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(Foto da Assessoria de Comunicação da prefeitura de Goianinha)

Precisamos fortalecer o elo de resistência entre socialistas e indígenas

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Hoje é o Dia dos Povos Indígenas. Para celebrar, conversamos com cacique e professor Luiz Katu, uma das principais lideranças indígenas do Rio Grande do Norte, único Estado do país sem território demarcado, para saber como a aliança com partidos de esquerda e a demarcação podem combater o desmatamento ilegal promovido pelo agronegócio na região.

UMA ENTREVISTA DE

Gercyane Oliveira

O enfrentamento ao agronegócio no Rio Grande do Norte (RN) deixa um rastro de sangue e terror. Em um Estado onde foi um dos últimos a assumir a existência de povos indígenas em seu território, não é de se surpreender os constantes ataques aos povos originários. 

A história oficial acerca da presença indígena no RN, especificamente, tem graves lacunas de estudos acadêmicos. Contudo, o censo de 2022 já identificou 10 mil indígenas no Estado. A novidade no censo é o questionário de abordagem com perguntas sobre infraestrutura, educação, saúde, hábitos e práticas tradicionais. E mesmo diante da presença incontestável dos povos indígenas, boa parte da cultura indígena foi sendo omitida. Ainda que hoje sejam reconhecidas pelos órgãos estatais, as comunidades ribeirinhas e tradicionais sofrem diversas violações aos seus direitos básicos e não têm a garantia de efetivação dos seus direitos. Para resistir e poder viver em paz, se articulam em busca de reorganização, reestruturações culturais, sociais e políticas também com organizações e partidos de esquerda para que se fortaleça o elo pela transformação e avanços imediatos.

No Brasil visceral, o movimento indígena vem lutando por direitos e contra o genocídio desde a década de 1970. Já no RN e em todo o território nacional a luta é para que não se perca direitos já garantidos. O cenário político nacional que o governo Jair Bolsonaro proporcionou, foi o pior desde a promulgação da Constituição Federal de 1988 e ainda exala o legado de destruição. O novo governo Lula, ainda precisa se locomover no lamaçal deixado e trabalhar na desbolsonarização em todos os aspectos. O PT tem a chance de fazer valer sua promessa, visto que ainda paira denso no ar, a renovação da licença de operação de Belo Monte.

Em conversa com a Jacobin Brasil, a liderança indígena Luiz Katu, discutiu a conjuntura nacional e local do RN, demonstrando a hegemonia das classes dominantes da direita que têm interesses contrários aos direitos dos povos indígenas. O fortalecimento da organização política desses povos é resultado de lutas conjuntas dos socialistas e povos tradicionais.


GO

Como se deu o início da sua atuação política e como liderança indígena?

LK

Sou o cacique Luiz Katu Potiguara, da aldeia Katu, que está entre os municípios de Goianinha e Canguaretama, no Rio Grande do Norte, litoral sul. A aldeia Katu está numa linha litorânea que inicia no município de Goianinha e finaliza na primeira linha sequencial no município de Baía da Traição, lá na Paraíba. 

Os potiguara conseguiram permanecer por mais de 500 anos nessa “linha” até os dias atuais. Hoje tenho 46 anos, mas, desde a minha infância venho trabalhando com meus pais. Quando pequeno, ajudava na agricultura familiar, na coleta de frutos silvestres, principalmente a mangaba. Quando cresci, atuei com meu pai no cultivo da cana de açúcar, porque a cana invadia os territórios da aldeia e a coleta ficou escassa. A agricultura ficou dificultada e para continuar sobrevivendo na aldeia, muitas vezes foi usada nossa mão de obra. Até hoje a mão de obra indígena ainda é usada para a colheita e adubação da cana de açúcar. Um serviço praticamente escravo. 

“Há uma retirada sem precedentes de madeira, sucupira, ipê e pau ferro por madeireiras ilegais. Temos feito um enfrentamento. Já sofri emboscadas por causa disso e tentativas de homicídio.”

Venho de uma família em que a minha mãe é potiguara do litoral mesmo e a minha avó materna do Gramació, que hoje é Vila Flor e Gramació na língua tupi, quer dizer atuar na moita. Nosso povo nunca gostou de estar aldeados em missões jesuítas e Gramació se tornou uma cidade. Obviamente, lá nossos parentes foram extintos e procuramos outros espaços de resistência, como Katu (onde o rio nasce) e Katuzinho (onde o rio deságua). Aí forma o ciclo contínuo às margens do rio Katu. Cresci vendo as devastações e retiradas ilegais de madeira nas áreas da nascente do rio Katu e vendo a cana de açúcar tomando conta de tudo. 

