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Apoiadores carregam quadro de Hugo Chávez no segundo aniversário de sua morte em 5 de março de 2015. Foto de Juan Barreto / AFP

A Revolução Bolivariana foi a última revolução do século XX e a primeira do século XXI

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A mídia, a direita e parte da esquerda atacam os governos bolivarianos sem compreender como eles continuam se reelegendo, enfrentando os EUA e revertendo golpes na região. Aqui vai uma leitura inicial para entender a incrível mobilização popular que levou a Venezuela ao centro da política latino-americana neste século e transformou o continente para sempre.

Extraído do livro América Latina na encruzilhada: lawfare, golpes e luta de classes (Autonomia Literária, 2020). 


Ex-presidente Hugo Chávez certa vez disse: “a Revolução Bolivariana foi a última revolução do século XX e a primeira do século XXI”. Esse posicionamento cronológico guarda bem o sentido de revolução: uma transformação total e radical das estruturas socioeconômicas de uma sociedade. Se a virada do milênio não confirmou diversas das previsões que se faziam (principalmente o fetiche com o ano 2000), outras surpresas ocorreram, entre elas, a promoção da até então discreta – para não dizermos desconhecida – Venezuela a um dos países mais importantes e discutidos do mundo.

Mesmo na história recente latino-americana, a Venezuela não ocupava uma posição de grande destaque. Não figurava entre as grandes economias da região, como Brasil, Argentina e México, nem chamava atenção por experiências políticas, como Cuba ou Chile. Na história da América Latina a Venezuela era reconhecida como berço do libertador Simón Bolívar, grande líder da libertação sul-americana contra o julgo espanhol no século XIX. Mas durante a maior parte do século XX, é impossível não percebermos que o país passou ao largo dos grandes acontecimentos e dramas da região.

Seria dessa forma até 1989, quando a rebelião popular conhecida como “Caracazo” marcaria profundamente a história venezuelana e latino-americana, mesmo que essa profundidade histórica ficasse evidente somente anos à frente. Este fato seria o estopim para uma série de eventos e movimentações na sociedade venezuelana que levariam à ascensão de Hugo Chávez e a constituição das forças sociais que compõem o chavismo.

A Revolução Bolivariana é, até o momento, o acontecimento mais importante da América Latina no século XXI. Ela abriu uma conjuntura de reconfiguração das forças políticas e sociais na região e articulou, direta e indiretamente, todo um movimento de contestação popular à dominação burguesa e imperialista na região. Resgata e atualiza o projeto de integração latino-americana idealizado por Simón Bolívar no século XIX e radicalizado pela Revolução Cubana no século XX. Em nível mundial, retomou o socialismo e a luta de classes, conceitos banidos desde o fim da União Soviética (1991) e da hegemonia neoliberal, colocando-se como vanguarda da luta revolucionária no mundo, propondo retirar a esquerda da defensiva que lhe foi imposta pelo capital globalizado. Nada, nem ninguém consegue ficar indiferente ao chavismo.

Este artigo tem a intenção de ser um resumo da história da Revolução Bolivariana para aqueles que começam a procurar informações sobre este processo. É também uma avaliação dos caminhos da Revolução, suas políticas e formas de organização popular. Analisar a Revolução Bolivariana é estudar as diferentes formas de organização da classe trabalhadora na luta pelo poder e na construção de uma nova sociedade, livre da exploração do trabalho e domínio imperialista, com todas as suas contradições, incertezas, avanços e recuos. O texto também serve para estudo da militância de esquerda para saber mais sobre o principal processo revolucionário em curso no mundo atual.

Antecedentes: petróleo e o Pacto de Puntofijo

A história da Venezuela no século XX possui um protagonista muito claro: o petróleo. Já constatada sua presença no território do país desde o final do século XIX, sua extração e posterior desenvolvimento da indústria petroleira transformaram um país até então predominantemente agrário e pobre em um dos maiores produtores do “ouro negro”. Toda sua estrutura socioeconômica foi redesenhada, o que fez da Venezuela um país importador de produtos industrializados de todo tipo. Desenvolveu-se uma burguesia rentista, que vivia apenas dos percentuais repassados pelas multinacionais que extraiam o produto e do aluguel de propriedades; assim como uma incipiente classe média que a servia. Formou-se também um proletariado urbano, incluindo os trabalhadores do setor petroleiro; pequenos e médios proprietários rurais, além de pescadores da costa caribenha.

O capitalismo venezuelano se baseou no tripé renda do petróleo/importação/latifúndio improdutivo. Suas contradições sociais se davam em embates intraclasse, entre um setor servil aos interesses do capital estrangeiro (principalmente o norte-americano e as petroleiras) e outro que almejava uma espécie de nacional-desenvolvimentismo, principalmente na janela criada pela Segunda Guerra Mundial (1939-1945). Também havia embates entre classes, já que o proletariado avançou na sua organização política criando sindicatos, partidos e outras formas de luta, com destaque para o Partido Comunista da Venezuela (PCV), fundado em 1931. As agremiações dos trabalhadores foram postas na ilegalidade em diversos momentos, e mesmo quando eram formalmente aceitas no cenário político do país, sempre haviam dificuldades impostas ao seu pleno funcionamento e participação.

