Press "Enter" to skip to content
(Foto: Gildo Mendes / jornal A Verdade / Reprodução)

Precisamos retomar os trabalhos da Comissão da Verdade

[molongui_author_box]

Ao contrário de outros países da América Latina, o Brasil não puniu os militares envolvidos na ditadura que assombrou o país durante 21 anos. Para entender como reparar essa atrocidade histórica, conversamos com Vivian Mendes, membra da ​​Comissão de Familiares de Mortos e Desaparecidos Políticos e candidata da UP que tinha como principal bandeira a luta contra a impunidade dos golpistas.

UMA ENTREVISTA DE

Gercyane Oliveira

Passados 3 meses da posse do novo governo Lula, ainda não foi reinstalada a Comissão Especial sobre Mortos e Desaparecidos Políticos (CEMDP) extinta pelo ex-presidente Jair Bolsonaro no penúltimo dia de seu mandato, em 30 de dezembro. 

O ministro dos Direitos Humanos, Silvio Almeida, na abertura da sessão da Comissão da Anistia, citou a opressão vivida na ditadura militar pelos povos das periferias, indígenas e trabalhadores no qual ainda não houve resposta efetiva. Em direito à memória e à verdade dos que tombaram em combate na luta contra a ditadura instaurada após o golpe de 1964, familiares pedem a retomada da Comissão e das buscas pelos corpos desaparecidos assim como a conclusão de casos ainda em aberto. 

A fratura exposta no país desde então, continua a sangrar. Para além das 434 vítimas citadas no relatório final da Comissão Nacional da Verdade (CNV), a ditadura matou 8.350 indígenas, dentre eles os povos Yanomami, Nambikwara, Kaingang, Xetá, Krenak, Aikewara, Waimiri-Atroa-ri, entre outros.

Diante desta conjuntura, conversamos com Vivian Mendes, candidata estreante ao Senado de São Paulo pela Unidade Popular (UP) ano passado, que conquistou 280 mil votos, cuja a principal bandeira da campanha era pela punição dos militares. Membra da ​​Comissão de Familiares de Mortos e Desaparecidos Políticos, ela briga até hoje para que a justiça seja feita.


GO

Quem é a Vivian e como se deu o seu processo de politização?

VM

Nasci e cresci em Guaianases, bairro do extremo leste de São Paulo. Sou de uma família de operários. Meu pai é um retirante pernambucano, veio para São Paulo quando fez 18 anos, fez um curso no SENAI, virou mecânico de manutenção que é o que meu pai é hoje aposentado. 

Assim que ele se formou conheceu minha mãe na fábrica da Alpargatas, uma das maiores indústrias que tínhamos na América Latina na época, uma empresa de tecelagem que hoje é uma universidade. E no antigo prédio da Alpargatas, minha mãe trabalhava na produção. A família da minha mãe vem do interior de São Paulo. Uma família do campo, expulsa pelas contradições rurais e que veio para São Paulo. Em Guaianases, foi onde eles conseguiram comprar um terreno e construir a casa própria para não ter que pagar aluguel. Depois, a minha mãe teve um acidente de trabalho e quase perdeu os braços na máquina de fiar e ela nunca mais trabalhou em fábricas. Mas, a minha mãe se transformou em uma liderança de uma das Comunidades Eclesiais de Base. 

Naquela região, as Comunidades Eclesiais de Base eram muito fortes. Meu pai quando saiu da Alpargatas foi trabalhar em Ribeirão Pires e se organizou politicamente  através dos operários metalúrgicos do ABC. A minha família é uma formação clássica da classe trabalhadora daquele período dos anos 1970. E a organização dos trabalhadores metalúrgicos no ABC é uma influência importante. Um pouco dessa origem vem da minha formação, de um modo geral. 

“Estamos num momento em que as contradições estão muito acirradas na sociedade. Nós vemos um aumento da violência contra as mulheres no último período.”

Comecei a me organizar nas Pastorais da Juventude e fui fazer faculdade. Fiz também curso técnico na época para poder pagar um cursinho e ingressar na universidade pública. Não tinha condições de pagar o cursinho pré-vestibular e precisei trabalhar. A  vivência política das Comunidades Eclesiais de Base foi muito importante na minha formação. Sou da Comissão de Familiares de Mortos e Desaparecidos Políticos. Mas o primeiro contato  que tive com essa luta foi ainda menina, lendo o livro O Brasil Nunca Mais que a igreja católica progressista produziu na época, denunciando as torturas da ditadura. A luta por justiça, estava muito presente na nossa vida. Mesmo antes de entrar na universidade.

