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Montagem com ilustração de Kento IIDA para NOEMA

Planejando uma utopia ecossocialista

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Tradução
Everton Lourenço

Embora os socialistas sejam frequentemente acusados de terem um pensamento ingênuo, a verdadeira ingenuidade é acreditar em um futuro onde o capitalismo possa suprir as necessidades de todos dentro dos limites do planeta.

Este ensaio (publicado originalmente na revista NOEMA) é um trecho modificado do livro Half-Earth socialism: a plan to save the future from extinction, climate change and pandemics [Socialismo de Meia-Terra: um plano para salvar o futuro da extinção, mudanças climáticas e pandemias] (Verso Books, 2022).


Para Leonid Kantorovich, a matemática era uma questão de vida ou morte. O ano era 1941, e os exércitos alemão e finlandês tinham sitiado a cidade natal de Kantorovich, Leningrado, durante a Operação Barbarossa, cortando as estradas e ferrovias que levavam à cidade para submetê-la à fome até que a rendição. Porém, uma única linha ainda ligava a cidade ao mundo exterior: a superfície do Lago Ladoga, no flanco leste da cidade.

As barcaças soviéticas podiam servir de balsa para transportar suprimentos no verão, mas no inverno trenós e caminhões tinham de fazer a perigosa jornada por sobre o gelo. Essa “estrada da vida” era a única maneira de manter vivos e lutando milhões de civis e soldados presos em Leningrado. Era uma estrada traiçoeira e mortal – cerca de 40 caminhões caíram pelo gelo durante a primeira semana do comboio de inverno. Diante da ameaça da sobrecarga da Luftwaffe, o trabalho de Kantorovich era minimizar essas perdas. Se ele falhasse, a cidade não resistiria por muito tempo.

O lago apresentava um problema matemático urgente: considerando o vento, a temperatura e a espessura do gelo, quantos caminhões poderiam ser enviados e quão pesados eles poderiam ficar? Mudanças rápidas nas condições climáticas e a ameaça de aviões alemães tornavam o quebra-cabeça ainda mais difícil.

Apesar do perigo, o jovem professor insistia em também estar sobre o gelo para ver por si mesmo os comboios passando por esses desafios. Os esforços de Kantorovich trouxeram milhares de toneladas de combustível, comida e munição para a cidade e tiraram quase 1,5 milhão de civis para fora dela. Adolf Hitler pensou que poderia conquistar Leningrado em seis semanas; quase 900 dias depois, o cerco foi levantado e a humilhada Wehrmacht recuou para o oeste.

Quando não estava ocupado calculando as margens de vida e morte no Lago Ladoga, Kantorovich trabalhava arduamente em sua obra-prima, “O melhor uso dos recursos econômicos”. Embora seus primeiros trabalhos matemáticos tivessem sido nos campos abstratos de Análise e Topologia, este livro era tão prático quanto a estrada da vida.

O estudo de Kantorovich delineou a maneira como “métodos matemáticos” poderiam ser aplicados à “economia como um todo” em uma “base cientificamente planejada”. Embora ele enfatizasse que uma economia capitalista jamais poderia se aproximar de tamanho grau de racionalidade, ele reconheceu educadamente que “as deficiências de planejamento existem como resultado direto do atraso da ciência econômica em relação aos requisitos necessários para a construção de um Estado comunista”.

O melhor uso dos recursos econômicos” era uma tentativa de fornecer uma ciência econômica compatível com as ambições utópicas da União Soviética. No lugar das decisões auto-interessadas e muitas vezes ineficientes tomadas pelo departamento de planejamento central, a Gosplan, Kantorovich imaginava que o planejamento algorítmico poderia aumentar a eficiência em todas as escalas, da fábrica à nação. Assim como ele havia otimizado o atravessamento dos comboios pelo lago gelado, o jovem matemático buscava otimizar o próprio socialismo.

O trabalho pioneiro de Kantorovich em soluções matemáticas para questões complexas da produção econômica havia começado em uma fábrica de compensados de madeira, ​​três anos antes. Os engenheiros da fábrica pediram a Kantorovich para ajudá-los a descobrir a melhor maneira de usar seus tornos, serras e outras máquinas – cada uma operando em velocidades diferentes – para maximizar a produção de uma mistura para compensado.

O problema parecia bem fácil, mas Kantorovich rapidamente descobriu que resolvê-lo da maneira clássica exigiria mais de um milhão de equações. Então ele desenvolveu um algoritmo que chamou de “programação linear” e concebeu uma solução em uma tarde usando apenas papel e caneta. Além disso, o algoritmo poderia ser aplicado universalmente a qualquer situação em que um determinado valor sujeito a restrições lineares precisasse ser maximizado ou minimizado (desenhar uma agenda de horários de trem que minimize o tempo de viagem do passageiro, por exemplo).

A programação linear não só era um tipo quintessencialmente socialista de Matemática, por ser “caracterizada por uma constante sobreposição de teoria e prática”, mas também oferecia uma maneira de tornar uma economia política socialista mais eficiente e racional. Kantorovich imediatamente começou a imaginar como seu método poderia ser expandido da fábrica para a nação, e até mesmo para o mundo.

Kantorovich parece não ter conhecido o trabalho de um economista socialista anterior – o notável (mas amplamente esquecido) polímata vienense do início do século XX, Otto Neurath. O cerne do sistema filosófico de Neurath era a rejeição da “pseudorracionalidade” — a crença de que qualquer métrica única, como o dinheiro, poderia guiar todas as decisões dentro de qualquer sistema, econômico ou não.