Tive uma oportunidade que meus pais não tiveram que foi de ir a essa escola formal. Essa escola oferecia uma educação padrão para todos, não era uma educação escolar indígena. Mas, indo a essa escola não me adaptei e aos 7 anos quase desisti. Passei 4 anos da minha vida repetindo a primeira série do ensino fundamental e a partir daí comecei tendo que me adaptar a essa nova realidade da escola. Comecei a ser provocado ao ouvir que no Rio Grande do Norte não tinha mais indígena. Meu pai falava da nossa ancestralidade, minha mãe, das nossas histórias e na escola se falava o contrário. Isso me provocou e, seguindo na linha de estudo, resolvi fazer o magistério.

Fui convidado para ser professor na escola que estudei quando criança e ali eu levei a reflexão e, juntamente com eles, alterar essa narrativa que contavam oficialmente no Brasil ou no Rio Grande do Norte, especificamente, que nosso povo tinha sido dizimado. Me  levantei com outros indígenas da aldeia e a outros indígenas de outras etnias e aldeias no Estado. Fizemos um levante entre os anos 2000 e 2005 solicitando que o Estado brasileiro nos reconhecesse como um povo organizado, indígena, que habitava tanto o litoral do estado do RN como a região do Mato Grande do sertão do Estado e também na Chapada do Apodi. E a partir daí conseguimos, em 2005, uma audiência pública na Assembleia Legislativa do Rio Grande do Norte com deputados, com a representação do governo, o Ministério Público e a presença da Funai. Naquela audiência eu surgi como uma liderança para o meu povo e para os parentes por causa de uma fala que fiz. Foi um discurso que provocou os que estavam presentes, tanto os órgãos de governo como os indígenas. E aí surgiu o cacique Luiz Katu e comecei a representar eles em conferências, representando muitas vezes os que não podiam ir em assembleias, reuniões. 

Comecei a provocar outros campos da luta indígena, principalmente a educação. Como professor, e dentro da aldeia já havia um diálogo a nível estadual e em 2009 conseguimos realizar a primeira assembleia indígena do RN. Sou a liderança mais velha no movimento indígena que está ativa, lutando e participando de todas as ações que o movimento começou a reorganizar a partir dos anos 2000. Inclusive na construção da Articulação dos Povos Indígenas do Rio Grande do Norte (APIRN) e da APOINME para o Rio Grande do Norte, que é a articulação e organização dos povos indígenas no nordeste de Minas Gerais e Espírito Santo. 

Como uma das principais lideranças, tenho um papel fundamental de provocar e dar respostas à comunidade com relação ao etnodesenvolvimento, à educação, à saúde. Movimentamos os professores, fizemos reuniões com os pais e começamos a ensinar educação escolar indígena e o meu povo se levantou para registrar a escola no Educacenso, no MEC, para aparecer no sistema como escola indígena. Em 2012, a escola foi retirada do Censo porque diziam que nós não tínhamos como provar que éramos indígenas. Isso foi parar em uma audiência pública na Câmara Municipal de Canguaretama e convidei várias instituições e lideranças indígenas de outras aldeias para participar. João Luiz da Silva, que é a primeira escola indígena do estado do RN, voltou para o centro como escola indígena e legalizada. Me tornei em 2013 o primeiro diretor da primeira escola indígena do Estado. 

Fiquei na gestão dessa escola entre 2013 e 2017 e nesse período criamos três disciplinas específicas, etno história Tupi, com ensino bilíngue e jogos e brincadeiras indígenas. Conseguimos realizar em 2014 o primeiro seminário de Educação Indígena, com a presença da Unesco e do MEC. Nossa demanda era ter todas as escolas indígenas legalizadas no Estado, onde tivesse aldeia nas cidades, e ter uma educação específica, diferenciada, intercultural, bilíngue e que obedecesse a resoluções de educação escolar indígena. Além de ter gestão democrática nas escolas indígena, com professores que fossem indígenas, pertencente àquela etnia, trabalhando com isso. Foi uma demanda que conseguimos atingir. 