GO

Muito interessante você ter mencionado sobre as Comunidades Eclesiais de Base, o lado progressista da igreja católica e a denúncia das torturas. Nos conte um pouco mais sobre a sua atuação em relação à luta em revelar a verdade do que foram os anos de chumbo. 

VM

Me tornei membro da Comissão já organizada em partido. Sempre fui ligada aos movimentos sociais, militei no movimento também de bastante inspiração da Teologia da Libertação, que se chamava Mística e Revolução. Era um movimento assessorado por Frei Betto. Foi através desse movimento que participei da primeira ocupação, em 2004 do Movimento Sem Terra (MST) e fui me envolvendo cada vez mais politicamente. 

Mas, no final de 2009, houve uma grande enchente na Zona Leste de São Paulo, uma região que chamamos de Jardim Pantanal, uma região que fica na várzea do rio Tietê, na divisa de São Paulo com Guarulhos e Itaquaquecetuba. É uma tríplice fronteira das cidades. Uma região que sempre teve problemas com enchentes, mas, naquele ano teve um represamento da água. Durante dois meses, a casa das pessoas ficou cheia de água e a prefeitura fez uma política muito absurda de tentar retirar as pessoas daquela região porque queriam construir um parque linear na várzea do rio e estavam aproveitando dessa situação, criando as condições para as pessoas saírem dali sem receberem indenização. Nesse momento, comecei a me organizar no Movimento de Luta nos Bairros, Vilas e Favelas (MLB) que eu conheci através de outros espaços, como do Movimento de Solidariedade a Cuba, que sou coordenadora há muitos anos.  Foi a partir daí que eu comecei uma militância mais organizada, no MLB. 

Nós temos quatro movimentos que construíram a Unidade Popular (UP), o MLB, a União da Juventude Rebelião, que é uma organização de juventude e o Movimento Luta de Classes, que é um movimento de organização de trabalhadores e trabalhadoras na luta sindical. E o Movimento de Mulheres Olga Benário. O movimento popular traz muita demanda, muitas mulheres vítimas de violência que começam a se organizar buscando moradia. Lembro de mulheres falarem para mim: “Vivian, eu estou aqui no MLB porque eu preciso ter uma casa, o meu ex-marido não vai embora. Eu quero que ele vá embora e ele não vai. Eu estou aqui porque eu quero morar em outro lugar. Ele não me bate. Não é nada disso, mas eu não quero mais ser casada com ele e eu não tenho que fazer.”

Essas demandas vinham surgindo e decidimos construir o Movimento Olga Benário. Estou contando essa história, porque essa luta por memória, verdade, justiça, já estava presente nos nossos movimentos. E para mim, sempre foi muito claro quais eram os limites do Estado burguês e até onde o Estado poderia de alguma forma atender e assim reivindicar os nossos direitos. A fragilidade desse Estado sempre esteve muito evidente para nós. Então, fazia parte da nossa formação de estudo do que foi a ditadura, a luta travada pelos nossos heróis dos quais reivindicamos cinco: Manoel Lisboa, Emanuel Bezerra, Amaro Luiz de Carvalho, Amaro Félix e Manoel Aleixo. Essa luta sempre esteve muito presente.

“Fizemos a campanha em defesa da luta contra a impunidade do Estado que manteve impune os torturadores da ditadura e que mantém até hoje impune a polícia que mata e oculta cadáveres.” 

Quando começa essa movimentação da Comissão Nacional da Verdade, cria-se a Comissão Estadual da Verdade, aqui em São Paulo, onde eu já era do MLB. Portanto, a gente sabia pelo movimento, que existia a lei da Comissão da Verdade do Estado de São Paulo, mas que ela não estava funcionando. Conhecíamos as pessoas da luta pela memória, verdade e justiça. Participamos dos eventos e como a Comissão não estava muito ativa, a gente foi atrás e conversamos, com alguns ex-presos políticos e nos oferecemos para ajudar no trabalho da Comissão da Verdade. 