O capitalismo é um sistema inerentemente irracional porque a busca do lucro com a exclusão de todas as outras considerações leva ao desastre, como a crise climática e a sexta extinção em massa. Notavelmente, Neurath estendeu essa sacada à economia socialista e argumentou que um sistema alternativo baseado em um equivalente universal (tempo de trabalho, por exemplo) também careceria do controle consciente necessário para se poder ponderar racional e democraticamente o equilíbrio entre as considerações ​​éticas, sociais, ambientais e estéticas incomensuráveis que compõem qualquer decisão. Neurath argumentava que o socialismo não poderia ser baseado em mecanismos de mercado, então ele criticava o desejo de outros socialistas de manter a “ordem monetária incontrolável e ao mesmo tempo querer a socialização” como “uma contradição interna”.

Neurath chegou a essas conclusões estudando exemplos antigos e contemporâneos de economias baseadas em unidades “naturais” (ou “in natura”) de coisas físicas discretas, ao invés de dinheiro. Em 1906, ele terminou sua dissertação de doutorado sobre a economia não-monetária do antigo Egito. Ele estava convencido de que o dinheiro não representava necessariamente um avanço na história econômica, pois “a grande economia de armazéns dos antigos reis e príncipes egípcios, com suas instalações de contabilidade, seus salários em espécie e outras instituições, estava em um nível muito superior ao da economia monetária grega do século IV [AC].”

Neurath empregou suas percepções da economia egípcia antiga para estudar a economia de guerra durante as Guerras dos Bálcãs (1912-13) e a Primeira Guerra Mundial. Ele passou a ver no cálculo in natura a solução para o problema da pseudo-racionalidade. No fim das contas, argumentava, não havia “unidades de guerra” para guiar as decisões do comandante de um encouraçado. O que importava eram coisas incomensuráveis: “o curso do navio, a potência dos motores, o alcance dos canhões, os estoques de munição, os torpedos e os suprimentos de comida”. Em uma emergência, os preços falham em transmitir qualquer informação.

Vinte anos depois de Neurath teorizar as possibilidades do socialismo in natura, a programação linear de Kantorovich ofereceu aquilo que talvez tenha sido o primeiro método prático para implementá-lo na realidade. Em vez de reduzir tudo a um equivalente universal (como o preço), Kantorovich poderia equilibrar as restrições concorrentes em suas unidades naturais – toneladas de aço ou watts de eletricidade – em muitos projetos diferentes simultaneamente.

Ainda que não seja suficiente para organizar algo tão complexo como uma economia, a programação linear marcou um avanço conceitual na teoria do planejamento. Ele ofereceu uma maneira sistemática de alocar recursos e, assim, otimizar métricas selecionadas de bem-estar nacional. Isto é, assim que um planejador articulasse as restrições materiais de uma economia utilizando linguagem matemática, os planos de produção e distribuição poderiam seguir-se naturalmente, sem o auxílio da mão invisível do mercado. Mesmo com os computadores primitivos disponíveis na década de 1940, Kantorovich podia sonhar em “programar a URSS”.

A programação linear e a democracia

Em muitos sentidos, Kantorovich corporificava o otimismo do período de “degelo” após Stalin, quando o rápido crescimento econômico, a nova ciência universal da “cibernética” e a era espacial pareciam anunciar a chegada de um socialismo de abundância e humanidade. E, no entanto, apesar dessas condições promissoras, a programação linear fracassou por dois motivos: após a Primavera de Praga de 1968, qualquer coisa que cheirasse a “socialismo de mercado” (uma tradição à qual Kantorovich pertencia apenas tangencialmente) estava comprometida, deixando os reformadores com poucas chances de revitalizar o aparato de planejamento cada vez mais decrépito da URSS. E, em segundo, a falta de democracia na União Soviética significava que era impossível montar uma nova coalizão política forte o suficiente para superar os interesses velados dos planejadores e gerentes econômicos, que faziam cumprir os planos quinquenais do Partido Comunista.

A otimização da economia como um todo privaria essa elite de seu poder sobre a distribuição de recursos. Os reformadores eram autorizados a otimizar fábricas individuais ou mesmo setores industriais, mas nunca a economia como um todo. Mesmo um tecnocrata altamente condecorado como Kantorovich não poderia realizar o sonho de uma economia socialista eficiente e sem a utilização de dinheiro porque não existia nenhum movimento social que pudesse ajudá-lo a superar a oposição da elite.

Neurath deixou claro que o controle consciente é a maior força de uma economia planificada em comparação com o capitalismo, mas que isso exige democracia para evitar uma supervisão autoritária e ineficiente sobre a produção e a distribuição dos bens. Desta forma, poderíamos dizer que a programação linear permaneceria como uma proposta semi-utópica e condenada enquanto não fosse integrada a um projeto libertador mais abrangente.

A democracia tornou-se ainda mais necessária no mundo globalizado que o socialismo herdará, no qual diferentes localidades terão papéis especializados na economia e demandarão insumos produzidos em regiões distantes. O planejamento exigirá esforços extraordinários para garantir que ninguém seja excluído ou explorado em uma rede global de interdependência.

