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(Reprodução Rádio Online PUC Minas)

Da lama ao caos para organizar outro futuro

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O músico pernambucano Chico Science nasceu neste dia em 1966. Um dos criadores do movimento manguebeat, ele conectou a "favela global" através da música, unindo a distopia cyberpunk ao terceiro-mundismo para imaginar alternativas à ordem capitalista.

Francisco de Assis França, mais conhecido Chico Science, nasceu no dia 13 de março de 1966 em Olinda, Pernambuco. Quando o garoto Francisco nasceu, sua mãe, dona Rita, carregou o menino nos braços em um passeio de barco a caminho de casa. Havia táxis em frente à maternidade, mas ela preferiu – por “intuição divina”, dizia – levar o menino pelo rio. Naqueles primeiros dias de existência, começou uma relação do futuro Chico Science com os manguezais. 

Chico foi um dos principais idealizadores do movimento manguebeat, entrando para história como o inigualável Mangueboy. Ele viu, há mais de vinte anos, o país que vivemos hoje: as caricaturas dos contrastes, a truculência no traquejo social, a violência sob a superfície fanfarrona, o sorriso aberto que fecha-se num segundo em uma carranca. 

“Ao criar um personagem que funcionava como um narrador daquele novo universo, Chico Science conectava a distopia cyberpunk ao terceiro-mundismo sonoro que une o reggae ao bhangra e ao hip-hop.”

Conectando a aldeia global

O manguebeat, criado em Recife por Chico, sua nação zumbi, e pelo Mundo Livre S/A de Fred Zero Quatro, trazia esse futuro para o sol de rachar na linha do Equador. O cyberpunk era urbano, sombrio, meio gótico, meio romântico. O manguebeat era diurno, à praia pés na areia – e na lama -, onde o horizonte é o mar. 

Ao criar um personagem que funcionava como um narrador daquele novo universo, Chico Science conectava a distopia cyberpunk ao terceiro-mundismo sonoro que une o reggae ao bhangra e ao hip-hop. Plugar o Brasil à aldeia global e Marshall McLuhan antes mesmo da ascensão da web – e pela cultura da favela global, dos países subdesenvolvidos – foi algo totalmente inovador. 

“Líder de uma banda de protesto para dançar, Chico Science foi ele mesmo a antena cravada no mangue.”

Suas letras são alegorias que usam arquétipos e ícones estabelecidos para falar sério em frases de efeito cujo significado vai além do mero slogan. “Há fronteiras nos jardins da razão”, “em cada morro uma história diferente que a polícia mata gente inocente”, “cerebral é assim que tem que ser”, “o de cima sobe e o de baixo desce”, “no caminho é que se vê a praia melhor pra ficar”, “é o povo na arte, é arte no povo e não o povo na arte de quem faz arte com o povo”. 

Mangueboy

Líder de uma banda de protesto para dançar, Chico Science foi ele mesmo a antena cravada no mangue, no caso, o Brasil. Ao colocar os óculos escuros, tirar a camisa, botar o chapéu e abrir o sorriso de lado, Chico virava o arquétipo mangueboy, criava o b-boy nordestino cujo semblante hoje é tão forte quanto os de Bob Marley, Che Guevara e Raul Seixas – um personagem que certamente foi influenciado pelos desenhos de Angeli. A partir deste púlpito, narrava sagas de vida e morte pelo sertão, crônicas violentas nas favelas, dias de preguiça na praia. Aos poucos, redesenhava um país de contrastes, que já havia sido desenhado pelos modernistas nos anos 1920 e pelos tropicalistas nos anos 1960. Repensava a Casa Grande e Senzala e contextualizava globalmente os tristes trópicos. 

Em Chico Science a violência revolucionária não é mero espontaneísmo, precisa ser concretizada no combate ao individualismo, no engajamento em lutas coletivas. Lutar é coletivo, enquanto se desorganiza um mundo e organiza um novo. “Posso sair daqui para me organizar, posso sair daqui pra me desorganizar, que eu me organizando posso desorganizar, que eu desorganizando posso me organizar.” Da lama ao caos como condição de outro futuro:

Ô Josué, nunca vi tamanha desgraça[…]
Com a barriga vazia não consigo dormir
E com o bucho mais cheio, comecei a pensar
Que eu me organizando posso desorganizar
Que eu desorganizando posso me organizar

(Nação Zumbi, Da lama ao caos)

O olhar de Chico a respeito das desigualdades e particularidades da cidade do Recife foi construído a partir de diversas referências, com destaque especial para uma: a visão transformadora que Josué Apolônio de Castro trouxe dos mangues e de seus caranguejos “com cérebro”.

Os mangues, “fervilhando de caranguejos e povoado de seres humanos feitos de carne de caranguejo, pensando e sentindo como caranguejo” foram, em suas próprias palavras, a Sorbonne do médico pernambucano. Tal qual uma lente que focaliza a imagem de modo a torná-la mais nítida, seu pensamento sobre a fome e o espaço urbano exerceram grande influência nas canções de Chico, que enxergava no mangue a força vital que movimentava a capital pernambucana.

O impacto de sua breve passagem por nossas vidas não deve ser lembrado apenas com tristeza ou saudade, mas pela importância e força representadas nos poucos anos que viveu durante os anos 1990. Sua influência é presente, contínua, e por isso Chico permanece viva.

Sobre os autores

é tradutora, redatora e repórter na Jacobin Brasil. Também é jornalista no Opera Mundi, membro do Fórum Latino Palestino.

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Published in América do Sul, Cultura, Música and Perfil

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