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O presidente Ronald Reagan e a primeira-ministra britânica Margaret Thatcher em um pódio fazendo um discurso no Rose Garden do lado de fora do Salão Oval da Casa Branca em Washington DC, 23 de junho de 1982. (Keystone / Hulton Archive / Getty Images)

O mercado não pode nos salvar

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Tradução
Caio Valiengo

Da profunda crise econômica ao caos climático, o mundo está em chamas - e o livre mercado não pode apagar esse incêndio. Precisamos de intervenção maciça do Estado na economia ao mesmo tempo em que o democratizamos radicalmente.

Os políticos tradicionais hoje em dia estão constantemente procurando desculpas para justificar sua divergência com o dogma do mercado. Da pandemia à crise energética, da guerra na Ucrânia e da inflação crescente, crises sempre novas estão forçando os formuladores políticos a usar a intervenção estatal pesada para sustentar os mercados, o que os neoliberais já viram um dia como seu grande inimigo.

Essas intervenções estatais justificam-se como medidas emergenciais necessárias para garantir a continuidade das operações econômicas antes de um cobiçado retorno à normalidade do mercado — que, no entanto, é sempre adiado. Basta testemunhar o Banco Central Europeu dizendo em abril que pararia de comprar títulos, apenas para anunciar uma nova compra de títulos, logo em seguida, para lidar com os crescentes custos de empréstimos em países como a Itália.

Sem retorno ao antigo normal

Até o momento, o intervencionismo estatal que vimos vindo tanto da centro esquerda quanto da centro direita na última década, e mais claramente desde a explosão da pandemia de COVID, seguiu de perto essa lógica de facilitar o retorno às “condições normais de mercado”. Até agora, no entanto, tornou-se evidente que não há como voltar ao antigo normal; as condições econômicas mudaram drasticamente e as premissas e expectativas que acompanharam a era da globalização neoliberal não oferecem mais nenhuma orientação confiável.

Diante dessa tentativa ridícula da corrente política dominante de usar o intervencionismo estatal para restaurar a sociedade de mercado e proteger sua riqueza, a esquerda deveria aproveitar para recuperar a tradição socialista do intervencionismo estatal progressista, como meio de transformar a sociedade e mudar as relações de poder.

“O objetivo da esquerda era conquistar novas trincheiras no aparato estatal em expansão ao mesmo tempo em que o democratizaria radicalmente.”

O uso proativo do Estado como meio de construção de uma nova sociedade era comum em diferentes vertentes da esquerda. Não era apenas uma ideia defendida pelos leninistas que visavam construir uma nova política econômica com a propriedade estatal cobrindo praticamente todos os setores, mas também defendida de maneiras diferentes pelos social-democratas, que lideraram a transformação dos antigos Estados liberais em Estados de bem-estar social, com empresas estratégicas nacionalizadas e aplicação do planejamento estatal para reorganizar a economia e orientá-la para fins socialmente desejáveis.

O Estado era entendido como um “campo de batalha da luta de classes”, como disse Nicos Poulantzas, e o objetivo da esquerda era conquistar novas trincheiras no aparato estatal em expansão ao mesmo tempo em que o democratizaria radicalmente.

O mito do Estado fraco

Essa visão do intervencionismo estatal de esquerda perdeu parte de seu fascínio após a derrota da classe trabalhadora nas décadas de 1970 e 1980, e por causa do colapso do bloco soviético e da evidência de sua ineficiência econômica. A revolução neoliberal conseguiu convencer os cidadãos em um mundo globalizado de que a intervenção do Estado estava condenada.

Políticos neoliberais como Bill Clinton apresentaram a globalização como “o equivalente econômico de uma força da natureza, como o vento ou a água” que seria estúpido tentar reverter, enquanto Barack Obama, em 2016, a enquadrou em termos semelhantes como “um fato da natureza”. A política foi apresentada como a gestão da globalização inescapável, com decisões econômicas limitadas àquelas aceitáveis ​​para investidores internacionais, com alguns setores da esquerda moderada e branda aceitando amplamente essas premissas ideológicas.

No entanto, agora nos encontramos em uma conjuntura em que essa visão da globalização como inevitável e permanente, e do Estado como uma criatura fraca, demonstrou ser empiricamente duvidosa e historicamente anacrônica. Durante a pandemia, políticos de centro esquerda e centro direita foram forçados a criar novos dispositivos emergenciais de assistência social para ajudar os trabalhadores desempregados, e agora são forçados – muito contra suas crenças – a aplicar formas de controle de preços e anular fundos para lutar contra a crise do custo de vida. O intervencionismo estatal de emergência tornou-se o novo normal, e o retorno à sociedade de mercado normal é continuamente adiado.