Como Kantorovich compreendia, o objetivo não era microgerenciar cada quilo de café ou peça de vergalhão de aço ao redor do mundo, mas “construir um sistema de informação, contabilidade, índices econômicos e estímulos que permitam aos órgãos de tomada de decisão locais avaliar a vantagem de suas decisões do ponto de vista da economia como um todo”. Assim, é necessário casar a visão técnica de Kantorovich com o “utopismo científico” de Neurath, no qual os planejadores estabelecem seus objetivos e restrições em unidades naturais e então concebem diferentes planos que podem ser escolhidos por um público bem informado.

Hoje, pode-se imaginar que esses planos representariam muitos futuros possíveis para um planeta socialista – um deles pode envolver a geoengenharia e as conveniências de combustíveis fósseis, enquanto outro pode abolir por completo o uso de hidrocarbonetos. Os custos de cada um desses futuros possíveis podem ser estimados em unidades naturais, deixando claro as difíceis escolhas e ponderações que devem ser realizadas. Os representantes parlamentares poderiam decidir sobre um plano, ou talvez a escolha pudesse ser feita diretamente pelo povo em um referendo. Neurath chamava esses vários futuros imaginados de “utopias científicas” e os via como fundamentais para a democracia econômica.

Criar planos com base no cálculo in natura e colocá-los em votação desmistificaria a economia, tornando mais difícil para uma casta burocrática egoísta obscurecer e, assim, controlar o seu funcionamento. Embora os métodos necessários para coordenar a economia de hoje sejam consideravelmente mais complexos do que a programação linear que Kantorovich empregou originalmente, a necessidade de democracia não é menos premente.

O capitalismo jamais ofereceu um futuro mais sombrio do que atualmente, ao mesmo tempo em que o socialismo nunca foi tão viável e necessário. Contudo, até mesmo uma utopia ecossocialista gerida de maneira sábia ainda seria atormentada por algumas ineficiências e carências. Porém, acreditamos que vale a pena pagar para obter outras vantagens, como um clima estável, uma biodiversidade incrível e o respeito às pandemias. Tal sociedade, o que chamamos de “socialismo de Meia-Terra”, também promete a perspectiva de uma política global baseada em cuidado, igualdade e trabalho não-alienado. Nossa proposta é apenas uma das muitas maneiras pelas quais a humanidade poderia navegar para atravessar a crise ambiental e, no espírito da visão democrática de Neurath, convidamos outras pessoas a contribuir com suas próprias utopias científicas.

Limites planetários

Criar um mundo justo que se encaixe com as restrições ecológicas é a estrada da vida que a humanidade precisa cruzar no século XXI. Durante o cerco de Leningrado, Kantorovich entendeu que os caminhões cairiam no gelo se fossem carregados com peso demais, mas se eles fossem carregados com pouca carga, as pessoas morreriam de fome desnecessariamente. O socialismo de Meia-Terra exige um ato de equilíbrio semelhante, fornecer a todos os fundamentos materiais para uma vida boa – sustento, abrigo, educação, arte, saúde – e ao mesmo tempo proteger a biosfera para evitar a sua desestabilização.

Na literatura científica, esse desafio é conhecido como o debate dos “limites planetários”, no qual os cientistas calculam como atender às necessidades básicas de todos sem destruir o planeta. Tal programa de pesquisa, entretanto, está incompleto se não reconhecer a impossibilidade de alcançar esses objetivos dentro do capitalismo. A necessidade de planejar e restringir o intercâmbio da humanidade com a natureza entra em conflito com a força inconsciente e expansiva do capital.

Embora existam muitas estimativas de limites planetários, até mesmo os modelos mais avançados são incapazes de ajudar a imaginar a estabilidade ecológica pós-capitalista. Não é por falta de conhecimento técnico. Engenheiros de sistemas em instituições importantes construíram enormes programas de supercomputadores chamados Modelos de Avaliação Integrada (ou IAMs, na sigla em inglês de ”Integrated Assessment Models”) que combinam física, química, biologia e economia em uma única simulação do mundo pelos próximos 300 anos ou mais. Os IAMs são fundamentais para a política climática; sempre que você ouve uma previsão sobre projeções climáticas para 2100, um engenheiro com um IAM provavelmente esteve nos bastidores mexendo com variáveis ​​como impostos sobre poluição, probabilidades de avanços tecnológicos, padrões espaciais de agricultura e biocombustíveis, demanda global de alimentos, composição de sistemas energéticos e a sensibilidade do clima e da biosfera a todas essas mudanças sociais.

Os IAMs são ferramentas poderosas, mas também demonstram o problema neurathiano da pseudo-racionalidade. Por exemplo, a bioenergia com captura e armazenamento de carbono (BECCS, na sigla em inglês) é favorecida pelos modeladores do IAM não porque seja uma solução efetiva ou realista para a mudança climática, mas porque os IAMs usam o equivalente universal do dinheiro (até transformam o CO2 em dinheiro por meio de um imposto sobre o carbono), e os BECCS são uma maneira útil de transformar dólares em emissões negativas dentro de um modelo. Dê a uma plantação de BECCS x dólares por ano a partir de um imposto de carbono e você sequestrará y quilogramas de carbono da atmosfera.

A pseudo-racionalidade então forneceu a ilusão de que as mudanças climáticas poderiam ser reduzidas a um simples problema de álgebra. Claramente, é necessário outro tipo de economia política – o ecossocialismo. Esse método deve nos permitir pensar em termos de ponderações e equilíbrio entre objetivos discretos e incomensuráveis, bem parecidos com os cálculos de Kantorovich no Lago Ladoga, sem que o dinheiro ou outros equivalentes universais distorçam os planos globais.