Após a Segunda Guerra Mundial, a Venezuela conheceu uma de suas mais ferozes ditaduras, capitaneada pelo General Pérez Jiménez. O golpe que levou Pérez Jiménez ao poder e seus dez anos de governo autoritário foram apoiados pelos Estados Unidos, no sentido de garantir sua hegemonia sobre a América Latina na Guerra Fria. O General governou sob intensa repressão, cerceamento de direitos fundamentais, ausência de eleições diretas e prescrição de partidos políticos, ao mesmo tempo em que realizou uma “modernização” física de Caracas, para ser a vitrine da nova “Venezuela petroleira” e investiu em infraestrutura, como nas áreas de siderurgia e petroquímica. O endividamento crescente do governo, no entanto, foi corroendo diversos setores, levando a manifestações de descontentamento das massas e ao abandono do governo por frações da burguesia venezuelana.

Em 21 de janeiro de 1958 ocorreu uma greve geral, articulada por todas as forças oposicionistas, com destaque para o PCV, que resultou em grandes enfrentamentos contra as forças de repressão do governo. Dois dias depois, Pérez Jiménez, ao perder o apoio dos militares, foge para a República Dominicana, encerrando dez anos de ditadura. Paralelamente, três partidos políticos mantinham conversas desde o ano anterior, para reorganizar o sistema político no pós-ditadura, excluindo, contudo, os comunistas.

Essas três agremiações eram: a AD (Ação Democrática, em espanhol), que pretendia ser uma versão venezuelana dos partidos sociais-democratas europeus do pós-guerra, com participação no movimento sindical e estudantil, de corte liberal e anticomunista; o COPEI (Comitê de Organização Política Eleitoral Independente), de orientação social-cristã, com ramificações em diversos setores organizados da sociedade; e a URD (União Republicana Democrática), de caráter liberal. 

As conversações entre essas forças resultaram no Pacto de Puntofijo.A ideia central do acerto era a implementação de uma república liberal restrita, onde as diferentes siglas representantes das classes proprietárias dividiriam o governo e os cargos na esfera pública. A repartição dos espaços no aparato público deveria ser realizada entre os três partidos que obtivessem melhor resultado eleitoral. Assim os interesses das diversas frações da classe dominante eram acomodados, evitando-se disputas intestinas e, ao mesmo tempo, utilizava-se o poder estatal para reprimir e cooptar os diversos setores populares não inseridos no Pacto.

O Pacto de Punto Fijo de saída, tinha a pretensão de reduzir as diferenças ideológicas e programáticas entre seus signatários e lançar as bases para uma convergência de interesses que tinha como ponto de apoio o domínio do aparelho de Estado. Na prática, ele se converteria, mais tarde, num acerto entre AD e COPEI e um terceiro partido, de acordo com sua força eleitoral de momento. O Pacto representou um jeito de acomodar na partilha de poder as diversas frações da classe dominante, incluindo aí o capital financeiro, as empresas de petróleo, a cúpula do movimento sindical, a Igreja e as Forças Armadas. Além disso, esforçava-se por definir uma democracia liberal simpática aos Estados Unidos. Este grande acordo representou a tradução político-institucional de uma economia baseada na exportação de petróleo. Além de abrigar os interesses das elites, visava a amortecer os conflitos sociais mediante lenta, porém constante, melhoria do padrão de vida da maioria da população. Clientelismo, fisiologismo e corrupção eram também as características de um tipo de dominação que no reverso da medalha, reprimia duramente qualquer contestação mais consistente. Uma democracia dependente de fluxos de petrodólares.

Com o tempo, a UDR se retiraria do Pacto e perderia muito de sua força, levando o período ser mais comumente relacionado com o revezamento na presidência do país entre as outras duas siglas, a AD e o COPEI, que desenvolveriam amplas redes de clientelismo, tornando-se as forças dominantes na política venezuelana na segunda metade do século XX. A AD hegemonizou a Central de Trabalhadores da Venezuela (CVT), maior central sindical do país, e passou a dividir os principais cargos de Estado com a COPEI, como o comando da Câmara de Deputados e do Senado, comissões legislativas, indicações para Suprema Corte e Procuradoria-geral da República. Com a Constituição de 1961, o voto em lista (onde a população vota nos partidos e não em candidatos) e os acordos entre AD e COPEI se repartiram todas as áreas do poder público entre as duas agremiações, que representavam a mesma classe dominante venezuelana e os interesses do capital estrangeiro, com amplas redes de clientelismo e corrupção. Setores populares que almejassem ter suas reivindicações atendidas pelo governo deveriam se aliar a um dos lados, garantindo votos e a perpetuação do Pacto.

Foi dessa maneira que a Venezuela gozou de uma reputação democrática na América Latina dos anos 1960 e 1970, enquanto a região testemunhava golpes de estado e a instalação de ditaduras patrocinadas por Washington. Na realidade, a classe dominante venezuelana e o imperialismo norte-americano apenas desenvolveram uma forma mais complexa de dominação no país, quando comparada aos seus vizinhos. A repressão existiu, de maneira violenta contra todos aqueles que foram excluídos do Pacto, notoriamente a esquerda revolucionária, incluindo grupos guerrilheiros e outras formas de organização popular, especialmente nas favelas das grandes cidades (ambos, no futuro, seriam importantes para a constituição das forças populares do chavismo).

