muitos crentes, reiterada nos sermões dos pastores e nos discursos dos missionários.

Ela exige, na maior parte dos casos, uma obediência integral, plena, sem falhas à palavra divina e ao texto sagrado, tais como interpretados pelos pastores de Deus na terra frente aos seus rebanhos. A obediência parcial revela ao Senhor que o crente se desviou do caminho da Salvação e se enveredou pelo caminho do pecado.

Como diz John Fullerton MacArthur, pastor fundamentalista estadunidense e um dos principais propagadores dessa interpretação do Primeiro Livro de Samuel, “não podemos obedecer parcialmente ou ser indiferentes quando procuramos eliminar o pecado da nossa vida. Não é possível parar enquanto a tarefa estiver incompleta. Os pecados, do mesmo modo que os amalequitas, encontram sempre um jeito de escapar da matança, gerando, revivendo, reagrupando-se e lançando novos e inesperados ataques em nossas áreas mais vulneráveis”.

Toda verdadeira obediência é, desse ponto de vista, necessariamente completa.

Porque é dever dos crentes obedecer completamente à palavra do Senhor, é inevitável que haja momentos em que a obediência a Deus e à sua Igreja se manifeste como desobediência ao Estado e ao seu governo. Não se trata, sem sombra de dúvida, de um fenômeno novo: mas de um fato que caracteriza sociedades plurais, em que os indivíduos se veem com frequência dilacerados por conflitos de lealdade — e que, quando se trata de religião, como se costuma dizer, os fiéis se encontram volta e meia entre a cruz e a espada.

Tal interpretação evangélica do Primeiro Livro de Samuel é, nesse sentido, familiarmente política: ela formula com precisão um dos princípios fundamentais da doutrina moderna da soberania política, que podemos encontrar, por exemplo, no trabalho de filósofos como Thomas Hobbes. É necessária uma soberania quase absoluta, Hobbes insiste no Leviatã (1651), para podermos sair do estado de natureza, em que predomina a “guerra de todos contra todos”. Toda obediência parcial ao soberano coloca em jogo, nesse sentido, a própria ideia de soberania.

Para emprestar uma metáfora de Hélio Ricardo do Couto Alves, é como se o sistema de normas, leis e regras, representado na filosofia de Hobbes pela figura do monstro bíblico do Leviatã, não passasse na prática política de uma teia frágil, em que a menor ruptura representaria potencialmente a ruína do sistema inteiro.

Para além da familiaridade, contudo, tal retorno ao Primeiro Livro de Samuel dá forma, de maneira provocadora — e, pode-se dizer, com razão, perigosa para o estado de direito —, a uma concepção de resistência política muitas vezes ignorada pela esquerda. Porque entre a parcialidade e a completude, a obediência evangélica é desobediência política na aparente pequeneza do cotidiano.

Frequentemente ínfima, mínima, desapercebida, confessada no segredo da oração, nos sussurros entre os fiéis e na reserva do diálogo pastoral, a obediência parcial sabota a soberania do Estado em nome da soberania divina.

Porque obediência parcial, a Deus ou ao Leviatã, é desobediência completa. Na práxis político-religiosa dos evangélicos conservadores e de extrema-direita, os extremos se tocam. Por princípio, toda desobediência é essencialmente anárquica, e toda obediência — completa, divina, inalcançável — é essencialmente evangélica. 

Sobre os autores

é escritor e doutorando em filosofia na Universidade Paris 1 Panthéon-Sorbonne. Seu trabalho já foi publicado pelo Washington Post, World Politics Review, The Philosopher, entre outras revistas e jornais.

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Published in Análise, Política and Sociologia

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