Isso não quer dizer que os modeladores não tenham noção disso – na verdade, muitos engenheiros de sistemas entendem que uma enorme revolução nos sistemas energéticos, cortes drásticos no consumo individual e uma redistribuição radical de recursos do norte ao sul global são necessários para criar uma sociedade justa com uma biosfera estável.

Não obstante, assim como os cientistas que pesquisam os limites planetários, muitos modeladores carecem de um programa político que seja capaz de realizar a transformação com a qual sonham. A posição deles é como a de Kantorovich no auge de sua influência na década de 1960 – prestígio e conhecimento não podem mudar o mundo quando bloqueados por poderosos interesses investidos.

A ciência combinada com um grande movimento social pode ser uma força poderosa, como o movimento anti-armas nucleares durante a Guerra Fria. Nada assusta mais os neoliberais do que a ciência radical aliada aos movimentos sociais, mas até que tal união surja, eles têm pouco a temer. Sem uma ruptura política drástica, os modeladores continuarão a serem forçados a depender de deus ex machinas cada vez mais improváveis, como os BECCS e a geoengenharia solar. Embora os críticos da esquerda frequentemente acusem os socialistas de pensamento mágico, a verdadeira fantasia é um futuro em que o capitalismo se restrinja aos limites planetários.

Delineando e escolhendo futuros

O socialismo de Meia-Terra é um projeto de utopia científica, mas isso não significa que estejamos restritos às ferramentas e conceitos que o próprio Neurath utilizou. Até mesmo a matemática sofisticada de Kantorovich dificilmente poderia ser vista como ciência de ponta atualmente. Embora os cálculos estáticos e pontuais realizados usando programação linear sejam uma ferramenta valiosa no gerenciamento de qualquer projeto complicado – o método é onipresente na matemática aplicada contemporânea, inclusive no planejamento de sistemas de energia renovável – os planejadores globais precisarão de outras ferramentas para permitir que os administradores locais atendam as necessidades das pessoas às quais eles servem, ao mesmo tempo em que possam atingir metas globais, como reflorestamento ou comércio de longa distância.

O cálculo in natura não significa substituir o dinheiro por uma ineficiente economia de escambo (x quilowatts-hora de energia sendo equivalente a y alqueires de grãos), mas sim utilizar um sistema de informação que permita que se enxergue a maneira como bens diferentes se relacionam entre si como um todo. Atender às necessidades da natureza e da humanidade é fundamentalmente um objetivo material, medido em alimentos e moléculas de carbono, e enxergar o mundo em termos de unidades naturais nos permite confrontar diretamente as ponderações e escolhas complexas sem a ofuscação causada pelo dinheiro.

Muitos esquemas de planejamento propostos anteriormente dependem do tempo de trabalho como uma métrica universal para organizar a produção e a distribuição. Tais esquemas despendem um enorme esforço para projetar um sistema que corrija as inevitáveis distorções criadas por esse estranho tipo de dinheiro ou “voucher de tempo” porque é complicado levar em conta o fato de que alguns trabalhadores são mais eficientes do que outros, ou que algum trabalho depende de maior especialização. O objetivo do socialismo não é replicar o mercado, mas permitir que a humanidade regule conscientemente a si mesma e o seu intercâmbio com a natureza.

Como um experimento mental, deixando de lado os aspectos práticos da política por um momento, imagine que uma revolução ecossocialista aconteça amanhã. Talvez as Nações Unidas se tornassem um parlamento global, com nações e regiões agindo como unidades federadas com seus próprios poderes delegados. Qualquer que seja a aparência de tal governo mundial, ele deve ser democrático e de base ampla para evitar erros cometidos por regimes socialistas anteriores.

O novo regime, composto por representantes de todo o mundo, deve começar imediatamente o árduo trabalho de planejar a economia mundial, mas primeiramente eles encarregam engenheiros sociais de realizar alguns cálculos rápidos sobre o equilíbrio das necessidades humanas com os limites planetários e os atribuí a uma nova agência para o nosso futuro planetário chamada de, digamos, Gosplanta (nos perdoe). Pense nisso como algumas estimativas iniciais de verso de envelope sobre as escolhas e compensações que nosso parlamento imaginado terá de enfrentar.

O objetivo inicial da Gosplanta seria conceber vários futuros que iluminem o quanto da natureza poderia ou deveria ser humanizada para fornecer à economia global os recursos necessários. Poderia modelar futuros que alocassem maior ou menor uso de energia per capita; que assumissem diferentes taxas de progresso tecnológico ou de infraestrutura; e que se comprometessem com vários graus de renaturalização, tornando visíveis as diferentes obrigações que as pessoas terão de assumir se quiserem atingir certos objetivos ecológicos.

Para que até mesmo uma versão simples dessa simulação possa funcionar, entretanto, as informações devem ser coletadas em escala global e devem ser estabelecidos protocolos que possam traduzir a realidade caótica em unidades naturais. O corpus científico sobre os limites planetários permitiria que os planejadores da Gosplanta expressassem matematicamente duas restrições essenciais: limitar a extração para manter a biosfera saudável, e ao mesmo tempo distribuir equitativamente recursos naturais suficientes para suprir as necessidades humanas.