A hegemonia do Puntofijo foi possível graças à bonança petroleira. A criação da Organização dos Países Exportadores de Petróleo (OPEP) em 1960 – da qual a Venezuela é membro fundador – e a alta dos preços do produto no mercado internacional, especialmente na década de 1970 permitiram que o clientelismo da AD e COPEI melhorassem, gradualmente, as condições de vida de boa parte da população, sem contudo, reduzir a desigualdade, já que a burguesia do país e uma parte da classe média indicada para cargos públicos possuíam condições de vida completamente díspares à realidade nacional. “Havia a sensação de que ninguém precisava pagar impostos para fazer o país funcionar. O fluxo de petrodólares foi até mesmo maior do que a capacidade de a economia absorver capital”. Parte da população lembra desse período como “os bons tempos”.

Dentro desse período foi criada a Petróleo de Venezuela S. A. (PDVSA), a poderosa estatal petroleira do país. O surgimento da empresa e a nacionalização do petróleo aumentou a participação estatal nos dividendos, mas não diminuiu o controle do capital estrangeiro. Houve na verdade uma reacomodação dos interesses das burguesias interna e externa no controle dos recursos hidrocarbonetos, que permitissem seu enriquecimento e a alimentação das redes clientelistas dos partidos da ordem. A PDVSA teve ampla autonomia para operar, se tornando um Estado dentro do Estado. Pesa também na “tranquilidade” política do Pacto de Puntofijo, o funcionamento de comissões tripartidas, entre Estado, representantes empresariais e dos trabalhadores. Do lado dos patrões a principal organização foi a Fedecámaras (Federação de Câmaras e Associações de Comércio e Produção da Venezuela), e pelos trabalhadores a já citada CTV. Ambas controladas por AD e COPEI, decidiam sobre políticas sociais e trabalhistas.

Tudo começou a desabar a partir da Crise da Dívida e da queda dos preços do petróleo, no início da década de 1980. A diminuição do fluxo de dólares para o país e a alta dos juros da dívida norte-americana drenaram recursos, no momento em que a economia mundial era reestruturada pela hegemonia neoliberal, que teria como contrapartida a destruição das economias periféricas. A alta dos juros estadunidenses elevava também os juros das dívidas contraídas pelos países periféricos, o que as tornavam impagáveis.

O 28 de setembro de 1983, a sexta-feira negra – expressão, hoje em dia, politicamente incorretíssima -, ficou marcado como o fim de um sonho. A situação internacional era grave. O México e o Brasil tinham literalmente quebrado, entrando na longa crise da dívida externa que atingiu vários países periféricos. O presidente da República, o copeiano Luís Herrera Campíns (1979-1984), fora obrigado a desvalorizar abruptamente a moeda nacional, o bolívar, como culminância de um processo que incluía, nos últimos anos, a queda substancial dos preços do petróleo, a disparada da dívida pública, que fora multiplicada por dez entre 1974 e 1978, e o aumento dos juros para empréstimos internacionais. Rapidamente, a cotação do dólar saltou de 4,70 para 7 bolívares. Estima-se que US$ 8 bilhões tenham saído da Venezuela ao longo daquele ano. O desemprego avançou aos saltos, dando início a uma crise material e de valores que acabou se mostrando irreversível. Era o epílogo dos bons tempos.

A estrutura que mantinha o Pacto de Punto Fijo se deteriorava de forma irreversível. Houve tentativas ainda de oxigenar o sistema político, como o fim do voto em lista e as eleições diretas para governadores e prefeitos (até então eram indicados), abrindo espaço para o surgimento de outros partidos políticos. Em 1988, Carlos Andrés Pérez da AD foi eleito presidente pela segunda vez, após ter sido o governante do país na década anterior. Sua eleição trazia a ideia de retomada dos “bons tempos”, ao mesmo tempo em que se comprometia em ouvir as críticas realizadas pela população e setores políticos alijados do Puntofijo. Mas não seria assim.

Caracazo e o surgimento de Chávez em um momento de ruptura

A economia e a sociedade venezuelana entraram em profunda crise com a queda dos preços do petróleo, a Crise da Dívida e as fissuras no Pacto de Puntofijo. Desemprego em massa, inflação alta e aumento do custo de vida castigavam a população, enquanto as forças dominantes da política começavam a apresentar desavenças. Carlos Andrés Pérez, eleito presidente pela segunda vez, surpreende o país no início de 1989 ao anunciar que havia assinado um acordo com o FMI (Fundo Monetário Internacional).

O objetivo de tudo era a liberação de um empréstimo de US$ 4,5 bilhões. A contrapartida, concretizada no dia 25, um sábado, era salgada: o pacote incluía desvalorização da moeda nacional, o bolívar, redução do gasto público e do crédito, liberação de preços, congelamento de salários e aumento dos preços de gêneros de primeira necessidade. A gasolina sofreria um reajuste imediato de 100%. Isso resultaria, segundo anunciado, numa majoração de 30% nos bilhetes de transporte coletivo. Na prática, esses reajustes chegaram também a 100%. Nada disso havido sido ventilado durante a campanha.

Como todos os ajustes impostos pelo FMI aos países periféricos nenhuma das medidas apresentadas visava melhorar a qualidade de vida da população, mas sim, garantir os lucros do capital financeiro, lhe dando garantias de que a riqueza do país seria direcionada para a banca internacional e não para as necessidades do povo. Longe de visar a melhora dos indicadores econômicos, algo que o neoliberalismo nunca foi capaz de fazer, as medidas provocariam uma piora na realidade venezuelana.