Na Comissão da Verdade do Estado de São Paulo, fui assessora e, modéstia à parte, julgo como a comissão mais importante que tivemos, porque a Comissão Nacional da Verdade foi instaurada um pouco depois da Comissão do Estado e tinham muita dificuldade de engrenar o seu trabalho. Na comissão estadual decidimos fazer uma comissão sem presidente, com assessoria técnica de pessoas ligadas ao tema. Ao contrário do que era o debate nacional, que precisava ser uma comissão “neutra”, mas como tínhamos diálogo com os familiares, não tinha como levar uma comissão neutra a sério.

A Comissão do Estado de São Paulo é formada por deputados estaduais, mas o grande jogo era o presidente e os outros deputados membros. A assessoria da Comissão era formada por Amelinha Teles, ex-presa política, Ivan Seixas, também ex-preso político, Tatiana Merlino, sobrinha do Luiz Eduardo da Rocha Merlino, que foi assassinado na ditadura, Thaís Barreto, sobrinha do Zequinha Barreto, que também foi assassinado, junto com o Lamarca. Eu já tinha esse debate muito profundo sobre como era o trabalho e decidimos fazer uma Comissão com audiências públicas, trazendo esse assunto à luz da sociedade. Esse era o objetivo da Comissão, porque sabíamos dos limites de investigação de uma Comissão tão tardia. 

A Comissão da Verdade no Brasil foi muito diferente de Comissões da Verdade em outros países latino-americanos, porque as comissões nos demais países foram instauradas poucos anos depois dos fatos. E aqui no Brasil tiveram décadas passadas entre o final da ditadura e a efetivação da comissão. Nós fizemos quase 160 audiências públicas, ouvimos milhares de pessoas,  fizemos uma comissão com um outro formato e com muitos debates em escolas, bibliotecas públicas, etc. E, ao mesmo tempo, enquanto familiares pressionavam a Comissão Nacional para que fizessem as audiências abertas, a Comissão Nacional queria fazer audiências fechadas, um trabalho muito sigiloso. Fomos contrários, porque era importante envolver a sociedade. Foi assim que eu me envolvi na Comissão e que me efetivei como membro da Comissão de Familiares de Mortos e Desaparecidos Políticos, que é uma comissão da sociedade civil. 

Faço parte da Comissão de Familiares com Amelinha Teles, Suzana Lisboa, Rosalina Santa Cruz, uma série de pessoas, de ex-presos políticos e de familiares de pessoas assassinadas e desaparecidas pela ditadura. Então, no nosso movimento de mulheres, temos uma cartilha nacional básica de formação e um dos temas da cartilha é porquê a luta por memória, verdade e justiça é uma luta das mulheres. Então, todos os nossos movimentos têm isso de forma central, sempre. E retomando o que falei no começo, a democracia burguesa é muito limitada e ela não é capaz de garantir a estabilidade do Estado social de direitos, do Estado democrático das instituições, como defende muitas vezes a social-democracia. 

GO

Em experiências de militância revolucionária na América Latina, as mulheres relataram que a luta pela libertação ajudou com que a mulher se sentisse em pé de igualdade em direitos em relação aos homens. O que você nos diz acerca do cenário militante brasileiro nessa questão? Você acredita que a esquerda avançou criando condições favoráveis, concretas à participação cada vez maior da mulher? 

VM


É uma realidade ainda confusa, porque, nós estamos num momento exatamente de poder evidenciar essa contradição, porque, ao mesmo tempo, a gente enxerga um avanço importante nas nossas lutas. E isso é até uma avaliação geracional, por exemplo. 

No nosso movimento Olga Benário, veio uma quantidade de secundaristas que não pensávamos há dez anos atrás, quando decidimos construir um movimento de mulheres. Isso é uma expressão de que, de alguma forma, as nossas pautas têm se desenvolvido na consciência da sociedade, que temos conseguido avançar. Todos os dias tem demandas novas para o movimento, porque tem denúncias sobre assédio. Um debate que, apesar da tentativa de impor a escola sem partido, escola sem “ideologia de gênero”, você tem cada vez mais jovens discutindo sobre isso. 

É muito diferente da realidade que a gente tinha quando eu  era secundarista. O entendimento do que é assédio, a violência, machismo e hoje temos um debate acontecendo, apesar de toda a violência contra a mulher ter ao mesmo tempo crescido. Estamos num momento em que as contradições estão muito acirradas na sociedade. Nós vemos um aumento da violência contra as mulheres no último período, que está muito ligado com os problemas da sociedade, pandemia, fome, miséria. Temos uma violência crescente na sociedade e ela se expressa muito na violência contra as mulheres. Mas, contraditoriamente, temos a luta também avançando. 

