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Foto: Detalhe da obra Torre Harmônica, de Daniel Martin Diaz.

Marx e o capital como uma divindade

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Tradução
Gabriel Carvalho

Marx descreve o capital como uma entidade - um ser com uma mente própria, operando independente de nossa vontade, uma cognição alienígena que nos controla -, chegando a chamá-lo de “deus real”. E se essa proposição não for tão absurda quanto pode parecer de imediato?

Trascrição de palestra publicada originalmente no blog Dark Marxism. O texto abaixo é uma versão revisada da tradução publicada originalmente no blog Realismo Marxista.


Há um aspecto específico da teoria de Marx sobre o capitalismo que creio não ser suficientemente enfatizada. É a visão de Marx de que o capital é de fato uma entidade – um ser, com uma mente própria, que opera independente de nós.

E, é claro, quando afirmada de forma tão direta, essa proposição soa absurda. Como uma grande soma de dinheiro usado para gerar lucros poderia ter uma mente própria? Isso não faz nenhum sentido.

Meu objetivo aqui é explicar precisamente porque essa proposição não é absurda, que ela de fato articula a natureza essencial do capital, e que ver o capital como uma entidade é necessário para compreender plenamente a realidade social em que nos encontramos.

A entidade alienígena de Marx

Marx via o capitalismo como uma formação social semiconsciente submissa a leis econômicas objetivas que ninguém controla de fato. Além disso, Marx repetidamente afirma que o capitalismo reproduz a mistificação religiosa que encontramos em estágios históricos anteriores, mas de novas formas – como no fetiche da mercadoria. Então, é bastante típico de Marx empregar metáforas religiosas ao discutir o capitalismo.

Mas o que escreveu Marx em 1844, ao comentar James Mill, nos diz algo mais. Depois de sua típica pontuação de que a essência do dinheiro é uma forma específica de prática social – ao invés de uma propriedade de uma coisa material, como o ouro – ele então diz que nossa prática social se tornou uma coisa material, independente – na prática uma entidade, um “Deus real” – que tem poderes causais reais. Além disso, afirma que nós somos escravos desse deus, e que seu culto se tornou um fim em si mesmo.

A essência do dinheiro […] que é a atividade mediadora ou movimento, o ato humano, social pelo qual os produtos do homem se complementam mutuamente, é estranhada do homem e se torna atributo do dinheiro, uma coisa material externa ao homem. Uma vez que o homem aliena essa atividade mediadora em si, ele é ativo aqui apenas como homem que se perdeu e que está desumanizado; a própria relação entre as coisas, a operação do homem sobre elas, se torna a operação de uma entidade externa e acima do homem. Submetido a esse mediador alienígena – invés do próprio homem ser mediador para o homem – ele considera sua vontade, sua atividade e sua relação com outros homens como sendo uma força independente dele e dos outros. Sua escravidão, portanto, atinge um pico. Claramente esse mediador agora torna-se um Deus real, pois o mediador é o poder real sobre aquilo que ele media para mim. Seu culto se torna um fim em si mesmo. (Manuscritos Econômico-Filosóficos de 1844)

E nós devemos enfatizar que Marx fala de um deus “real”, e não de um deus imaginário. Portanto, Marx não está falando de uma mera adoração ideológica e idólatra do livre empreendimento ou do mercado, mas de uma verdadeira subordinação material a uma entidade realmente existente.

Ciência ou metáfora?

Não se trata apenas do fetiche da mercadoria, mas de um verdadeiro pesadelo, digno de Lovecraft.

Mas certamente isso não passa de uma hipérbole, né? Será que as palavras de Marx sobre a produção de mercadorias manifestando (ou invocando) uma “entidade” que é um “deus real” com “poderes reais”, devem ser uma metáfora poética, buscando dar impacto dramático ao invés de representar precisão científica?

Estamos bem inclinados a interpretar Marx metaforicamente, ao invés de literalmente, pois nossa cultura comercial moderna é bastante secular, e nós a vivemos no dia-a-dia. A Economia, na maneira como nela acreditamos, é um empreendimento fundamentalmente profano, não sagrado. A atividade comercial busca o sucesso mundial, e não a iluminação espiritual; e o sucesso depende, em última instância, de um domínio do mundo social e material, que requer indústria, experimentação e razão – e não a adoração, subordinação e fé em seres superiores. O capitalismo abraça a racionalidade científica e o progresso tecnológico, e com alegria se desvinculou das antigas crenças sobre deuses onipotentes.

Além disso, muitos de nós, espero, temos um olhar obstinadamente científico. E, portanto, devemos ser imediatamente céticos a respeito de afirmações sobre entidades misteriosas que existem “externamente e acima dos homens”.

Então, essa é a questão que quero levantar: o “Deus real” de Marx é “realmente real”? Trata-se de uma entidade que realmente existe? Ou é uma mera metáfora, que serve pra ilustrar, ou dramatizar, algumas propriedades da realidade social? Em que medida devemos levar Marx a sério?

Será que estamos realmente adorando cegamente um deus alienígena que nos controla?

Para responder essa questão, preciso revisitar alguns aspectos centrais do pensamento de Marx, especificamente sua teoria do valor econômico, mas a partir de uma nova perspectiva, a da teoria do controle – e por “controle”, me refiro à teoria científica e matemática dos sistemas de controle. Essa nova perspectiva nos ajudará a interpretar o que Marx quer dizer com “Deus real”.

A afinidade de todas as coisas

Todos nós sabemos que partes da realidade podem representar ou medir outras partes da realidade. Uma régua mede o comprimento, um termômetro mede temperaturas e por aí vai. Criamos essas ferramentas de medida com um propósito definido.

No entanto, o significado do dinheiro, o que ele pode significar ou representar, não é tão nítido. Embora o dinheiro tenha aparecido há mais de dois mil anos, aquilo que ele pode representar como um símbolo permanece objeto de profunda controvérsia.

Pra ser mais claro, por “dinheiro”, não me refiro às moedas e notas físicas, mas ao invés disso, às quantidades numéricas que vemos estampadas em moedas ou impressas nas notas, ou armazenadas em bits nos computadores, e assim por diante. Pra ser mais preciso, deveria dizer “unidades de contagem” ou “unidade contábil”, mas dizer “dinheiro” é mais simples, desde de que deixemos claro a que nos referimos.

Marx aborda o significado do dinheiro em seus (reconhecidamente difíceis) capítulos de abertura do primeiro volume d’O Capital. Ele aponta que a troca de mercadorias no mercado implica na existência de algo que confere igualdade ou equivalência entre elas. Por exemplo, se eu vendo 20 metros de linho por 10 libras, e depois gasto minhas 10 libras num casaco novo, então, indiretamente, 20 metros de linho se tornaram iguais a um casaco, pelo ato da troca.