No dia 27 de fevereiro de 1989 veio a resposta popular. Protestos começaram em terminais de ônibus na capital Caracas, devido ao aumento das passagens. As manifestações foram crescendo e se multiplicando, de forma espontânea pela capital e outras cidades do país, logo recebendo a participação de estudantes e outros setores. Surgiram barricadas nas ruas, saques que fecharam o comércio e queima de ônibus. Uma multidão tomou as ruas de Caracas numa explosão social de raiva e descontentamento, sem pauta ou organização, escancarando a crise do país e a falta de representatividade na política. Apesar de ocorrer em várias cidades da Venezuela, e não somente em sua capital, o fato recebeu o nome de “Caracazo”.

O presidente Carlos Andrés Pérez reuniu os representantes dos sindicatos patronais e decretou a suspensão dos direitos constitucionais. Foi a senha para um massacre. As Forças Armadas e a polícia passaram a reprimir as manifestações com munição letal e fazer incursões às favelas e bairros pobres das cidades, assassinando pessoas indiscriminadamente. Até hoje não se sabe ao certo o número de vítimas, que oscila entre centenas, nas estimativas mais conservadoras, a mais de cinco mil assassinatos. As manifestações, no entanto, permaneceriam a partir de então no cotidiano do país, espontâneas ou organizadas, como sintomas de uma crise geral na sociedade venezuelana.

Toda essa convulsão e violência era vista com muita atenção por um jovem tenente-coronel do exército venezuelano. Hugo Chávez foi fundador do MBR-200 (Movimento Bolivariano Revolucionário 200, referência ao bicentenário de nascimento de Simón Bolívar), que arregimentava jovens militares, na maioria de média patente, para discutir a grave crise do país. Os participantes do movimento discordaram fortemente das ordens presidenciais para reprimir a população no Caracazo e outras manifestações, as quais viam como legítimas contra um governo que consideravam corrupto e ineficaz.

É importante ressaltarmos um diferencial dos militares venezuelanos em relação a seus correspondentes em outros países latino-americanos. A história recente da região testemunhou a utilização das Forças Armadas como forma de imposição de ditaduras antipopulares e alinhadas de maneira subalterna à hegemonia norte-americana. Boa parte dos chefes militares que dirigiram os regimes ditatoriais na região ao longo do século XX foram treinados diretamente pelas Forças Armadas estadunidenses na Escola das Américas e outras instituições. Na Venezuela, entretanto, não só os militares tinham uma formação continuada nas universidades do próprio país, fazendo a jovem oficialidade conviver com outros ambientes diferentes da caserna (Chávez teve em sua formação experiências desse tipo), como a própria esquerda sempre realizou trabalho de base e recrutamento de militantes no setor militar. O PCV foi um dos poucos partidos comunistas que seguiam a linha de Moscou que investiram na luta guerrilheira, mesmo que a tenha abandonado posteriormente. Não havia, portanto, uma hegemonia forte do pensamento autoritário e entreguista entre os militares venezuelanos, ao contrário de seus pares em outros países da região.

O MBR-200 se articulou para uma insurgência contra o governo de Carlos Andrés Pérez, em outra data que passaria para a história contemporânea da Venezuela, o 4 de fevereiro de 1992, ou simplesmente, 4F. A sublevação consistiria em deter o presidente assim que ele retornasse de uma viagem ao exterior e tomar pontos estratégicos da capital e outras cidades, como o Comando Geral de Aviação, o Palácio de Governo e bases militares. Não se sabe como, o plano foi descoberto já no início de sua execução e levou a combates entre insurretos e forças leais ao governo em diversas localidades. Foi, com pequenas exceções, uma ação estritamente militar, sem apoio de populares ou organizações políticas, mas não desprezível, com a participação de cerca de seis mil militares, na sua maioria de patentes intermediárias e oriundos das classes populares.

Depois de horas de combate, a insurreição não conseguiu tomar o poder. Hugo Chávez, como líder do movimento negocia a rendição, pedindo apenas duas coisas: que seja tratado com dignidade e que lhe seja permitido fazer um comunicado na TV para que seus companheiros em outras cidades depusessem as armas. Eis suas palavras:

Antes de mais nada, quero dar bom dia a todo o povo da Venezuela. Esta mensagem bolivariana é dirigida aos valentes soldados que se encontram no regimento de paraquedistas de Arágua e na Brigada Blindada de Valência. Companheiros: lamentavelmente, por enquanto, os objetivos que nos colocamos não foram atingidos na capital. Quer dizer, nós, aqui em Caracas, não conseguimos controlar o poder. Vocês agiram muito bem, porém já é hora de refletir. Virão novas situações e o país tem de tomar um rumo definitivo a um destino melhor. Assim que ouçam minha palavra, ouçam o comandante Chávez, que lhes lança esta oportunidade para que, por favor, reflitam e deponham as armas, porque, em verdade, os objetivos que traçamos em nível nacional são impossíveis de ser alcançados. Companheiros, ouçam esta mensagem solidária. Agradeço sua lealdade, agradeço sua valentia, seu desprendimento e eu, diante do país e de vocês, assumo a responsabilidade deste movimento militar bolivariano. Muito obrigado.

A ênfase no “por enquanto” (por ahora, em espanhol) entraria para a história, quase como uma profecia. As palavras de Chávez deixavam claro que seu projeto não estava derrotado, apenas sofreu um revés momentâneo. O Comandante e seus companheiros foram presos, mas ganharam o país. O 4F não foi interpretado pela população venezuelana como uma tentativa de golpe de Estado, mas sim, como uma insurreição contra um governo que castigava o povo com miséria e precariedade, enquanto os ricos viviam no luxo. A ação liderada por Chávez traduziu uma insatisfação que vinha desde o Caracazo e despertou na população, principalmente nos trabalhadores pobres, a sensação de que alguém os ouvia e tomou uma atitude contra a dramática realidade em que viviam as maiorias. No futuro, o chavismo transformaria o 4F no “Dia da Dignidade Nacional”, data comemorada com marchas e concentrações de cunho político.