“Há dados assustadores de que em 2020, mais de 1500 crianças morreram por levar uma gestação até o fim. Isso é inaceitável.”

Do ponto de vista organizativo, tenho mais facilidade de falar do nosso partido. Não quero concentrar minha fala em críticas a outras organizações, obviamente. Mas nós achamos que tem limites, porque decidimos construir um movimento, já tinham outros e decidimos construir um partido e também já tinham outros. Construímos a Unidade Popular a partir dos movimentos sociais, o primeiro partido nas últimas décadas que não vem de um racha e não é a divisão de nenhum outro partido. Decidimos construir um partido político, a partir das bases dos movimentos sociais. E ele tem a cara do nosso povo: o nosso povo é maioria mulher, negros e negras. Isso precisava se expressar, inclusive na direção do nosso partido. 

Essa decisão política, pautou a nossa prática enquanto partido, porque é mais difícil formar uma mulher dirigente ou um trabalhador negro, que geralmente está nas condições mais vulneráveis de vida. Para ser dirigente de um partido, ou você se dedica muito ou você tende a reproduzir a lógica que se reproduz na sociedade, que é a “quem tem melhores condições”. No Brasil, o militante que teve melhores condições de estudo vai se transformando quase que naturalmente em dirigente partidário. 

Hoje, há quase dez anos desse processo, falo com muita tranquilidade que tivemos quase 70% de candidaturas de mulheres nas eleições de 2022 e não foi de propósito. Nós somos a maioria na executiva nacional do partido. Para nós, essa é uma luta indispensável. Agora, o que temos é grandes obstáculos à construção disso em relação às outras organizações. Eu reconheço a luta dessas mulheres que vieram antes de nós, mas acho que elas encontram essa dificuldade em como desenvolver todo um movimento de mulheres, às vezes a movimentação dos partidos não fortalece, mas arrefece o movimento de mulheres. Isso é lamentável. Felizmente para nós, veio uma nova geração de mulheres muito combativas e que tem oxigenado o movimento de mulheres. Essa nova geração vem para atropelar o que tiver de passividade. 

GO

Você foi a única candidata mulher de esquerda ao Senado em São Paulo. É importante destacar que sua candidatura esteve em torno de dois grandes temas que mostram a fratura exposta do Brasil, que é a punição para os torturadores da ditadura militar de 1964 e a legalização do aborto. Nos conte um pouco mais sobre a sua candidatura e o motivo do seu foco nessas pautas. 

VM

Sim. A gente tinha uma ausência, das nossas pautas na campanha para Senado, porque a campanha da social-democracia era uma campanha muito rebaixada. Márcio França não era um candidato de esquerda. Inclusive, enquanto estava como pré-candidato ao governo, defendeu o fim das câmeras nos uniformes dos policiais que é uma política bastante à direita. 

O França se alinhou com Bolsonaro na última eleição e isso foi “passado um pano” na eleição que ele disputou com Dória, onde ambos usaram o bolsonarismo para levar suas campanhas adiante. Então, diante disso a gente tinha bastante clareza, da necessidade de ter uma candidatura no campo da esquerda, ainda que tenhamos sofrido com a  discussão do voto útil, que é um negócio terrível, que a cada dois anos surge e a cada dois anos é uma política de enfraquecimento da esquerda. 

Tivemos uma votação bastante expressiva, porque 280 mil votos nas nossas condições é muita coisa, porque não tivemos tempo de TV, não tivemos quase nenhum recurso e nós fizemos uma campanha militante. E isso foi muito importante para também desmistificar um pouco essa história de que as nossas pautas nunca podem ter vez. A Unidade Popular tem um programa só, que é o programa do partido e também um programa para as eleições. Com a diferença de que nas eleições a nossa tarefa é materializar e esmiuçar esse programa para as pautas. Mas é o mesmo programa, a luta por memória, verdade, justiça e punição para os torturadores da ditadura. Fizemos a campanha em defesa da luta contra a impunidade do Estado que manteve impune os torturadores da ditadura e que mantém até hoje impune a polícia que mata e oculta cadáveres. 

“Construímos a UP para demonstrar que o poder popular e o socialismo são viáveis. A gente quer construir o poder popular porque nós queremos o povo no poder.”