Se os preços do mercado fossem inteiramente aleatórios, não haveria nada mais a dizer pois essa equivalência seria acidental. Contudo, embora os preços flutuem, eles não são aleatórios. Há um forte sinal por entre os ruídos. Tipicamente, você não consegue vender uma caneta e comprar um avião; e não pode trabalhar por um dia e depois usar sua diária para comprar uma mansão. Há exceções, mas as exceções provam a regra.

Portanto, durante qualquer período de tempo, há preços de mercado bem estabelecidos e definidos que determinam as proporções nas quais as mercadorias podem ser trocadas, isto é, igualadas entre si. E todas essas trocas são facilitadas, parafraseando Marx, por um “mediador alienígena”, que chamamos de dinheiro.

“A magia e a necromancia” das mercadorias

Um rápido mergulho em qualquer manual antropológico logo revela que os seres humanos acolhem as mais diversas e extraordinárias crenças sobre como o mundo funciona e sobre como deveríamos conduzir nossas vidas diárias. O que algumas culturas consideram normal, outras poderiam considerar estranho ou bizarro.

Raramente contemplamos nossa própria cultura com um olhar antropológico. É difícil fazer isso. Exige que nos retiremos de nossa estrutura conceitual, e que passemos a olhar para o ordinário e para o já aceito como sendo incomum e questionável.

Portanto, tomemos um momento para ver o quão fantástica é a troca de mercadorias.

Apenas ocultistas dedicados se atreveriam a afirmar que tudo que vemos ao nosso redor, todas as coisas e atividades no mundo, são – apesar das aparências – todas uma mesma coisa. Que 1kg de caviar é “o mesmo” que mil pessoas diferentes clicando no mesmo anúncio da internet; que ser palhaço numa festa infantil é “o mesmo” que 200 balas de munição de espingarda; ou que um mês de tempo de processamento numa máquina de alta potência na nuvem é “o mesmo” que uma tonelada de batatas. Apenas adeptos altamente treinados poderiam começar a ver a verdade de afinidades mágicas tão contraintuitivas.

Não obstante, nós mais do que enxergamos a verdade dessas afirmações – nós, aberta e regularmente, a alcançamos. Nós manifestamos essas afinidades mágicas diariamente. Tratamos quantidades de peixes e ovos, de atenção humana, performances de palhaços, balas, tempo de processamento, batatas, e um desconcertante número de outras coisas como sendo “o mesmo” – pois, no mercado, elas podem muito bem ser trocadas umas pelas outras, através do “mediador alienígena” que chamamos de dinheiro.

Tradições mágicas, de forma bastante tranquila, propõem a existência de correspondências entre planetas, minerais e o destino humano. No entanto, as operações mágicas do nosso mundo comercial moderno – onde cada coisa, cada atividade, e até mesmo cada evento futuro é reduzido, de forma bem sucedida, a quantidades comparáveis dessa substância que chamamos de “dinheiro” – ultrapassam irresistivelmente, tanto em escala, quanto em ambição, as mais delirantes fantasias dos grimórios medievais. As trocas no mercado alcançam uma afinidade ou semelhança universal entre todas as coisas sob o sol.

É por essas razões que Marx escreve a respeito do “mistério das mercadorias” com sua “magia e necromancia”.

Os mistérios econômicos

Sociedades de mercado alcançam uma abstração conceitual titânica: cada coisa que trocamos entre nós é estampada com uma única propriedade quantitativa que nós chamamos de valor de troca. Mas, de forma misteriosa, ninguém, nenhuma consciência, é responsável por manter tal abstração.

Marx escreveu: “uma mercadoria aparece à primeira vista como algo extremamente óbvio, uma coisa trivial. Mas sua análise revela que ela é uma coisa muito estranha, abundante de sutilezas metafísicas e teológicas”. (Marx, O Capital, livro 1).

Então temos dois mistérios econômicos: uma abstração social onipresente sem qualquer conteúdo óbvio, e uma abstração sem um “abstrator”, alguém que realize a abstração.

Para decidir se o “Deus real” de Marx é verdadeiro ou uma metáfora, precisamos nos aprofundar sobre o “mediador alienígena” que é o dinheiro, sobre aquilo que o valor de troca representa e sobre o que mantém a abstração, se é que alguma coisa o faz.

O conteúdo do valor ou trabalho abstrato

Comecemos pelo primeiro mistério: o que é a abstração do valor de troca? O que essas quantidades de dinheiro realmente denotam?

Marx sustenta que o valor de troca se refere uma propriedade comum, especial, compartilhada por todas as mercadorias – o fato de que são produtos do trabalho. Portanto, caviar e cliques são o mesmo porque, para que possam ser manifestadas como mercadorias no mercado, é necessário o sacrifício do trabalho de alguém.

Penso que o argumento de Marx – para a proposição de que a propriedade especial em comum compartilhada por todas as mercadorias é o trabalho – é insatisfatório. Penso que a conclusão de Marx está correta, mas que sua argumentação para chegar a ela, não. Porém, como não quero pegar uma tangente nesse debate, vamos simplesmente aceitar esse argumento como dado, por enquanto.

Marx, portanto, diz que a propriedade comum não pode ser tipos específicos de trabalho – pois pescar caviar, ou escrever programas de anúncios digitais, ou fazer performances de palhaço, ou fabricar munição – são atividades muito diferentes.

O ato da troca abstrai as peculiaridades individuais de diferentes atividades de trabalho, deixando somente aquilo que é comum a todas elas, aquilo que Marx chama de “trabalho humano em abstrato”, ou trabalho abstrato. As mercadorias, de acordo com Marx, tem valor econômico “apenas porque o trabalho humano em abstrato se encontra incorporado ou materializado nelas”.

Temos de ser cuidadosos com o termo “incorporado”. Marx não quer dizer literalmente que o trabalho abstrato se torna algo inerente ao corpo material da mercadoria. O trabalho abstrato não é uma propriedade física de uma coisa. O que ele quer dizer é que uma fração definida do total de tempo de trabalho da sociedade deve ser usado, ou despendido, para se produzir a mercadoria e trazê-la ao mercado.

Assim, o trabalho abstrato não é trabalho concreto, não é um tipo específico de atividade laboral, mas outra coisa, algo mais profundo e mais geral. Como Marx afirma, o trabalho abstrato tem “o caráter de força de trabalho média da sociedade”. Portanto, uma boa primeira aproximação é pensar que o trabalho abstrato denota as forças causais do trabalhador típico ou médio. Não é exatamente o correto, mas por enquanto, basta.

Então, de acordo com Marx, a abstração titânica alcançada pela troca de mercadorias se refere ao conteúdo específico, que é uma propriedade do mundo material, que ele chama de trabalho abstrato.