As ações do MBR-200 e suas propostas, iam ao encontro dos desejos da população. Entre elas, a deposição de todas as autoridades dos Três Poderes, a eleição de novos representantes dos sindicatos, o fim das privatizações, congelamento de preços, crítica à dívida externa. A reorganização da vida política do país se daria pela mais importante das propostas de Chávez: a convocação de uma Assembleia Nacional Constituinte eleita pela população para formular uma nova Carta Magna para o país. As propostas do MBR-200 eram de cunho popular e nacionalista, afastando a ideia de que se tratava de uma mera quartelada de viés autoritário, tão comum na história latino-americano. Mesmo preso, Chávez se tornou a figura mais popular do país e passou a receber visitas de diversos setores da sociedade. Seu irmão, Adán Chávez, militante marxista, foi um dos que investiu no diálogo entre os militares do MBR-200 e a militância de esquerda.

Com a crise se aprofundando, novas insurreições militares, constantes protestos e denúncias de corrupção, Carlos Andrés Pérez sofreu um impedimento e foi afastado da presidência. A ideia de uma Venezuela democrática e uma vida política tranquila graças ao Pacto de Puntofijo se desmanchou de forma violenta. O país necessitava de uma reviravolta total, capaz de refundar o sistema político e trazer as massas para o centro das decisões, ou seja, uma democracia de verdade. Esse era o plano de Chávez.

A eleição de 1998

Ainda na prisão, Hugo Chávez passou a receber a visita de representantes de diversos setores sociais, forjando uma aliança que seria sua base política inicial para disputar as eleições presidenciais. Solto por um indulto, Chávez, àquela altura já a figura mais popular do país, passou a se preparar para concorrer à presidência pelo MVR (Movimento Quinta República, sendo o V uma alusão ao cinco em números romanos), sigla que substituiu o MBR-200, recebendo o apoio de outras legendas e organizações, que iam de militares nacionalistas, movimentos e partidos de esquerda, políticos liberais com preocupações sociais, entre outros. A situação econômica e o Pacto de Puntofijo continuavam a se deteriorar, por meio da aplicação do pacote neoliberal do FMI, rechaçado fortemente pela maioria da população.

Em um momento de desencanto total da população com o sistema político e de profunda crise econômica, Chávez e sua campanha foram capazes de condensar todo o anseio popular em uma única proposta: Assembleia Nacional Constituinte. Carro-chefe da campanha chavista, a proposta era convocar os venezuelanos a reescreverem a Constituição do país, passando a limpo o cenário político. O então candidato se comprometeu, caso fosse eleito, a convocar imediatamente um pleito para eleição de deputados constituintes que elaborariam uma nova carta magna, dando ênfase à participação popular nos mecanismos de governo e à soberania nacional, principalmente as riquezas do petróleo.

Hugo Chávez foi eleito presidente da Venezuela no dia 6 de dezembro de 1998, com 56,20% dos votos (mais 3,6 milhões de sufrágios), bem à frente de Henrique Salas Römer, candidato da dupla AD/COPEI (apesar de não pertencer a nenhuma das duas siglas, que procuraram desesperadamente um outsider), com 39,97% dos votos. Um resultado que entraria para a história venezuelana como um divisor de águas e definitivo termo no Puntofijo. Abriu-se uma nova quadra histórica na vida do país, a Revolução Bolivariana. Mais do que isso, a eleição de Chávez contrariava a até então hegemonia neoliberal na América Latina, no auge naquele momento. Chávez se elegeu com uma postura claramente antineoliberal, nacionalista, com apoio de forças de esquerda, que pese ainda não se falasse abertamente em socialismo.

Os monopólios globais da comunicação, especialmente na América Latina, apresentaram a eleição de Chávez como uma aberração, se perguntando como a população votou maciçamente em alguém que apenas cinco anos antes tentou dar um “golpe de Estado”. Boa parte da esquerda mundial também não compreendeu o fenômeno Chávez de primeira, pois espera sempre por uma revolução pura e redentora, que só existe no imaginário e não nas sinuosas contradições da realidade. Era difícil imaginar que aquele triunfo ressoaria para a história regional como o início de um processo de avanço das lutas populares e vitórias eleitorais de forças progressistas, recolocando a revolução, o socialismo, a luta de classes e tantos outros termos e conceitos então abandonados de volta à ordem do dia.

A Constituição de 1999

Chávez foi fiel às suas propostas apresentadas durante a campanha eleitoral e no mesmo dia de sua posse, em 2 de fevereiro de 1999, emitiu decreto convocando o processo constituinte. Ao fazer o juramento de posse do cargo de presidente, com as mãos sobre a constituição, disse jurar sobre essa “moribunda constituição” que promoveria uma nova carta magna. Este processo iniciaria, contudo, com uma consulta ao povo, por meio de referendo, perguntando se a população estaria de acordo com a convocação de uma Assembleia Nacional Constituinte. Dois meses depois, em abril, foi realizado o Referendo Constituinte, no qual 87% da população autorizou a convocação do processo. Em julho foram eleitos os deputados constituintes pela população, onde as forças do Polo Patriótico conseguiram uma vitória esmagadora, com 119 das 131 cadeiras.