A luta pela legalização do aborto também está no programa da UP. Escolhemos pegar esses dois temas principalmente na campanha para o Senado porque tem a ver com o debate do Senado e também por entender que são pautas centrais e que foram sendo secundarizadas ou absolutamente escanteadas. Mas, nunca é hora de debater isso, supostamente isso sempre “tira” voto. Trouxemos esse tema da impunidade para tratar dos crimes de Bolsonaro, para dizer que Bolsonaro também não pode ficar impune. E também sobre esses dados assustadores do aumento da violência contra as mulheres de uma forma geral, mas dessa violência que vai sendo escondida da sociedade por falta de justiça reprodutiva. 

Aproveitamos a campanha também para falar dos vários aspectos que estão envolvidos na criminalização do aborto no Brasil, como por exemplo, a violência contra as crianças, que sofrem estupro. Alguns casos foram emblemáticos, que durante a campanha discutimos, como o caso daquela criança de Santa Catarina, em que a juíza tentou impedir que ela acessasse o direito ao aborto legal, e também uma criança no Piauí que deu à luz uma criança fruto de estupro. Há dados assustadores de que em 2020, mais de 1500 crianças morreram por levar uma gestação até o fim. Isso é inaceitável. 

Esse tema da criminalização do aborto vai escamoteando uma série de violações. Nos dispusemos durante a campanha, a trazer esse debate para o centro da sociedade. E fizemos isso inclusive em comunidades religiosas e foi mais fácil do que parece. Com um debate sério, responsável, é possível discutir com as pessoas. A legalização não é para defender o aborto e nós ganhamos muitas consciências nesse debate. A nossa campanha cumpriu uma função social importante de apresentar dois temas que a esquerda ignora o combate. Ou combatem nos debates ou secundarizam os debates. Nós demonstramos que é possível fazer esse debate e ter adesão popular. Porque, para chegar em 280.000 votos sem tempo de TV e sem grana é porque o debate não é tão impopular quanto alguns setores da esquerda querem fazer parecer. 

GO

Você foi estreante na arena eleitoral, o que também é algo importante de se mencionar. Mesmo sem tempo de TV e dinheiro, você ficou à frente de veteranos e anticomunistas, como Aldo Rebelo. 

VM

Ele é um lobista dos militares. Eu levantei todos os dias, falei para as pessoas: nós vamos trabalhar para vencer, vamos para a rua para ganhar votos. Fiz alguns debates com outras forças de esquerda, que tem outra tática, que é o direito deles, que diziam: “Não estamos aqui numa eleição para pedir voto.” Eu falei: “eu estou.” Construímos a UP para demonstrar que o poder popular e o socialismo são viáveis. A gente quer construir o poder popular porque nós queremos o povo no poder. Então, foi isso, mas eu pensei: olha, a gente tem mais votos que o Aldo e isso é simbólico.  

GO

A redemocratização brasileira, após 21 anos de ditadura, se deu por uma transição pelo alto. No Brasil, podemos afirmar que estamos vivendo sob uma forte atuação do Partido Fardado. E isso acontece porque, em 1985, os militares definiram os termos de sua saída do poder e não por terem sido derrotados por uma mobilização popular. Com o governo de Lula, quão otimistas podemos ficar quanto a resolução desse problema? 

VM

Esse debate de como foi o processo de redemocratização, é complexo porque é verdade que os militares participaram dessa discussão. Mas tivemos grandes mobilizações e os militares saíram desmoralizados da ditadura. Tivemos uma atuação central. A luta pela Anistia foi muito popular – aliás, protagonizada por mulheres. A luta pela Constituinte, pelas Diretas Já, a luta dos trabalhadores, no ABC e depois no Brasil inteiro. 

“A lei da Anistia, não é a responsável pela impunidade que temos no país. Em nenhum momento a Lei da Anistia inocenta torturadores, por exemplo.”

Nos anos 1970, teve uma série de lutas muito importantes. É claro que a Lei da Anistia não atendeu às nossas necessidades de uma forma completa. E ela não foi ampla, geral e irrestrita. Tivemos pessoas que não saíram dos cárceres, que não puderam voltar para o país porque os crimes que elas foram condenadas não foram considerados crimes para serem anistiados. Mas, a Lei da Anistia, não é a responsável pela impunidade que temos no país. Em nenhum momento a Lei da Anistia inocenta torturadores, por exemplo. Inclusive, essa interpretação da lei aconteceu quando o STF foi consultado sobre isso em 2011. A responsabilidade da impunidade não é da lei e não defendemos outra lei da Anistia, e sim uma reinterpretação da lei, porque essa é a pegadinha da luta de classes. Não importa a lei, apenas a interpretação da lei. A forma como a justiça movimenta as leis é muito importante. 