Como medimos o trabalho abstrato?

Marx, então, imediatamente faz a pergunta óbvia: “como, então, a magnitude desse valor é medida?”, a qual ele responde, de uma forma aparentemente direta, que ela é medida “pela sua duração, e o tempo de trabalho, por sua vez, encontra seu padrão em semanas, dias e horas”. Então estamos falando de unidades de tempo.

Podemos supor, portanto, que podemos imediatamente pegar nossos relógios e começar a medir a quantidade de tempo que as pessoas gastam no trabalho e depois correlacionar nossas medidas com os preços que observamos no mercado. Pois se os preços realmente representarem o tempo de trabalho, então deveríamos, em princípio, ser capazes de verificar essa afirmação cientificamente.

Mas isso seria muito precipitado. Antes que possamos sequer considerar verificar empiricamente a teoria do valor de Marx, precisamos de mais nitidez a respeito do que ela de fato representa.

Não tenho certeza do quão deliberado é isso, especialmente lendo Marx traduzido, mas vale notar que Marx não pergunta “como devemos medir as quantidades de trabalho abstrato?”, e nem a responde dizendo que “podemos medi-lo pela sua duração”.

E isso por que não somos nós que medimos o trabalho abstrato – é outra coisa que o mede.

Essa propriedade da teoria de Marx – de que o dinheiro se refere ao tempo de trabalho em virtude de nossa atividade coletiva, social e independente do que pensamos dela – é radicalmente diferente da economia política clássica de sua época e também da teoria econômica moderna.

A abstração não é nossa, pois não é a nossa cognição quem opera essa abstração. Não somos nós os abstratores. O misterioso abstrator, pelo contrário, toma as medidas de tempo de trabalho e conecta a forma do valor, que é o dinheiro, ao seu conteúdo, que é o trabalho abstrato.

Então, como cientistas, nossa primeira tarefa não é começar a medir o tempo de trabalho. É compreender o que é o abstrator e como ele conecta sua abstração ao seu mundo. Precisamos de uma teoria sobre essa entidade abstratora e seus poderes, antes de embarcarmos na verificação empírica.

Quem ou o que é o abstrator?

Então temos uma resposta parcial ao primeiro mistério econômico. A abstração do valor de troca – ou de maneira mais simples, o dinheiro – representa o “trabalho abstrato”. Então, nos voltemos ao segundo mistério: quem opera a abstração? Quem ou o que é o abstrator misterioso?

De fato, Marx já nos disse quem ele é. Às vezes, os mistérios se escondem à plena vista. A grande pista é a escolha de Marx para o título da sua obra magna: o abstrator é aquilo que Marx chama de “capital”.

Mas o termo “capital” pode enganar. Em primeiro lugar, nos faz pensar sobre largas somas de dinheiro – uma soma de capital. Mas o capital é muito mais que isso. E, em segundo lugar, a teoria econômica moderna reduziu o termo “capital” a uma descrição vaga de contagem, um termo que mistura, de forma confusa, equipamentos de capital com grandes somas de dinheiro.

Mas “capital”, para Marx, é, em primeiro lugar e acima de tudo, uma prática social. “Capital” denota uma coleção de atividades que certas pessoas praticam regularmente, embutidas no interior de um sistema de direitos de propriedade, contratos e poder coercitivo. O capital é um circuito, onde uma soma inicial de capital é “investida” na produção e, então, tipicamente retorna com um incremento de lucro. O capital expande a si mesmo, sempre que pode. Esse circuito é mediado não apenas pelo dinheiro, mas também pela produção econômica em si, inclusive pela disciplina e exploração dos trabalhadores.

A linguagem padrão de Marx – de capital, relações sociais de produção, circuitos de acumulação, etc. – não evoca totalmente o que de fato acontece, e penso que é por isso que ele se vale tantas vezes da linguagem religiosa.

Então, ao invés de dizer “capital”, eu também direi “o controlador”. Pois o capital é um sistema de controle, não meramente no sentido político, mas no sentido mais profundo e cientificamente importante de ser um sistema de controle de retroalimentação negativa. O capital é literalmente um controlador. Então, se o capital é um controlador, como ele funciona, e o que ele controla?

Sistemas de controle

O progresso científico às vezes consiste em organizar um conjunto amplo de fenômenos diversos sob um único princípio. A emergência da cibernética, no início do século XX, foi um evento desse tipo.

A principal ideia da cibernética e a de que muitos tipos diferentes de sistemas – sejam eles mecânicos, físicos, biológicos, cognitivos ou sociais – são tipos de sistemas de controles que demonstram um tipo particular de estrutura causal, o circuito de controle de “retroalimentação negativa”. [1]

E acontece que o controle de retroalimentação negativa explica como partes da realidade podem controlar e, portanto, referenciar outras partes da realidade.

Pegue o exemplo mundano de um termostato. Você configura o objetivo do sistema ao ajustar sua configuração de temperatura. O componente termômetro do sistema mede a temperatura do ambiente; o termostato compara mecanicamente sua configuração com a temperatura medida: se a temperatura estiver baixa demais, então, o termostato emite um sinal para ligar o aquecimento; caso contrário, ele desligaria o aquecimento. Dessa forma, o sistema de aquecimento controla a temperatura do ambiente – e o faz de forma autônoma, sem que você precise tocá-lo outra vez.

Todos os circuitos de controle de retroalimentação negativa têm quatro componentes principais: 1) um estado-objetivo interno; 2) um sensor que mede alguma propriedade do mundo externo; 3) um comparador que compara a leitura do sensor com o estado-objetivo e 4) um efetuador ou sistema de ação, que muda o mundo para aproximá-lo do estado-objetivo.

A temperatura de nossos corpos é controlada por um tipo similar de ciclo biológico de retroalimentação, exceto que esse circuito de controle não é implementado com base em metal, fios e plástico, mas utilizando nervos, enzimas e glândulas sudoríparas.

Na verdade, todos os sistemas homeostáticos e dirigidos por um objetivo da natureza conformam-se a esse padrão causal. Diversos exemplos apenas implementam os componentes desse laço de controle de formas diferentes.

E, talvez para a surpresa de alguns, há um circuito de controle muito significativo, se escondendo à plena vista, que afeta cada aspecto da vida moderna da forma mais profunda e íntima.

O capital como um sistema de controle de retroalimentação negativa

A unidade básica de produção, onde o capital se encontra com o trabalho para produzir bens e serviços, é a empresa capitalista. E toda empresa voltada à maximização dos lucros é propriedade de um capital privado.