A Constituição de 1999 marca a refundação institucional do país, que serviria de modelo para as forças populares na América Latina e além. Ela defende uma democracia participativa e protagônica que vai muito além da desbotada “democracia” representativa liberal. Entre suas invenções estão a institucionalização dos referendos, com destaque para o revogatório (onde, no meio de um mandato, a população pode propor uma consulta para retirar do cargo um governante eleito) e os referendos para reforma da própria constituição. A criação de cinco poderes, e não mais três (Executivo, Legislativo e Judiciário), constituindo o Poder Eleitoral – resgatando proposta de Símon Bolíviar – para organizar toda a esfera eleitoral do país; e o Poder Cidadão, formado pela Procuradoria-Geral da República, a Defensoria Pública e a Controladoria-Geral da União. Houve uma ampliação no número de juízes da Suprema Corte, e um aumento das prerrogativas do Executivo com as leis habilitantes (abordadas mais abaixo), e de seu tempo de mandato, estendido para seis anos.

A nova constituição reconhecia pela primeira vez na história venezuelana os direitos dos povos indígenas e a proteção ao meio ambiente. Uma de suas maiores inovações era o reconhecimento dos conselhos populares e assembleias de vizinhos como entidades políticas de organização do povo. Tratam-se de conselhos de bairros ou regiões, onde os moradores se reúnem para discutir os problemas da localidade e possíveis soluções. Em determinadas pautas suas decisões têm caráter deliberativo, como na alocação de recursos para obras de infraestrutura, fornecimento de água e promoção de atividades culturais. Essa iniciativa revolucionária passou a promover a democracia de base no país, politizou boa parte da população, com destaque para os mais pobres e moradores de favelas e bairros populares, que se constituíram a base social de sustentação do chavismo. A Constituição de 1999 também mudou o nome do país para República Bolivariana da Venezuela, em proposta do próprio Chávez, e acabou com as duas câmaras legislativas (Câmara dos Deputados e Senado), criando apenas uma, a Assembleia Nacional.

Ao final de seis meses de trabalho, o povo foi novamente convocado em referendo, agora para decidir se aprovava ou não a Carta Magna. Em dezembro de 1999 o novo texto constitucional foi aprovado por 71% dos votos. Chávez não parou por aí. Com a nova Constituição em vigor, todos os cargos eletivos deveriam passar por novas eleições, inclusive a própria presidência. As “megaeleições” foram convocadas para julho de 2000, quando ocorreram, simultaneamente, pleitos para presidente e Assembleia Nacional, governadores e assembleias estaduais, prefeitos e vereadores. Chávez foi reeleito com 59% dos votos (mais do que o pleito de 1998) e seus partidários conquistaram a maioria da Assembleia Nacional e dos governos estaduais.

Em um ano, a população foi convocada quatro vezes às urnas para passar o país a limpo, formulando uma nova constituição e renovando todos os Poderes da República. Foi uma tarefa hercúlea, mas muito bem-sucedida. Chávez entregou o poder de decisão ao povo venezuelano, enterrando a falsa democracia do Puntofijo e politizando a população. Ao mesmo tempo, construiu uma nova arquitetura de poder que lhe permitisse, junto ao povo, promover as modificações estruturais necessárias para o desenvolvimento socioeconômico do país. De fato, uma revolução estava em curso e boa parte da população fazia e desejava fazer parte dela. A constituinte inaugurou um mecanismo importante de funcionamento da Revolução e que angariava força ao chavismo: a consulta popular nos temas importantes por meio de referendos.

Se no campo político Chávez foi rápido, aproveitando e ampliando seu capital político, na economia iniciou de modo mais moderado. O governo foi hábil em manter a equipe econômica anterior enquanto concentrava forças no processo constituinte. Garantiu os investimentos estrangeiros e não fez nenhuma grande ação que tirasse foco da batalha política. Quando os trabalhos para a nova carta magna já estavam adiantados foi o momento em que Chávez começou a colocar em prática seu plano de recuperação da soberania econômica do país.

Seu primeiro lance foi ousado. Conseguiu articular a II Cúpula de Chefes de Estado e Governo da OPEP, em território venezuelano. Tal Cúpula não ocorria desde 1975 e tinha o objetivo de recompor os preços do petróleo (naquele momento sendo vendido por menos de US$ 10 o barril) e reavivar a própria OPEP como uma entidade influente na geopolítica internacional. A ação foi bem-sucedida e importante para recuperar os ingressos nos cofres públicos. A Venezuela se beneficiaria da escalada do preço do petróleo nos anos 2000, principalmente em virtude do aumento da demanda chinesa. Mas os recursos obtidos pelo petróleo somente seriam usados para combater a gravíssima crise social e econômica graças às ações do governo Chávez.

Em 2001, após a aprovação da Constituinte e sua nova eleição, combinado com a recuperação paulatina dos preços do petróleo, Chávez e sua equipe sentiram-se seguros para incidir de maneira mais direta na desigual sociedade venezuelana, aprovando novas leis que reestruturavam todos os setores da economia. As Leis Habilitantes eram um novo mecanismo da Constituição, em que a Assembleia Nacional permite ao presidente legislar sem a aprovação parlamentar. Com ela Chávez promulgou 49 leis reestruturando portos, setor bancário e finanças, aviação civil, sistema ferroviário, segurança, gás, eletricidade, turismo, entre outros. As mais importantes e polêmicas foram a Lei de Terras e Desenvolvimento Agrário, Lei de Pesca e Aquicultura e a Lei de Hidrocarbonetos.