Nós temos a Lei Maria da Penha, por exemplo que é uma das leis mais avançadas do mundo de combate à violência contra as mulheres. Mas, ao mesmo tempo, temos o avanço dos crimes e da violência contra as mulheres. Isso quer dizer que a lei não presta? Não, quer dizer que você tem portas fechadas para que as mulheres acessem a lei. Temos um judiciário que não aplica da forma como deveria, que é uma das nossas limitações. É a nossa luta que é capaz de mudar essa correlação de forças. O que a Justiça considerou para dizer que os militares estavam também anistiados é um parágrafo da lei que diz que ela anistia os crimes políticos e os crimes correlatos. E interpretou  que os crimes cometidos pelo Estado eram crimes correlatos. Mas não era isso que a lei queria dizer. Ela queria dizer o seguinte: você está preso porque você panfletou e se reuniu, esses são os crimes correlatos à questão política. É  isso que está na letra da lei, todos os crimes que você foi condenado, que são correlatos à sua atuação política, seriam anistiados. Só para deixar algumas informações sobre isso, que é importante, porque parece que não teve nenhuma participação popular, ou que as coisas se deram muito pacificamente e não foi exatamente assim. 

Nós temos algumas outras questões em relação a isso, mas queria trazer uma outra ponderação da nossa análise. Apesar dos militares terem saído desmoralizados, eles recuperaram boa parte do seu status social e das suas condições materiais nos governos do PT. Como a atuação dos militares no Haiti. Esse crime que mancha a atuação do PT é indefensável. O Brasil cumpriu esse papel de liderar as tropas de pacificação no Haiti, cometendo graves violações de direitos humanos. É uma elevação de status dos militares do ponto de vista material das Forças Armadas. O PT cumpriu este papel histórico, infelizmente, de recolocar os militares num patamar de forças pacificadoras. O que nós estamos vivendo hoje tem muito da consequência dessa política absolutamente equivocada: uma política de “vamos virar a página” ou “vamos deixar disso”. E agora é o Estado Democrático de Direito está ameaçado. O que não tivemos antes não é agora que vamos ter. Não confiamos essa luta nas mãos da social-democracia. Claro que temos de pressionar, esse é o nosso papel para que se avance nesse terreno que é a construção do corpo social na luta de massas. 

GO

Tendo em conta a sua leitura da conjuntura atual, o que esperar do governo Lula?

VM

O que espera o nosso povo no próximo período é muito difícil. Por isso é tão importante manter as mobilizações sociais e derrotar o fascismo nas ruas, independente de quem governa. Temos um fortalecimento da extrema direita e do fascismo no país. Um processo eleitoral nunca foi o suficiente para poder derrotar profundamente o fascismo. 

É preciso  lembrar que, véspera do golpe de 1964, um ano antes, tivemos um plebiscito importante no país e que a ampla maioria da população defendeu que o Jango continuasse no poder e menos de um ano depois houve um golpe militar. Isso serve para nós traçarmos esses paralelos históricos. A história não se repete da mesma forma, mas a gente pode traçar paralelos de que, independente das eleições, é possível que tenha uma movimentação golpista no nosso país. Se podemos enfrentá-la é que é a questão. Nós temos nos esforçado para fazer essa discussão com o nosso povo e temos muito caminho pela frente. 

Sobre os autores

é presidente estadual da UP em São Paulo, fundadora do Movimento Olga Benario Brasil e membra da da Comissão de Familiares de Mortos e Desaparecidos Políticos.

é tradutora, redatora e repórter na Jacobin Brasil. Também é jornalista no Opera Mundi, membro do Fórum Latino Palestino.

Cierre

Arquivado como

Published in América do Sul, Entrevista, História, Militarismo and Política

DIGITE SEU E-MAIL PARA RECEBER NOSSA NEWSLETTER

2023 © - JacobinBrasil. Desenvolvido & Mantido por PopSolutions.Co
WordPress Appliance - Powered by TurnKey Linux