Os capitalistas extraem lucros das empresas. Eles só podem gastar uma fração dos seus lucros em consumo de objetos de luxo. Isso porque, se os ricos gastassem tudo o que ganham em objetos de luxo, seu capital rapidamente diminuiria e acabaria, em comparação com os capitais concorrentes que reinvestem seus lucros em mais atividades lucrativas. A renda do lucro precisa ser reinvestida para produzir mais lucro. Essa é a diretiva primordial de qualquer um que possua uma soma de dinheiro como capital.

Os donos do capital – isto é, os capitalistas – não podem “colocar todos os seus ovos num único cesto”. Isso seria arriscado demais, pois as empresas podem afundar, ou ativos que armazenam valor podem se depreciar. Então os capitalistas espalham e minimizam seus riscos ao manter um portfólio de investimentos com diferentes perfis de risco.

Um portfólio típico consiste em dinheiro depositado em diferentes moedas estrangeiras, títulos de dívida governamentais, municipais e corporativos, ações em diferentes companhias, desde “startups” arriscadas até ações de valorização mais óbvia e segura, e os mais diversos tipos de ativos produtores de rendas, como terrenos e casas. Basicamente, qualquer coisa que possa render um retorno maior do que a média.

Cada capital individual deve buscar maximizar o retorno sobre o seu portfólio. Se ele falha nisso, vai diminuir seu tamanho relativo aos outros capitais e eventualmente deixará de ser capital.

E é bem aqui que encontramos novamente a estrutura causal do sistema de controle de retroalimentação. Um capital individual – quando o consideramos como sendo uma prática social mediada por uma grande soma de dinheiro privada – também tem o seu estado-objetivo, entradas sensoriais, tomada de decisão e capacidade de agir sobre o mundo em que está embutido.

Tomemos cada um desses elementos por vez. 1) O objetivo de um capital individual é maximizar o retorno médio de cada dólar (ou real) investido. 2) As “entradas sensoriais” são as diferentes taxas de lucro ganhas através do portfólio. 3) O capitalista, ou os experts financeiros por ele empregados, comparam as diferentes taxas de lucro e 4) o ciclo de retroalimentação é fechado por ações que retiram o capital de investimentos malsucedidos e injetam capital em investimentos de alta performance.

Esse circuito de controle se manifesta numa busca insaciável e infinita por altos retornos.

O capital não se importa com como seu dinheiro é realmente utilizado na produção. Ele abstrai inteiramente de todas as atividades concretas. A única coisa que ele pode sentir, comparar e usar é o valor abstrato.

Portanto, os altos escalões de comando da economia global consistem de um conjunto enorme de capitais individuais, cada um deles numa busca feroz e desesperada por lucros, reagindo a sinais de retornos diferenciais recebidos por suas gavinhas que se estendem até alcançar cada atividade produtiva sob seu comando, injetando e retirando capital continuamente por entre diferentes setores industriais e regiões geográficas. A totalidade dos recursos materiais mundiais, incluindo o tempo de trabalho de bilhões de pessoas, é repetidamente arranjada e rearranjada de atividades de baixo retorno para as de alto retorno. Num espaço de meses, setores industriais inteiros podem ser erguidos, realocados ou derrubados.

Capitalistas são indivíduos possuídos, meros componentes da máquina do capital

E quanto às pessoas individuais que participam dessa prática social? Certamente suas consciências individuais, suas ideias e seu comportamento importam e fazem a diferença, certo?

Em certa medida, é claro que sim. Só que indivíduos vêm e vão, enquanto os capitais “vivem” por muito mais tempo que qualquer indivíduo humano. As pessoas controladas pelo capital – isto é, os trabalhadores que fornecem trabalho às empresas, e os capitalistas que os exploram e extraem lucros – são meros componentes substituíveis no laço de controle, mecanicamente operando papéis funcionais já prescritos.

Por exemplo, n’O Capital, Marx escreve que:

[…] para a economia clássica, o proletariado é apenas uma máquina para a produção de mais-valor; por outro lado, o capitalista é, aos seus olhos, apenas uma máquina de conversão desse mais-valor em capital adicional.

Comumente dizemos que os capitalistas possuem capital, mas é mais preciso dizer que é o capital que os possui. Os capitalistas são a face humana de uma inteligência inumana com uma lógica e objetivos próprios.

Na sociedade burguesa, o capital é independente e tem individualidade, enquanto a pessoa vivente é dependente e não tem individualidade. (Manifesto Comunista)

O poder demoníaco do capital

Capitais maiores têm a vantagem de portfólios maiores, que espalham e minimizam os riscos. Como consequência, o capital tende a se concentrar em poucas mãos. Então, encontramos um grande número de pequenos capitais e um pequenino número de capitais de proporções astronômicas, que obtêm lucros gigantes, maiores que o PIB de vários Estados-nação. A escala e poder de alguns capitais são verdadeiramente titânicos.

E esses titãs estão tão no controle que estão fora de controle. Novamente, outra citação do Manifesto Comunista:

A sociedade burguesa moderna, com suas relações de produção, de troca e de propriedade, uma sociedade que conjurou meios de produção e troca tão gigantescos, é como um feiticeiro que não é mais capaz de controlar as forças do mundo inferior a quem ele invocou com seus feitiços.

Na mitologia, demônios são entidades anárquicas e fora de controle que nos causam danos, nos atormentando ou possuindo. Não apenas o poder do capital é titânico, ele é demoníaco. Vamos considerar brevemente alguns exemplos.

Todo dia, milhões de trabalhadores ao redor do mundo não têm escolha a não ser sacrificar seu tempo e vitalidade, para produzir novos lucros para os controladores autônomos. Não importa quão duramente trabalhemos, por quanto tempo ou com quanta eficiência, o imperativo do trabalho permanece.

Por quê? Porque cada inovação técnica que economize tempo de trabalho assume a forma de lucro, que é então capturado pelos capitais individuais, e imediatamente reinjetados no mundo material para animar novas atividades para o lucro futuro. Essa é a razão para que, apesar do enorme avanço na automação, a jornada de trabalho permaneça com a mesma duração há décadas e décadas.

Vejamos outro exemplo: a lógica do capital demanda extração máxima dos lucros das empresas, e isso significa minimizar os salários. Aqueles que são possuídos pelo capital vivem uma existência exaltada; mas os despossuídos do mundo devem alimentar, vestir e manter um lar com um salário médio de cerca de 7 libras por dia (R$44,57 em 13/03/2024).

Mais um exemplo: é melhor ser explorado do que não ser. Estamos sujeitos aos caprichos do ciclo de negócios e das crises periódicas de acumulação. As recessões regularmente jogam grandes números de pessoas no desemprego, sem nenhuma justa causa. De repente, as contas não podem ser pagas. Famílias são despejadas, como aconteceu nos EUA durante a crise imobiliária de 2008, e novamente durante a crise do covid.