A Lei de Terras promoveu um recadastramento das propriedades rurais no país, exigindo a comprovação da propriedade e produtividade de terras. A taxação das propriedades passou a ser realizado pelo seu tamanho. As que fossem consideradas ociosas seriam destinadas à reforma agrária, assim como uma série de benefícios seriam concedidos para o pequeno camponês e à agricultura familiar. A Lei de Pesca também beneficiava os pescadores artesanais, com incentivos à manutenção de suas atividades e delimitava a pesca industrial para além das seis milhas da costa, evitando assim uma pesca predatória que ameaçava a reprodução dos peixes e demais animais marinhos, ações que colocavam o próprio setor em risco de colapso.

A Lei de Hidrocarbonetos tinha endereço certo: acabar com a posição da PDVSA como um Estado dentro do Estado, seu controle por parte do capital internacional e sua espoliação por parte do patronato local. A Lei aumentava os royalties e impostos que a empresa deveria pagar ao governo e delimitava que os ingressos deveriam ser destinados à saúde, educação, estabilização macroeconômica do país e reinvestidos no desenvolvimento nacional.

Chávez e seu governo demonstraram grande habilidade. Em um primeiro momento concentraram forças em construir uma hegemonia política e eleitoral junto à população, forjando uma nova institucionalidade, que possibilitasse a utilização de mecanismos constitucionais no sentido de reestruturar a economia nacional em prol das maiorias. Seus passos econômicos foram graduais, primeiro para recuperar os preços do petróleo, fonte de recursos sem a qual nada funciona na Venezuela, para depois avançar sobre os pontos centrais da economia. Chávez mostrava que não era nem um demagogo, nem um bufão, que estava à frente de um governo nacionalista, antineoliberal e de viés popular, ao mesmo tempo que demonstrava ser um líder muito inteligente, avançando com cautela, sempre angariando forças junto à população, para realizar uma política de maioria. Obviamente, o avanço popular desencadearia o ódio da classe dominante, de uma fração privilegiada da classe média que vivia de cargos estatais e na PDVSA e do imperialismo norte-americano (naquele momento gerido por George W. Bush). 2002 seria um ano dramático que mudaria a Venezuela para sempre.

O Golpe fracassado de 2002 e o paro petroleiro

Com o avanço das medidas populares do governo Chávez, as forças representantes do patronato e do capitalismo internacional passaram a tramar a derrubada do presidente. As Leis Habilitantes afrontavam diretamente os lucros e propriedades da burguesia venezuelana e do capital estrangeiro, além dos cargos de confiança em órgãos públicos e na PDVSA distribuídos a setores médios. Representantes do patronato, dos partidos políticos tradicionais e a embaixada dos Estados Unidos derem início a uma série de eventos que culminariam em um drama nacional.

Já no final de 2001, após a promulgação das Leis Habilitantes, a direita venezuelana passou a convocar manifestações de rua e “paros”, ou seja, paralisações em setores produtivos e do comércio, como forma de insatisfação com as ações de Chávez. Nos primeiros meses de 2002 as manifestações iam se tornando maiores e mais recorrentes, em cenas que se tornariam parte da realidade política latino-americana nas primeiras décadas do século XXI: verdadeiras revoltas dos privilegiados, enrolados na bandeira nacional e dos EUA, acusavam Chávez de comunista, terrorista, ateu e o que mais surgisse na imaginação fértil do conservadorismo. Aqueles que apoiavam o governo, especialmente os mais pobres, o faziam porque viviam de esmolas da política “populista” do chavismo. Os participantes das manifestações antigoverno se concentravam nos bairros ricos das grandes cidades, principalmente a capital Caracas. Eram na sua maioria brancos e ricos, a antítese da maioria do povo.

O governo respondia também com grandes marchas, onde ficava evidente o trabalho político feito pelas assembleias de vizinhos e conselhos populares. Em pouco tempo, as organizações de base nos locais de residência da classe trabalhadora – agora reconhecidas na constituição como entes políticos – passaram a politizar e organizar o povo, e estavam prestes a enfrentar sua primeira grande batalha de mobilização na Revolução Bolivariana. Chávez demarcou bem que as riquezas do petróleo deveriam ser repartidas com toda a população e não restringidas a uma casta de privilegiados.

Foi convocada uma grande marcha opositora para o dia 11 de abril de 2002, apoiada por todos os meios de comunicação privados, que repetiam exaustivamente nos comerciais convocatórias para a manifestação. Para contrabalancear, o governo também convocou uma manifestação, que se daria nas imediações do Palácio de Miraflores, sede do Executivo. A Fedecámaras, juntamente com os meios de comunicação privados, a embaixada norte-americana e alguns oficiais contrários ao governo repetiam exaustivamente que “a batalha final se dará em Miraflores”, mesmo sabendo que milhares de apoiadores do governo estariam nos arredores do Palácio.