“O projeto neoliberal e a própria existência da globalização sempre tiveram como premissa o patrocínio estatal, por exemplo, estabelecendo os marcos regulatórios necessários e reprimindo protestos.”

Parte da mudança que estamos testemunhando não é tanto prática quanto epistêmica – ou seja, tem a ver com a forma como percebemos e conhecemos o mundo. De fato, contrariamente ao evangelho neoliberal, o Estado e o intervencionismo estatal nunca realmente desapareceram. Como muitos economistas políticos mostraram, o projeto neoliberal e a própria existência da globalização sempre tiveram como premissa o patrocínio estatal, por exemplo, estabelecendo os marcos regulatórios necessários e reprimindo protestos. Mas, no nível retórico, essa narrativa do “Estado fraco” teve importantes implicações ideológicas: serviu para restringir o leque de políticas aceitáveis ​​àquelas que eram do interesse do capital internacional. Essa ficção foi auxiliada pelas condições peculiares da “Grande Moderação”, a era entre meados dos anos 1980 e 2000 marcada por volatilidade macroeconômica limitada, inflação baixa e taxas de juros baixas.

Sob a ilusão de estabilidade dos “longos anos 90”, a política econômica aparecia como se estivesse no piloto automático, redundando em intervenções limitadas: pequenos “empurrões” ao mercado, que poderiam ser apresentados como exercícios limitados de “correção de rumo” – decisões mais técnicas do que políticas. No entanto, a crise do capitalismo é agora tão profunda que não é mais possível manter essa pretensão.

As decisões econômicas aparecem imediatamente como decisões políticas – portanto, aquelas em que estão em jogo diferentes interesses, no qual muitas vezes os interesses das empresas continuam sendo colocados antes dos interesses dos trabalhadores. Isso ficou evidente com o Bidenomics, onde o pacote de infraestrutura que era do interesse das empresas foi aprovado, enquanto as medidas sociais do chamado pacote Build Back Better foram interrompidas no Congresso norte-americano – por causa da oposição de centristas democratas que expressaram grandes preocupações na ajuda estatal aos pobres, ao mesmo tempo que aplaudiram a ajuda estatal aos empresários.

Recuperando o Estado

O desafio estratégico agora é corresponder a essa realidade econômica em que o intervencionismo estatal pesado se tornou o novo normal, com uma visão em que essa intervenção não seja vista apenas como uma medida fragmentada e de última hora para reviver o mercado. Os socialistas precisam reivindicar uma visão construtiva do Estado, o que a economista Mariana Mazzucato chamou de “Estado orientado para a missão”, que fazia parte da tradição da social-democracia.

Do New Deal de Franklin D. Roosevelt aos social-democratas na Europa, a esquerda do século XX recorreu à criação de agências estatais e grandes planos de emprego público para fomentar o desenvolvimento econômico, garantir a igualdade social e reequilibrar as relações de poder entre trabalho e capital.

São muitas as questões que exigem intervenção imediata do Estado: desde a crise do custo de vida que exige o retorno dos controles de preços e salários indexados à inflação até as mudanças climáticas que exigem uma aceleração dos investimentos e ações voltadas à redução de emissões e adaptação ao clima. Mas, além de medidas específicas, o que se pede é também uma nova visão de como o intervencionismo estatal pode ser usado não apenas como um paliativo contra emergências imediatas, mas também como parte de um plano de longo prazo para alcançar a segurança econômica e ambiental que o mercado está incapaz de fornecer – e redistribuir o poder das oligarquias econômicas, que condenaram nossa sociedade ao caos permanente, para os trabalhadores e cidadãos comuns.

Sobre os autores

é doutor em mídia e comunicação pelo Goldsmiths College (University of London) e professor do Departamento de Humanidades Digitais e diretor do Centro de Cultura Digital do King’s College em Londres. Já publicou no Brasil o livro "Redes e Ruas: mídias sociais e ativismo contemporâneo" e "Máscaras e bandeiras: populismo, cidadanismo e protesto global" pela Editora Funilaria.

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Published in América do Sul, Análise, Economia, Europa and Sociologia

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