Por quê? Porque os capitais individuais são quase cegos. Eles só enxergam retornos diferenciais nos seus portfólios – e os retornos podem ser bons ainda que o desemprego esteja alto, ou que a miséria humana se faça ver pelas ruas. O capital não se importa.

Outro exemplo: o capital lida com valor abstrato, e as coisas que não são propriedade, que não são compradas e vendidas, portanto, não tem para eles qualquer valor. Assim, a riqueza material da natureza – as terras, os oceanos, a atmosfera – é implacavelmente pilhada sem qualquer preocupação com as consequências.

O capital destrói a nós e à natureza. A produção e o lucro infinitos não podem parar, pois cada capital individual deve competir para sobreviver. Marx resumiu a diretiva primordial do capital como sendo:

Acumulai, acumulai! […] reconvertei em capital a maior parte possível do mais-valor! A acumulação pela acumulação, a produção pela produção: nessa fórmula, a economia clássica expressou a vocação histórica do período burguês. (O Capital, capítulo 22, seção 3)

Então, todos os circuitos de controle autônomos têm o objetivo único de extrair lucro das atividades do mundo. Se uma atividade falha em satisfazer esse objetivo, o controlador retira seu capital e a atividade cessa.

Portanto, no ápice da economia, temos uma coleção competitiva de controladores idênticos – portadores de uma inteligência atávica, de baixo nível, demoníaca – que injeta e remove uma substância social que parece possuir o poder mágico da animação, de trazer coisas à vida, da criação; mas que, também, parece possuir o poder da aniquilação, da asfixia, de dar cabo às coisas, de destruí-las.

Nós, definitivamente, não estamos no controle; mas outra coisa, definitivamente, está.

Animismo

Então, do que estamos falando, agora?

Estamos falando de um novo tipo de sistema de controle supraindividual que emergiu, de forma espontânea, a partir do nosso próprio intercâmbio social e que, então – de uma forma bastante real – assumiu uma vida própria, deu meia volta e passou a nos controlar.

O capital, num sentido científico, e não metafórico, é um sistema de controle; e em última instância é o capital, enquanto sistema de controle, quem cria e mantém a abstração que chamamos de valor de troca. O capital é o abstrator.

Entretanto, antes de explicar como isso acontece, precisamos de um momento para explorar a relação entre sistemas de controle e formas primitivas de cognição.

Os seres humanos primitivos estavam à mercê da natureza. A qualquer momento, a colheita poderia ser arruinada, ou doenças e acidentes podiam acontecer. As primeiras formas de estruturas teóricas para explicar os caprichos das forças da natureza parecem ser os animismos.

O animismo é a crença de que todos os fenômenos naturais – tais como o clima, a geografia, as plantas, árvores, animais, etc., – ao fim e ao cabo são controlados por uma entidade viva autônoma, com agência antropomórfica. Os primeiros seres humanos acreditavam que diferentes conjuntos de fenômenos empíricos eram controlados por espíritos conscientes, que possuíam uma mente própria.

Engels nos dá um breve rascunho da história da religião na terceira parte do Anti-Dühring, que começa com uma discussão sobre o animismo. Os deuses do clima, do mar, do sol, da lua, deuses das doenças e da cura, etc., são atores ocultos, ou a causa final, de eventos incontroláveis.

Se você acredita que deuses são mãos invisíveis que afetam sua vida, então, faz total sentido apelar a eles – rezar, fazer oferendas, construir templos de adoração. O poder e a majestade dos deuses antigos era a expressão perversa da impotência e da miséria dos humanos antigos.

O “Deus Real”: para além do fetiche da mercadoria

Hoje, podemos contar com um nível muito maior de controle sobre nossas vidas em comparação com os nossos ancestrais. Esse progresso material, por si só, tem removido gradualmente a base material de nossos sistemas de crenças animistas.

Muitos dos poderes causais dos deuses e demônios antigos têm sido, um a um, explicados pela ciência. Portanto, eles perderam seus poderes. Ao invés de um balaio de gato de deuses pagãos, com poderes e domínios especiais, temos campos científicos com suas próprias teorias e terminologias técnicas.

É claro, a religião animista persiste na sociedade capitalista, mas é algo tipicamente bem distante do convencional. Como Engels explica, no seu rápido esquema:

Num estágio ainda posterior do desenvolvimento, todos os atributos naturais e sociais dos muitos deuses são transferidos para um só Deus onipotente, que, por sua vez, é apenas o reflexo do ser humano abstrato. (Anti-Dühring, Seção 3, Parte V).

Portanto, as principais religiões modernas, tais com o Islã e o Cristianismo, falam de um deus que a tudo rege, que é distante e abstrato, e diferente das divindades animistas da antiguidade, tipicamente não interfere nos fenômenos do dia-a-dia.

Engels, então, se volta à sociedade moderna, e faz a importante afirmação de que o capitalismo não abole as condições materiais que dão origem às crenças religiosas:

[…] na sociedade burguesa atual, as pessoas são dominadas pelas condições econômicas criadas por elas mesmas, […] como se fossem uma força alienígena. Portanto, o fundamento factual da atividade de reflexão religiosa perdura e, junto com ele, o próprio reflexo religioso. […] Ainda vale o adágio: o homem propõe, Deus (isto é, a dominação alienígena exercida pelo modo de produção capitalista) dispõe. (Ibid.)

Precisamente porque o capital está no controle, e não as pessoas, o “fundamento factual” da “reflexão religiosa” continua a existir.

É sabido que, no primeiro capítulo d’O Capital, Marx explica como a troca mercantil necessariamente gera o fetichismo da mercadoria – que é a ilusão de que o valor econômico é uma propriedade natural ou material das mercadorias. Então, objetos inanimados – especialmente formas do dinheiro, como o ouro – aparentam, de forma fetichizada, ter poderes especiais em si mesmos.

Mas o que Marx diz sobre um “Deus” a quem nos “propomos” e que “dispõe” de nós, nos leva além do fetiche da mercadoria. Marx aponta para o fato das leis econômicas terem poderes aparentemente divinos que operam independentemente de nós, que nos controlam e nos dominam, como forças da natureza.

Estaria Marx, portanto, cometendo uma falácia animista ao sugerir que o capital, como entidade independente, é um “Deus real” com “poderes reais”, que tem uma mente própria?

Uma vez que entendemos que o capital é um sistema de controle autônomo, então, a resposta é, simplesmente, “não”. Um circuito de controle de retroalimentação negativa tem todos os elementos básicos da cognição: ele, na prática, sente, decide e age. Nesse ponto um tipo qualificado de animismo seria inteiramente apropriado.