Em um plano possível, metade do Planeta Terra seria reservada para renaturalização para limitar o ecocídio da sexta extinção em massa. Esta é a “Meia-Terra” que inspira o “socialismo da Meia-Terra”, um conceito defendido por E. O. Wilson e outros conservacionistas porque a mudança no uso da terra – muitas vezes realizada pela indústria da carne – é o principal impulsionador do atual evento de extinção em massa. Proteger tanta terra exigirá mudanças significativas (especialmente em termos de consumo de carne), mas a conservação deve abjurar sua herança colonial. Existem fortes razões éticas e até mesmo ambientais para um programa de conservação de esquerda radical; afinal, as terras indígenas sequestram mais carbono e abrigam maior biodiversidade do que a natureza preserva. De fato, o Socialismo de Meia-Terra é um complemento ao movimento global Land Back (“Devolva as terras”, em tradução livre).

Além da restrição territorial de metade da Terra passando por renaturalização, os cientistas já forneceram números globais sobre uma miríade de outros limites ecológicos, desde as quantidades máximas de nitrogênio e fósforo que podem ser usadas como fertilizante (68 milhões e 6,8 milhões de toneladas por ano, respectivamente) sem causar eutrofização em massa à água doce disponível para consumo, até o carbono que pode ser emitido (1,8 toneladas por pessoa por ano para ficar em 2 graus Celsius de aquecimento, e menos ainda para a meta mais ambiciosa de 1,5 grau). Outras restrições aos níveis aceitáveis de poluição podem ser encontradas na literatura de saúde pública — por exemplo, partículas finas suspensas na atmosfera devem ter uma média anual de 10 microgramas por metro cúbico ou menos. Nenhum desses limites deve ser tomado como imutável – o conhecimento científico reflete não apenas as técnicas e a teorias mais recentes, mas também preocupações sociais que estão longe de ser “objetivas”. Nosso parlamento imaginado encomendaria uma variedade de planos, incorporando uma variedade de futuros possíveis.

Para planejar a produção de energia e alimentos, a Gosplanta faria vários planos com diferentes cotas energéticas, como o proposto pela 2000-Watt Society (Sociedade dos 2000-watts), e garantiria que todos no mundo tenham acesso a uma dieta nutritiva. Essas escolhas, como muitas das outras restrições à Gosplanta, seriam todas decisões sociais.

Alguns estudiosos têm se aventurado a imaginar cotas energéticas inferiores a 500 watts, o que seria menos de um vigésimo do uso atual dos EUA. Metas de maior conservação são possíveis – só que elas exigiriam restrições espartanas sobre novas roupas, eletrodomésticos, transportes, eletricidade e espaço de moradia. A Gosplanta não precisaria fazer essa escolha por todos; eles poderiam gerar muitos planos, cada um com sua própria cota energética, e deixar que o povo e seus representantes decidissem qual plano melhor equilibraria as necessidades da biosfera e da humanidade.

A programação linear é um protocolo poderoso, capaz de transformar essas várias restrições (expressas em unidades naturais) em planos concretos. Qualquer pessoa pode inserir limites ao uso de recursos e as necessidades mínimas da humanidade e “girar a manivela”. Os engenheiros sociais da Gosplanta não precisariam acolher nenhuma preferência explícita entre dietas, sistemas energéticos e outras variáveis. Não há nenhuma exigência inerente em seu modelo de programação linear de que o mundo seja vegano ou que todas as fontes de energia sejam renováveis.

Em nosso exemplo básico, os planejadores estabelecem dois objetivos principais – fornecer alimentos e energia suficientes para as necessidades básicas de todos e permanecer dentro dos limites planetários – bem como a configuração produtiva básica necessária para satisfazer esses objetivos por diferentes meios. A peça final do quebra-cabeça é chamada de função objetivo: a quantidade que o algoritmo de programação linear deve maximizar ou minimizar.

Uma empresa capitalista pode decidir minimizar os custos ao executar um algoritmo de programação linear em suas próprias operações; os planejadores da Gosplanta, por outro lado, podem optar por minimizar o uso da terra, as emissões de carbono ou alguma outra métrica que combine vários objetivos. O modelo de programação linear produzirá então a melhor combinação de fontes de energia e alimentos com relação a essa função objetivo ou informará ao usuário que o plano não é possível dentro das restrições fornecidas. (Devemos enfatizar que o que estamos fazendo aqui é um exemplo de brincadeira, projetado para ilustrar como uma sociedade futura poderia pesar e equilibrar suas escolhas em unidades naturais, e não para tentar argumentar que a otimização linear simples poderia administrar o mundo.)

Para entender como a programação linear digere suas entradas, considere a questão da dieta. Todas as pessoas podem ter uma dieta saudável, mas há várias maneiras da Gosplanta atingir esse objetivo. Se a grande maioria das pessoas fosse onívora, isso imporia um custo per capita de cerca de 2,5 acres de terra e 2,25 toneladas de carbono por ano. O vegetarianismo se sai muito melhor, consumindo apenas um terço de acre por pessoa e 1,5 toneladas de carbono. O veganismo ainda reduziria um pouco mais o uso da terra e as emissões de maneira mais substancial, para pouco mais de uma tonelada por pessoa. Uma série de outras reformas poderia – e de fato deveria – melhorar muito mais esses números.