Tenho encabeçado aqui no Rio Grande, a luta urgente pela demarcação de terra, inclusive a Terra Katu Potiguara. Está com um processo de uma determinação judicial no STJ para se executar a demarcação, criar o GT e esse é o estudo da demarcação, mas até agora não foi iniciado pela Funai. Mesmo com uma determinação do STJ com relação à execução do nosso GT. Mas a demarcação continua travada e tem feito um levante dentro da aldeia para preservar a mata. No coração dessa APA, há uma retirada sem precedentes de madeira, sucupira, ipê e pau ferro por madeireiras ilegais. Temos feito um enfrentamento. Já sofri emboscadas por causa disso e tentativas de homicídio. Tenho me restringido muito ao ponto de modificar totalmente a minha rotina com relação a essa liderança e luta, para salvar as matas de nascentes que formam e que estão nos arredores da aldeia Katu. 

“Aqui no território Katu reunimos provas que é o agronegócio da cana de açúcar que tem provocado a destruição sem precedente, com o uso indiscriminado de dezenas de agrotóxicos.”

Atuo como um cacique para ajudar a preservar essas áreas da mata. Criamos no entre os anos de 2009 e 2013 e foi um período de criar uma ação de etno turismo, dentro da aldeia. Então, criei o etnoturismo dentro da aldeia Katu, para conhecerem um pouco a nossa cultura. Fazendo esse trabalho diariamente, falando da resistência, da nossa cultura, das nossas lutas atuais, para que as pessoas não venham só conhecer a aldeia, mas também sintam o que é viver hoje aldeado nas margens de um rio para demarcar um território. É uma luta pela permanência. É uma luta para garantir que a floresta continue de pé. 

GO

Você tocou num ponto muito importante sobre a questão da demarcação dos territórios sagrados e também dos territórios indígenas. Existe uma lentidão nesses processos e é um problema nacional que vários outros povos enfrentam. Nos fale um pouco mais de como anda o processo de demarcação desse território e como vocês estão lidando com o avanço anti-indígenas que pode envolver tanto os fazendeiros da região quanto às Forças Armadas do Estado? 

LK

No cenário político atual nós não temos uma perspectiva de demarcação para amanhã. O movimento indígena do RN tem usado outras estratégias para conseguir avançar em uma luta conjunta. Protocolando um documento, em nossas assembleias, seminários, audiências públicas mostrando as violações de direitos que estão acontecendo por falta da demarcação. E isso vai sendo entregue ao MP, junto aos processos que já colocamos. Nós temos aldeias que têm problemas de acesso à água. Tudo isso temos reunido e mostrado ao MP que tem provocado a Funai para que cumpra com o seu dever, com a sua missão, que é apresentar um relatório consistente para demarcação e homologação da terra. 

Aqui no território Katu reunimos provas que é o agronegócio da cana de açúcar que tem provocado a destruição sem precedente, com o uso indiscriminado de dezenas de agrotóxicos que são utilizados ao nosso redor. Pessoas já chegaram a morrer comprovadamente envenenadas por causa do contato que tiveram durante anos com esses venenos. Reunimos relatos, provas e vamos mostrando. Uma das formas mais consistentes de combater isso é demarcando o nosso território. Essa pressão que fazemos, geram investidas contra a nossa vida. Tivemos que pedir para incluir o cacique Manoel Alvim, da aldeia vizinha, no Programa de Proteção à Vida, porque ele foi ameaçado por fazendeiros. Mas a gente tem resistido. 

“Temos uma perspectiva neste novo governo Lula para que revoguem muitos dos decretos que do Bolsonaro que prejudicam a demarcação e a vida dos povos indígenas favorecendo o garimpo.”

Foi assim que a aldeia Katu entrou na fila do GT e conseguimos avançar com o primeiro estudo, que é a identificação e a delimitação do território. Esse estudo de identificação já foi entregue à Funai. O processo foi ao MP, onde analisou e viu os riscos que nós da aldeia Katu estamos sofrendo com agrotóxico e com a derrubada da floresta com o plantio de cana de açúcar em áreas de APP. 

GO

Os partidos de esquerda no Brasil vão criando frações nacionais de apoio e de solidariedade aos povos indígenas que se organizam e lutam contra a exploração capitalista. Com que meios concretos ou tipos de contribuição política você diria que os povos indígenas esperam receber de partidos de esquerda que defendem a transformação radical da sociedade? 

LK

Sim, muito bem lembrado essa questão dos partidos de esquerda. Uma das nossas estratégias de luta também é dialogar diretamente com alguns partidos que têm na sua política de ação lutar junto aos povos indígenas, defender os direitos fundamentais e defender o direito à terra. Além de defender o direito à educação específica, à saúde, ao desenvolvimento. 