É claro que o ciclo do sentir, pensar e agir de um capital individual é bem diferente daquele de um ser humano. Não obstante, ambos buscam objetivos distintos e definidos, e ambos têm o poder de fazer as coisas acontecerem. Um sistema de controle consiste de neurônios, músculos e órgãos; outro consiste de práticas sociais, sistemas de crenças e a troca de uma substância de valor.

Então, falando de forma animista, um espírito, ou divindade, de fato, controla o capitalismo. Esse deus é capaz de se dividir em pedaços, e aparecer em múltiplos tempos, em múltiplos lugares. Ele pode se combinar com outras versões de si mesmo, para agregar-se em encarnações maiores e mais poderosas. Ele consegue possuir os seres humanos e controlá-los, os forçando a trabalhar ou a acumular. Essa entidade dirige a atividade social ao dar ou tomar sua substância mágica, que nós chamamos de valor. Nós nos sacrificamos diante dela, tentamos agradá-la e esperamos pela sua bênção.

Todas essas afirmações são cientificamente precisas. Não se tratam de metáforas. De fato, adotar uma teoria mais animista do capitalismo moderno, contraintuitivamente, constituiria num progresso científico.

Vamos agora adotar esse ponto de vista animista e investigar sobre o quê o capital, como uma entidade divina, tende a pensar. Quais os conteúdos da cognição do capital?

O que o Deus real controla?

Às vezes, é óbvio o que um sistema de controle específico controla, pois nós o projetamos. Por exemplo, sabemos que um termostato controla a temperatura de uma sala. Consequentemente, os sinais elétricos de controle que fluem dentro do termostato se referem à temperatura.

Só que a vasta maioria dos sistemas de controle não foram desenhados pelas pessoas. A natureza é cheia deles, desde simples mecanismos homeostáticos até cérebros animais incrivelmente complexos. Esses sistemas evoluíram sem um projetista e, portanto, temos de nos esforçar mais para determinar o que eles controlam e o que suas representações internas podem, ou não, representar do seu ambiente.

Pularei os detalhes da teoria científica que determina o que os controladores controlam de fato. Não é uma explicação simples (ver mais detalhes no artigo Loop-Closing Semantics, disponível em SSRN: https://ssrn.com/abstract=2262133). Penso que essa complexidade explica parcialmente por que a argumentação de Marx de como o trabalho abstrato é a substância do valor, nos primeiros capítulos d’O Capital – capítulos que, sabemos, Marx escreveu e reescreveu diversas vezes e que, brincava Engels, carregavam as marcas dos dolorosos furúnculos de Marx – não é inteiramente satisfatória. Marx tropeçou num grande problema que não podia ser totalmente solucionado com as ferramentas conceituais do seu tempo.

Então, ao invés de descer por esse buraco do coelho, vou, pelo contrário, pular direto à conclusão e simplesmente dizer o que o capital, como sistema de controle, de fato controla.

Já sabemos que os capitais, grandes ou pequenos, estão intimamente conectados ao processo de produção. A empresa capitalista empresta capital para comprar insumos e meios de produção e contratar trabalhadores; os trabalhadores fornecem trabalho concreto que produz valores de uso para venda no mercado.

O controlador julga todas as atividades concretas diversas ocorrendo em seu portfólio da mesma maneira: quais atividades rendem lucros acima da média e quais não? O controlador recompensa empresas que obtêm lucros comparativamente altos com novas injeções de investimentos; mas pune as empresas que obtêm lucros comparativamente baixos, ou perdas, ao retirar seu capital. Essas recompensas e punições monetárias fluem para baixo, através das empresas, até o mercado de trabalho, e recompensam o trabalho concreto com o pagamento de salários ou o punem com a sua retirada e com o desemprego.

Num sentido bem real, o capital quer tipos específicos de atividades concretas e não quer outras. Esses tipos de atividades que ele quer são aquelas que geram lucros acima da média. O capital está, portanto, nos controlando, e ele controla como gastamos o nosso tempo.

Trabalho abstrato: o tipo de trabalho que o capital deseja

Portanto, o capital quer atividades laborais que gerem lucros. Simplificando, podemos identificar duas propriedades essenciais que o trabalho concreto deve possuir para gerar lucro.

Primeiro, deve ser útil para outros, isto é, deve produzir mercadorias que possam ser vendidas no mercado. Ninguém compraria um casaco de três mangas.

Segundo, deve ter eficiência acima da média; em outras palavras, uma empresa lucra mais se usa menos tempo de trabalho que seus competidores que produzem a mesma mercadoria.

Eis porque, logo após Marx introduzir o conceito de trabalho abstrato, ele imediatamente aponta que apenas o trabalho socialmente necessário e útil conta como trabalho abstrato.

O capital não quer trabalhadores perdendo tempo cheirando flores com sua família e amigos: essa atividade não gera valores de uso vendáveis. O capital também não quer trabalhadores trabalhando levemente, folgando, ou doentes. Folgar ou adoecer não são eficientes para a produçaõ. O capital, se tivesse tudo o que quer de nós, nos faria passar todo o tempo trabalhando na empresa na intensidade mais alta possível, continuamente batalhando para superar outros trabalhadores no mercado de trabalho. É esse o tipo de comportamento que o capital deseja.

Assim, o capital controla o trabalho concreto, as atividades laborais reais da população trabalhadora, em todas as suas manifestações diversas. E o capital controla o tempo de trabalho real, o tempo real no relógio, das pessoas reais que estão fazendo coisas reais. É o próprio capital quem segura um cronômetro metafórico em sua mão, medindo, registrando, julgando e condenando; sempre de olho no menor sinal de moleza ou insubordinação.

Além disso, o objetivo do capital é converter o trabalho concreto em trabalho abstrato, no tipo de trabalho que tanto se encaixe na divisão do trabalho, a fim de ser trocado por outros trabalhos, quanto se encaixe no tipo de trabalho que se sacrifique por completo para o capital, se entregue em oferenda, a fim de render lucros à empresa capitalista e, em última instância, aos capitais dominantes que estão no controle, por trás dela.

Em outras palavras, o “trabalho abstrato” é manifestado, é trazido à realidade, pelo próprio capital. “Maximizar os lucros” é o mesmo que o processo de maximizar a manifestação do trabalho abstrato a partir do trabalho concreto.

Por isso Marx afirma que só o trabalho abstrato “cria valor”.  O trabalho concreto pode ou não criar valor. Se não criar, ele não é trabalho abstrato e o capital como controlador rapidamente age para erradicar sua existência, ao arrancar capital das empresas que o empregam.

O capital como uma egrégora

O capital é um controlar que emprega uma forma de valor – o dinheiro – para controlar o conteúdo do valor – que é o nosso tempo de trabalho. A forma e o conteúdo são unidos, se vinculam semanticamente, numa relação de representação ao referente, pelas regularidades constantes, dignas de uma lei, que são instanciadas pela produção generalizada de mercadorias.