Ainda que os burocratas da Gosplanta não preferissem explicitamente nenhuma dieta, seu algoritmo de programação linear provavelmente optará pelo veganismo porque isso satisfaz o requisito de alimentar a todos com o menor impacto ambiental. Se a sociedade resistisse a mudar para uma dieta herbívora, os planejadores poderiam incluir alguma produção de carne. No entanto, o aumento das emissões e do uso de terras agrícolas afetarão negativamente outros aspectos do plano total. A programação linear é apenas uma ferramenta, mas é uma ferramenta que permite a política Neurathiana de enxergar e decidir democraticamente quais ponderações e equilíbrios de prós e contras aceitar.

A transição para um mundo vegano imporia os maiores sacrifícios ao carnívoro norte global, o que não deixaria de ser justo – o norte-americano médio come quase 10 vezes mais carne do que o africano médio. Uma “dieta de saúde planetária” quase vegana delineada por um estudo recente no EAT-Lancet propõe uma cota de 2.500 calorias por pessoa, que não apenas diminuiria o impacto da humanidade sobre o meio ambiente, mas também evitaria cerca de 11 milhões de mortes por ano. Haveria menos desnutrição, bem como menos condições como diabetes tipo 2 e doenças cardíacas causadas pelo consumo excessivo de carne e de certos alimentos processados. Substituir a forragem do gado por grãos e leguminosas aumentaria a fixação natural de nitrogênio (e, portanto, reduziria a necessidade de uma indústria de fertilizantes dependente de combustíveis fósseis), ao mesmo tempo em que permitiria que o pasto fosse renaturalizado.

Um modelo de programação linear mais desenvolvido poderia contabilizar esses benefícios em detalhes mais granulares, refletindo melhor a miríade de benefícios sociais, éticos e ecológicos do veganismo. As questões morais mundiais nunca serão resolvidas por um computador, mas o planejamento algorítmico poderia informar a discussão.

Os engenheiros sociais abordariam a questão energética de maneira semelhante à alimentação. Cada pessoa na Terra precisaria receber uma cota energética, seja 2.000 watts ou outro número, mas, novamente, há muitas maneiras de se fazer isso. Suponha que a Gosplanta tenha oito fontes principais de energia entre as quais escolher: células fotovoltaicas de energia solar, usinas de energia solar concentrada, turbinas eólicas, biocombustíveis, energia nuclear, metano (“gás natural”), carvão e petróleo. Para simplificar, e já que o movimento antinuclear teria sido um elemento vital na revolução socialista de Meia-Terra, os planejadores não incluiriam a energia nuclear em seus cálculos iniciais.

Cada uma dessas fontes de energia tem um custo associado a ela, expresso em unidades naturais da área de terreno utilizado e de emissões de carbono, mas não em dinheiro. Os biocombustíveis, por exemplo, hipoteticamente emitem zero carbono (embora isso geralmente não seja verdadeiro), mas possuem uma baixa “densidade energética”. A densidade energética é a relação entre a energia e área de terras, frequentemente expressa como watts por metro quadrado. Enquanto o carvão ou o petróleo podem ter uma densidade energética de 10.000 watts por metro quadrado, os biocombustíveis geralmente possuem míseros 0.5. Isso significa que são necessárias várias ordens de magnitude a mais de terras para produzir uma quantidade de energia semelhante à dos combustíveis fósseis. As energias solar e eólica são as melhores esperanças para energias renováveis, com densidade energética de 2 a 20 watts por metro quadrado – um tanto mais alto que os biocombustíveis, mas ainda muito menos que os combustíveis fósseis. O problema imediato, contudo, é que a maior parte do consumo energético (por exemplo, nos transportes e na indústria) não está interligada à grade elétrica e ainda não pode aproveitar ao máximo essas fontes de energia, e atualmente ainda depende de combustíveis fósseis.

Um modelo mais sofisticado poderia adicionar outros custos, como os custos ambientais e sociais da mineração de vários materiais. A ideia, no entanto, permanece simples: a programação linear exige que a Gosplanta apenas estabeleça as metas que já tiverem sido decididas democraticamente, além de coletar as informações sobre os custos materiais de cada variável.

Os objetivos energéticos de longo prazo do Socialismo de Meia-Terra são nítidos: a eletrificação total da indústria e dos transportes e a utilização generosa de hidrogênio limpo onde os combustíveis permanecerem necessários, com o máximo de energia possível sendo fornecida pelos ventos e pelo sol. Ainda assim, a transformação seria extraordinária: o fornecimento da eletricidade necessária exigiria um aumento de 40 vezes na energia eólica e de 170 vezes em painéis fotovoltaicos com relação aos números de 2015. Como o pesquisador do setor de energia Vaclav Smil aponta, “tamanho aumento em todos os tipos de capacidades – projeto, permissões, financiamento, engenharia, construção, todos tendo de crescer entre uma e cinco ordens de magnitude em menos de duas décadas – está muito, muito além de qualquer coisa que tenha sido testemunhada em mais de um século de desenvolvimento dos sistemas energéticos modernos.” Mesmo uma sociedade ecossocialista que esteja completamente comprometida com a superação do desafio energético teria dificuldades para realizar essa transformação.