Um desses partidos é o Partido Comunista Brasileiro (PCB). A base do PCB aqui no RN é aliada do movimento indígena no Estado e tem nos apoiado, inclusive quando vamos para essas ações em Brasília, que demanda muito custo para chegar de ônibus. Imagine alimentar 43 indígenas durante três dias de viagem na ida e volta. Não é fácil, porque lá no acampamento havia alimentação, mas no translado não tínhamos recurso. Para alimentar essa quantidade de indígenas, a gente dependeu muito não só dos partidos, mas também movimentos sociais, universidades, professores de instituições públicas e privadas que são de esquerda e que apoiam a causa indígena. Eles formam um elo fundamental para a luta se fortalecer e criar uma raiz. Um desses partidos também é o Partido dos Trabalhadores (PT). 

Temos diálogo com alguns parlamentares do PT e tentamos avançar para a defesa dos nossos direitos. Inclusive, temos uma perspectiva neste novo governo Lula, para que revoguem muitos dos decretos que foram assinados pelo ex-presidente Jair Bolsonaro que prejudicam a demarcação e a vida dos povos indígenas favorecendo o garimpo. E para que isso aconteça, o movimento indígena tem que estar alinhado, dialogando com esses partidos. É um movimento que vem sempre pensando e apresentado pelas lideranças para também fazer parte de um desses partidos para poder disputar. 

“Esse é o primeiro comunismo desse continente e já era praticado pelos povos indígenas.”

Aldear a política foi um dos temas do ATL em 2022 para fazer parte da tática. Nós percebemos que sem essa colaboração, e parceria direta, seria muito mais difícil alcançar e fazer a resistência frente ao que está acontecendo. O avanço do garimpo, o avanço do minério, o avanço do agronegócio, dos transgênicos nas áreas indígenas.

GO

As denúncias e as críticas que os povos indígenas fazem dessa sociedade capitalista e do seu poder destrutivo contra a vida humana e a natureza se mostram compatíveis com as leituras e as ideias socialistas sobre a mesma realidade. Você acha que há uma correspondência possível entre as perspectivas de luta indígena e luta socialista? Você acha que há possibilidade de construir um plano conjunto desses dois campos para a transformação da realidade? 

LK

Sem dúvidas! Eu me coloco como socialista. Quando chegaram aqui antes de qualquer outra civilização, e ao ter contato com os povos originários nesse continente, eles perceberam que nós tínhamos essa prática do comum de partilha e de construir junto, do decidir coletivamente. Esse é o primeiro comunismo desse continente e já era praticado pelos povos indígenas. Essa perspectiva do socialismo que é pregado pelos partidos nós entendemos como algo possível, de termos uma sociedade mais justa, diferente de outros planos políticos, principalmente os partidos que são abertamente capitalistas, que são partidos de direita e não dialogam numa perspectiva de ter uma equidade. 

É preciso preparar e empoderar as classes menos favorecidas, as minorias, para se reorganizarem. Em partidos de direita, a garantia da autonomia para nossos povos está muito longe. Percebemos que, num diálogo aberto com partidos de esquerda, essa perspectiva de fortalecer e de empoderamento para que o povo tenha autonomia nas suas ações, que tenha condições de tomar decisões próprias, de ser respeitado os seus espaços, é possível. A gente já percebeu isso em outros governos, como o governo Lula, ao criar a Comissão Nacional de Política Indigenista e agora o Ministério dos Povos Indígenas. Vem sendo feito a garantia da paridade no diálogo entre governo e movimento indígena. São políticas como essa que nós esperamos que aconteça, mas não só no papel, que elas sejam efetivas, que elas garantam essa autonomia para os povos. 

Percebemos no ATL, as falas que são feitas lá em plenária, as discussões e atividades, não se vê partidos de direita ali tendo perspectivas de fala que agrade ao movimento indígena, mas sim grandes lideranças de partidos de esquerda que estão juntos aos movimentos indígenas e junto às aldeias, às lideranças, formando um elo de resistência para que uma ação como aquela acontecesse. Assim como movimentos sociais muito importantes, como o MST, que garantiu alimentação naquele acampamento. Então, são perspectivas como essa de justiça social, de igualdade e partilha, que eu acredito.

Sobre os autores

cacique potiguara catu, é professor e membro da APOINME.

é tradutora, redatora e repórter na Jacobin Brasil. Também é jornalista no Opera Mundi, membro do Fórum Latino Palestino.

Cierre

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Published in América do Sul, Ecologia, Entrevista and Meio Ambiente

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