Como já vimos, sistemas de controle instanciam os elementos básicos da cognição. De fato, eles têm representações internas que se referem ao mundo em que agem. Consequentemente, a teoria do valor de Marx é, fundamentalmente, uma teoria sobre uma cognição alienígena que nos controla.

Não é de se admirar que ele fale da necromancia da produção de mercadorias, pois apenas as tradições religiosas, mágicas e ocultistas em nossa história têm conceitos adequados para expressar nossa condição.

O conceito ocultista de uma egrégora é útil aqui. Uma egrégora é uma entidade não-física que existe em virtude das atividades rituais coletivas de um grupo, mas que ainda assim opera de maneira autônoma, de acordo com sua própria lógica interna, para influenciar materialmente e controlar as atividades do grupo. O grupo cria a egrégora e a egrégora cria o grupo, num ciclo de retroalimentação que se autorreforça.

Marx, nos seus Manuscritos Econômico-Filosóficos de 1844, se refere explicitamente a essa relação recíproca entre um deus e seu povo, entre um culto e sua egrégora.

Herdamos certamente o conceito de trabalho alienado […] como resultado do movimento da propriedade privada. Mas evidencia-se na análise desse conceito que, se a propriedade privada aparece como fundamento, como razão do trabalho alienado, ela é antes uma consequência do mesmo, assim como também os deuses são, originariamente, não a causa, mas o efeito do erro do entendimento humano. Mais tarde esta relação se transforma em ação recíproca.

As atividades rituais dos primeiros cultos capitalistas foram tão bem-sucedidas materialmente que rapidamente entraram em metástase e, em poucos séculos, engoliram o mundo. O que é universal se torna um plano de fundo despercebido. Então, a egrégora, na nossa sociedade, é difícil de ser enxergada, ela se esconde à plena vista. Nos referimos a ela, é claro, mas de forma oblíqua, usando nomes enfadonhos e soporíferos como “a economia”, “os mercados”, ou “capital”. Mas Marx apontou para um nome melhor, feito para nos acordar de nosso sono: um Deus real, com poderes reais.

Uma cognição alienígena que vincula a forma do valor ao conteúdo do trabalho

Então, o capital é uma egrégora. Não metafórica ou ironicamente, mas de verdade. O capital é um ser, uma entidade autônoma, com pensamentos primitivos sobre nós. O dinheiro é como ele nos mede, e com o dinheiro ele nos controla. O capital é uma cognição alienígena que age no mundo para amarrar a forma do valor ao seu conteúdo.

Agora, sabemos o que é o abstrator. E, agora que temos uma compreensão mais nítida do núcleo estrutural da teoria do valor de Marx, fica fácil identificar más interpretações dela.

Há más interpretações que enfatizam o conteúdo em detrimento da forma. A teoria de Marx não é, de forma alguma, um materialismo ingênuo como o da economia política clássica, ou das interpretações sraffianas modernas de Marx, que postulam uma causalidade unilateral do tempo de trabalho concreto sobre os preços monetários. Ao invés disso, devemos pensar sobre circuitos de retroalimentação, sobre causalidades bilaterais, partindo do conteúdo à forma e vice-versa.

Mas há outras más interpretações que enfatizam a forma em detrimento do conteúdo.

Claramente, a teoria de Marx é uma teoria objetiva do valor. Apesar das pretensões das teorias da utilidade subjetiva do valor, não podemos coletivamente fazer com que aviões sejam mais baratos que canetas através do desejo. Não somos o controlador dominante, somos os controlados. O consumidor individual não é um rei.

Contudo, variantes mais sofisticadas do idealismo também interpretam mal a teoria de Marx. Alguns marxistas pensam que o capital sonha com o trabalho abstrato, que o trabalho abstrato é uma invenção do sistema capitalista, que não se refere de verdade a algo que existe independente na realidade objetiva. Isso reduz a teoria de Marx a uma paródia pós-moderna de formas fantasmagóricas e ideais.

Nessas más-interpretações, a forma não tem conteúdo. Então, o dinheiro não se refere a nenhuma propriedade existente independente dele. A forma cria um conteúdo ilusório. Nessa visão, o trabalho abstrato pode muito bem ter efeitos reais, da mesma maneira que acreditar no Papai Noel faz as pessoas lhe oferecerem leite com biscoitos, mas ele não existe de verdade.

Pode parecer sofisticado, mas em última instância, redunda em niilismo do valor, onde só existem preços, sem que haja nada oculto por trás deles.

Mas a teoria de Marx é essencialmente sobre o controle do tempo de trabalho concreto, as condições de trabalho reais e objetivas de milhões de pessoas. Qualquer interpretação de Marx que afirme que o trabalho abstrato não pode ser medido independentemente dos mercados e preços, ou não possa fornecer uma definição do conteúdo do valor sem se valer de coeficientes mágicos que dependem dos preços – deu errado.

É claro que, como qualquer entidade, os pensamentos do capital podem não refletir, ou representar, perfeitamente a realidade em que ele está embutido. Entretanto, se um sistema de controle é bem-sucedido em seu controle, então, suas representações internas terão uma correspondência verdadeira com a realidade. E o capital é um controlador supremamente bem-sucedido.

E, em última instância, essa é a razão pela qual as afirmações de Marx sobre o valor podem ser verificadas empiricamente: o trabalho já é disciplinado para ser eficiente e útil. Assim, a maioria do trabalho concreto já é trabalho abstrato. Consequentemente, se pegarmos aleatoriamente um grupo de 50 trabalhadores, eles terão o poder de produção de valor aproximado de 50 unidades de trabalho abstrato. Quanto maior o grupo, melhor a aproximação.

Sacar nosso cronômetro não funcionaria a nível individual pois não há garantia de que, ao fim e ao cabo, seu trabalho concreto vai contar como trabalho abstrato. Não obstante, nosso cronômetro medirá o trabalho abstrato se coletarmos amostras o suficiente. Como afirmou Marx, o trabalho abstrato tem o caráter da força de trabalho média da sociedade. Então, o sucesso de controle do capitalismo significa que podemos medir quantidades de trabalho abstrato antes do trabalho ser igualado e homogeneizado no mercado.

Uma analogia pode ajudar, neste ponto, pois essa é uma questão sutil, mas importante.