Ponderações e escolhas informadas

Depois de calcular os custos em terras e emissões de várias dietas e sistemas energéticos, os burocratas da Gosplanta teriam dados suficientes para rodar um modelo de programação linear simplificado e fornecer um plano global básico. Assim como alguns dos primeiros IAMs, como o modelo DICE de William Nordhaus, pelo qual ele conquistou o Prêmio Nobel, o programa que construímos é básico o suficiente para ser executado em um laptop comum em menos de um segundo. No entanto, como o modelo de Nordhaus, o nosso é simplificado demais para ser utilizado na vida real. (Tais limitações nunca são o suficiente para parar os economistas.)

Os planejadores poderiam estabelecer várias restrições, incluindo uma cota energética; vários limites planetários, como a temperatura global ou a quantidade de terras reservadas para a vida selvagem; e o estado da infraestrutura e da indústria (por exemplo, até que ponto eles estariam eletrificados?).

A Gosplanta teria que decidir se iria minimizar o uso das terras ou as emissões de CO2, além de estabelecer cotas de energia e alimentos. Os números subjazendo essas variáveis se baseiam no estado atual da tecnologia em vários campos – portanto, nada de fusão a frio ou reatores de reprodução rápida. O único elemento futurista no nosso modelo é a população, que estabelecemos em 10 bilhões de pessoas – a população global estimada em 2050.

Onde estariam as dificuldades imediatas para uma transição? De maneira pessimista, os engenheiros da Gosplanta poderiam assumir que o transporte e a indústria permaneceriam não eletrificados e consumiriam a maior parte da energia – como é o caso dos EUA hoje – e, portanto, exigiriam grandes quantidades de combustíveis fósseis ou biocombustíveis para atender às necessidades da humanidade. Então, três objetivos principais são estabelecidos: fornecer uma cota de 2.000 watts para todos, limitar o aquecimento a 2 graus Celsius e retornar metade do planeta a um estado selvagem.

Com suas metas definidas, tudo o que os planejadores da Gosplanta precisam fazer é escolher uma função objetivo – e decidem minimizar o uso da terra. Entretanto, quando a agência executa seu modelo, descobre que os objetivos do plano não podem ser alcançados, mesmo se todos se tornassem veganos. Os biocombustíveis representariam uma parcela tão grande do orçamento energético global que não haveria como cultivar alimentos e culturas voltadas à geração de energia o suficiente sem transgredir o limiar de meia-Terra.

Isso implicaria em geoengenharia ou em perda de biodiversidade causada pelas enormes plantações de biocombustíveis. Se quisessem, a Gosplanta poderia adicionar essas terríveis possibilidades ao modelo e relaxar suas restrições sobre os limites planetários. É importante ressaltar que qualquer modelo efetivamente utilizado para o planejamento deve simular a mudança ao longo do tempo, com emissões acima da cota agora e emissões menores ou mesmo negativas no futuro. Ainda que as coisas pareçam terríveis, é cedo demais para desistir da utopia.

Os planejadores têm várias opções. Uma seria reduzir a cota energética para 1.500 watts, o que viabilizaria o restante do plano mesmo sem a eletrificação do trânsito e da indústria. O modelo mostra que 57% da superfície habitável do planeta poderia ser deixada para a natureza (acima dos 15% atuais), 26% seria dedicada aos biocombustíveis (acima dos 0,4% atuais) e 18% à agricultura (abaixo dos 50% atuais).

A premissa que permite que esse plano funcione é que praticamente todos seriam veganos (com exceções feitas para nações indígenas e talvez alguns pastores tradicionais). O modelo também mostra que, como o uso energético seria tão baixo, o metano poderia ser utilizado para alguns processos industriais e geração elétrica, e mesmo assim o aquecimento estaria limitado a 2 graus Celsius.

Ainda que o plano seja viável, os planejadores relutam em criar uma grande indústria de biocombustíveis. Eles engendram outra opção, simulando restrições rígidas à propriedade de carros particulares e processos industriais desnecessários, que reduzem pela metade a demanda por combustíveis sólidos e líquidos. Neste plano modificado, as plantações de biocombustíveis ocupam apenas 21% da superfície planetária. Uma opção ainda mais ambiciosa reduz a cota energética para 1.000 watts e exigiria plantações de biocombustíveis em apenas 13% da superfície da Terra, reservando surpreendentes 70% para a vida selvagem.

Notícias maravilhosas! Mesmo com premissas bastante pessimistas, a Gosplanta consegue traçar diversos caminhos rumo a um planeta igualitário e sustentável. Todavia, a elaboração do projeto não pode parar por aí. Antecipando possíveis demandas de ativistas climáticos, os planejadores da Gosplanta elaboram outro projeto que opta pela corajosa meta de limitar o aquecimento a apenas 1,5 graus Celsius. Após reexecutar o algoritmo com a cota de 1.500 watts e o cenário de uso restrito de combustíveis, seu modelo mostra que essa meta exigirá que o setor de biocombustíveis se expanda para mais de 25% da superfície do planeta (acima dos 21% anteriores). O aquecimento ficaria abaixo de 1,5 grau Celsius, mas ao custo de retirar mais terras da natureza devido a restrições muito mais rígidas sobre os combustíveis fósseis.

Não há soluções fáceis aqui, e nosso modelo da Gosplanta esclarece as ponderações e difíceis escolhas exigidas em cada plano. Em última análise, um parlamento global teria de votar se o objetivo planetário mais urgente seria minimizar as mudanças climáticas ou preservar o habitat – ou se os planejadores deveriam voltar à prancheta para propor outros arranjos.