Um etologista, estudando o comportamento de um animal selvagem, não pode entrar na cabeça do animal e ver o mundo pelos seus olhos. O etologista nunca poderá saber totalmente o que é ser um morcego. Todavia, os etologistas desenvolveram teorias detalhadas sobre a ecolocalização, e sobre como a cognição de um morcego representa seu ambiente. De maneira semelhante, estamos estudando o comportamento de uma entidade autônoma, chamada capital, com uma cognição alienígena. O trabalho abstrato é um conceito dela, não nosso. Mas podemos formar um conceito de trabalho abstrato que corresponda ao conceito dela – afinal, nós, os controlados, e ela, o controlador, vivemos no mesmo mundo. E podemos todos falar sobre e representar uma propriedade objetiva desse mundo compartilhado.

E o que é essa propriedade objetiva? Podemos agora refinar nossa definição inicial e aproximada de trabalho abstrato. Não se trata apenas do trabalho médio, ou das potências causais comuns do trabalho humano. É algo mais específico, algo mais historicamente determinado e, portanto, mais contingente.

O trabalho abstrato é uma coleção de potências causais possuídas pelo trabalho humano que podem se manifestar como uma habilidade de produzir um sem-número de coisas úteis aos outros, de lucrar ao trabalhar mais e por mais tempo, de melhorar técnicas de produção a fim de produzir mais com menos, e de superar outros numa contenda eterna por lucros. Se nós, trabalhadores, não tivéssemos tais potências causais, então, o capital falharia em nos moldar como as unidades homogêneas, criadoras de valor, que ele deseja.

O capitalismo enquanto modo de produção ocultista

O capital não é uma grande soma de dinheiro, mas um conjunto definido de práticas sociais que instanciam um sistema de controle. Cada capital é um controlador que age independentemente de qualquer consciência humana individual. Nesse sentido bastante real, cada capital é uma entidade, um ser-para-si; e cada capital tem formas primitivas de cognição: capitais continuamente sentem, decidem e agem a fim de alcançar o objetivo primordial de maximizar os retornos. Isso não é uma metáfora, é ciência. O “Deus real” de Marx é verdadeiramente real.

Marx nos lembra que o capitalismo não abole as condições materiais que dão origem ao pensamento mágico e religioso. O fetiche da mercadoria está repleto disso e as confusões são abundantes. Por exemplo, a ciência econômica moderna tem sucessivamente reprimido a teoria do valor de Marx e a natureza das relações de propriedade capitalista, baseadas no roubo – e ainda ela se prova incapaz de formular uma teoria alternativa do valor econômico. Os mistérios econômicos permanecem.

Para contribuir com a confusão e mistificação, a ideologia capitalista promove a ideia de que nossa cultura comercial seria fundamentalmente um empreendimento racional e secular. Mas é bem o contrário. A racionalidade do capitalismo não é humana, mas alienígena, e nós não a controlamos, é ela que nos controla. A ideologia capitalista se recusa a enxergar o “Deus real” que é o capital, e nossa subordinação a ele. O deus é real, mas está oculto, escondendo-se à plena vista. Nesse sentido, o capitalismo é um modo de produção ocultista, e não secular.

A forma-valor, a abstração titânica que permeia cada aspecto de nossas vidas é, num certo sentido, a linguagem primitiva do controlador. Ele vê e julga nossas atividades, em termos de valores abstratos, comparando taxas de lucro diferenciais em seu portfólio. Mas ele também comanda nossas atividades usando o valor abstrato, injetando e retirando seu ser substancial, o dinheiro. O capital opera para moldar, formatar e disciplinar a totalidade da força de trabalho da sociedade na forma específica do trabalho abstrato, que é o trabalho que se entrega total e completamente em oferenda ao capital.

Então, a forma-valor participa, tanto na ação de medida do tempo de trabalho, quanto no comando do tempo de trabalho. Não deveria surpreender o fato de que a forma-valor também tenha imperativos semânticos. O dinheiro não participa apenas no ato de medida, ele também comanda. A troca generalizada de mercadorias não tem planejador ou plano consciente e, portanto, a capacidade de comando e o controle necessários à organização da divisão do trabalho é alcançada por meio da alocação de capital, da transmissão do dinheiro e da estrutura dos preços.

O capital dá ordens ao tempo de trabalho concreto para que este se manifeste como tempo de trabalho abstrato e, portanto, traz à existência aquilo que já está latente dentro de nós. Mas o capital intensifica e aperfeiçoa apenas uma parte de nós. Somos mais do que apenas criaturas capazes de manifestar o trabalho abstrato. Temos o poder de fazer muito mais do que simplesmente produzir coisas úteis por meio do trabalho intenso por longas horas. Assim, apesar do domínio do capital, nós resistimos, e encontramos lugares e momentos em que conseguimos ser mais nós mesmos. Mas o capital não quer que brinquemos, aprendamos, exploremos, nos importemos, cuidemos uns dos outros ou que entreguemos coisas de graça. O capital quer que produzamos – infinitamente. E, portanto, nós, sob o domínio do capital, somos reduzidos a sombras, meras abstrações estreitas daquilo que poderíamos ser.

Nós somos os abstraídos e ele é o abstrator.

Escravos do Deus capital

Permitam-me encerrar com uma analogia bastante direta e crua. Vacas podem fazer muitas coisas, mas tudo que nos interessa é que elas produzam tanto leite e carne quanto possível. Então as criamos, alimentamos, pastoreamos e as controlamos, para que façam apenas isso. Às vezes suas tetas estão tão distendidas pela produção excessiva que elas rasgam, se partem e vazam.

Nós somos gado para o capital. Nós também nos tornamos distorcidos e desfigurados pelo seu comando universal. Ele nos marca como trabalho abstrato. Mas nós também somos indivíduos concretos. A forma não exaure o conteúdo. E essa não-identidade entre a forma e o conteúdo, aparentemente inócua, é uma razão fundamental de por que, um dia, escaparemos do domínio do capital.


Notas

[1] No original, “negative feedback control loop”. Optamos por “circuito de controle de retroalimentação negativa”, mas esses termos aparecem traduzidos de diversas maneiras diferentes, dependendo da área pela qual se aborda a teoria cibernética. Na tradução original, o termo aparecia como “loop de controle de retorno negativo”. O conceito de processo em repetição, dependendo do contexto, pode ser aparecer como “circuito”, “ciclo”, “loop”, “laço”, “alça”, “iteração”; já a ideia do processo continuamente recebendo novas entradas com base nos seus próprios ciclos anteriores aparece como “retroalimentação”, “retorno”, ou na versão não traduzida, mantendo o termo “feedback”.

Sobre os autores

Ian Wright

é um dos principais pesquisadores atuais de modelos matemáticos de equilíbrio estatístico, da teoria do valor em Marx e de suas implicações e interpretações materialmente sombrias e arcanas. Publica regularmente no seu blog Dark Marxism.

Cierre

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Published in Análise, Capital, Economia, Política, Religião and Sociologia

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