Outras opções tornam-se possíveis com novas infraestruturas e tecnologias. Talvez haja um importante avanço nos combustíveis de hidrogênio “verdes”, o que permitiria aos engenheiros sociais da Gosplanta perseguir o objetivo de eletrificação total. Isso leva ao seu plano mais ambicioso até agora: uma cota energética de 2.000 watts e 50% da terra sendo renaturalizada, tudo dentro do limite de aquecimento de 1,5 graus Celsius.

Neste projeto, a eletrificação permite que a Gosplanta aproveite ao máximo as energias solar e eólica, que apresentam densidades energéticas muito maiores do que os biocombustíveis; com o uso da terra minimizado, colossais 81% das terras poderiam ser deixadas para a natureza (preservando assim 95% de todas as espécies). Os planejadores descobrem que até 24% da população poderia ser onívora neste cenário, já que as restrições de terras são tão relaxadas que permitem o retorno de uma certa proporção de criações de animais. Evidentemente, um vibrante movimento pelos direitos dos animais ainda se oporia a isso por razões éticas, enquanto os epidemiologistas poderiam alertar contra a ameaça de doenças zoonóticas. O ponto, porém, é que os planos dos engenheiros sociais poderiam e iriam evoluir junto com mudanças infraestruturais e políticas.

A simplicidade do nosso modelo o leva a superestimar o papel dos biocombustíveis em uma transição no mundo real: na realidade, uma boa estratégia poderia ser restrições temporárias associadas à eletrificação rápida, com algumas tecnologias de remoção de carbono bastante limitadas sendo utilizadas para limpar as últimas emissões “difíceis-de-descarbonizar” como clínquer de cimento. Até mesmo neste caso, entretanto, a ponderação entre terras/energia continua sendo importante. A remoção de carbono, seja por meio de reflorestamento ou por BECCS, ocupa uma grande quantidade de terras.

Imagine que, para o curto prazo, o parlamento global opte pelo segundo plano modificado, com uma cota energética de 1.500 watts e restrições sobre o uso de combustíveis. É a melhor opção para as circunstâncias atuais, ao mesmo tempo em que permite que o uso energético cresça no futuro, à medida que infraestruturas mais sustentáveis forem sendo construídas. (Essa cota pareceria austera no norte global, embora fosse relativamente indolor para o sul global.)

O governo concorda em reduzir constantemente a propriedade de carros particulares até o ponto da abolição completa, uma Ferrari compacta de cada vez. O aço economizado dessa maneira pode ser reciclado em bondes e ônibus, enquanto os carros restantes (que funcionariam à base de eletricidade, hidrogênio ou biocombustíveis) são agrupados em uma frota da qual são retirados por indivíduos ou famílias para uso. Como a Gosplanta liquida o mercado imobiliário suburbano desde o início, milhões de trabalhadores da construção civil e comerciantes do ramo encontram trabalho na reforma e adaptação de edifícios para economizar energia e na adequação de mansões particulares e sedes corporativas para uso comunitário.

Gramados privados e campos de golfe podem ambos serem realocados para a re-naturalização ou transformados em jardins comunitários. Melhorias e ampla abrangência nos processos industriais para reduzir a poluição, o uso de combustíveis e o desperdício são realizadas em praticamente todos os setores. Enormes faixas industriais é tornada racionalizadas quando a própria “obsolescência planejada” se torna obsoleta. Os recursos são redirecionados para a construção de painéis solares, turbinas eólicas, isolamento supereficiente e ferrovias.

Grande parte das pastagens mundiais é convertida em plantações de biocombustíveis para a descarbonização de curto prazo dos transportes e da indústria, enquanto o restante é re-naturalizado – o que, por sua vez, requer um quadro expandido de ecologistas e silvicultores treinados tanto na ciência convencional quanto no conhecimento indígena tradicional.

O trabalho da Gosplanta não seria ditar como o futuro deve ser, mas fornecer planos ao público e seus representantes. Para a Gosplanta, o processo seria mais importante do que o produto final.

Cada parte do socialismo de Meia-Terra deve ser vista não como uma verdade inquestionável, mas como um ponto de partida para uma discussão mais profunda sobre como o socialismo deve funcionar em uma era de crise ecológica. Os planejadores, os parlamentares e as pessoas nunca terão pleno conhecimento da natureza e da sociedade, o que levará a pontos cegos que nem mesmo os planos mais meticulosos serão capazes de abordar perfeitamente. Essas fragilidades devem ser esperadas em qualquer plano que enfrente as catástrofes do Antropoceno.

Porém, nossa esperança é que o socialismo de Meia-Terra se diferencie ao produzir uma sociedade que revise a si mesma constantemente em direção a uma civilização mais justa e ambientalmente mais estável por meio da escolha consciente. Isso não significa que criar uma utopia global será fácil. Não obstante, uma sociedade socialista enfrenta esse desafio de olhos abertos, ao invés de confiar nos poderes míticos do mercado. Em tal luta reside a possibilidade da liberdade humana em um mundo natural de vontade própria.

Sobre os autores

é doutorando em engenharia ambiental na Universidade de Harvard e co-autor de "Half-Earth Socialism", a ser publicado pela Verso na primavera de 2021.

é um historiador ambiental e pós-doutorado William Lyon Mackenzie King na Universidade de Harvard e co-autor de "Half-Earth Socialism", a ser publicado pela Verso na primavera de 2021.

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Published in Ecologia, Economia and Política

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