Ao chegar ao seu ápice a manifestação da oposição foi desviada para Miraflores em uma atitude irresponsável, no intuito de jogar uma multidão contra a outra. Quando ambas estavam já muito próximas e ficava claro que os corpos de segurança não conseguiriam manter a separação entre as duas marchas, tiros passaram a serem ouvidos. Franco-atiradores do alto dos prédios passaram a assassinar pessoas a esmo, sempre com tiros na cabeça. Tratava-se de um plano orquestrado de matança para jogar a culpa no presidente Chávez. Dezenas de pessoas foram assassinadas pelos atiradores de elite e em outros confrontos. De maneira coordenada, os canais privados de televisão exibiam as cenas de confronto, colocando a culpa no governo pela matança, enquanto as lideranças patronais e militares dissidentes davam declarações exigindo a renúncia do presidente e a formação de um governo de transição.

Pela noite os militares oposicionistas se sublevaram contra o governo e cercaram Miraflores, exigindo que Chávez renunciasse e fosse preso. Dentro do Palácio, o presidente e seus ministros avaliavam a dramática situação quando o canal VTV (canal público, na época único contraponto à mídia empresarial) foi tomado pelos golpistas e retirado do ar. Chegaram as ameaças de que se Chávez não se entregasse o Palácio seria bombardeado. Depois de horas de negociações – que incluiu conversas do presidente com Fidel Castro – Chávez se entregou, se negando, contudo, a assinar uma carta de renúncia. Deixava claro que ocorria um golpe de Estado e que se encontrava sequestrado pelas forças golpistas.

Ao amanhecer do dia 12 de abril o que se assistiu foi um show de horrores nos canais de televisão. Militares e jornalistas golpistas se vangloriavam em programas de TV de terem tramado o golpe e narravam para todo um país estarrecido, passo a passo, como se deu todo o plano para a ação. Figuras ligadas ao chavismo passaram a serem perseguidas numa caça às bruxas e espancadas por militantes dos partidos de direita. A embaixada de Cuba – onde figuras do governo chavista procuraram refúgio – teve seus serviços de água e luz cortados. Em cena grotesca, os políticos de direita (os mesmos derrotados eleitoralmente diversas vezes por Chávez nos últimos anos) se reuniram junto a líderes empresariais e, ao vivo na televisão, declararam o presidente da Fedecámaras, Pedro Carmona, como presidente do país num governo de transição, ao mesmo tempo em que era anunciado a destituição de todos os deputados eleitos para a Assembleia Nacional, e os titulares dos Poderes Judiciário, Eleitoral e Cidadão, tudo sob vivas e aplausos da burguesia venezuelana presente na cerimônia. O governo golpista foi prontamente reconhecido pelos Estados Unidos e a Espanha, mas não pelos países latino-americanos (inclusive o Brasil, então governado por Fernando Henrique Cardoso).

O que as televisões privadas não mostravam era a ebulição social que começava a tomar forma nos bairros populares e favelas de Caracas. Mesmo com intensa repressão policial, a população passou a fazer barricadas, piquetes, trancaços de ruas e manifestações, exigindo o retorno de Chávez e afirmando que ele não tinha renunciado, mas sim, estava sequestrado. Na manhã do dia 13 de abril, os conselhos comunais, assembleias de vizinhos e outros coletivos chavistas tomaram as ruas da capital do país em marcha rumo ao Palácio Miraflores para exigir o retorno de Chávez. Com o Palácio sitiado pela população, militares leais a Chávez que faziam a segurança do edifício passaram a agir e retomaram o Palácio, prendendo vários integrantes da cúpula golpista. Carmona e outros conseguiram fugir. A massa que se aglomerava no lado de fora do Palácio foi ao delírio, quando fuzileiros subiram no teto do prédio e levantaram a boina vermelha, símbolo chavista. Ao se espalhar a notícia do contragolpe bem-sucedido, diversos quartéis pelo país passaram a enviar mensagens a Miraflores dizendo estar com a Constituição e com o presidente Chávez.

Faltava, entretanto, achar o presidente. Boatos se multiplicavam de que seria executado, ou entregue aos Estados Unidos. Novamente, com a participação de militares leais à Revolução Bolivariana, Chávez foi resgatado e retornou já na madrugada do dia 14 a Miraflores, onde foi saldado por uma multidão que o esperava ao coro de “voltou, voltou”. Foram três dias dramáticos que deixaram um saldo de dezenas de mortos e um país fraturado. Em menos de 72 horas o golpe foi derrotado pela grande mobilização popular e pela ação dos militares leais a Chávez. Aqui estão duas características essenciais da Revolução Bolivariana e de qualquer movimento revolucionário que se preze: a organização das massas e a politização dos militares por um viés socialista e anti-imperialista são necessárias para a manutenção de qualquer governo popular. O resultado do fracassado golpe marcaria a oposição como golpista e o chavismo como força democrática e pacífica.

Mas a oposição direitista e o capital internacional não desistiriam tão fácil e tentariam uma última cartada na virada de 2002 para 2003. Um paro petroleiro, quando praticamente toda a produção de petróleo e derivados do país foi paralisada, mostrando a força que ainda detinha a burocracia do Puntofijo dentro da PDVSA e outros setores da produção petroleira. As consequências para a população foram avassaladoras: falta de gasolina nos postos, desabastecimento de alimentos, restaurantes e centros comerciais fechando as portas, tudo ampliado por uma cobertura parcial da mídia que culpava o governo pelo caos realizado pelos empresários. Bancos fecharam e houve fuga de capitais do país.

Chávez novamente mostrou altivez e enfrentou o paro, realizando uma devassa na PDVSA e nas Forças Armadas, demitindo e retirando de postos-chave os sabotadores. A Venezuela, dona das maiores reservas de petróleo do mundo, teve que importar gasolina para enfrentar a escassez. As Forças Armadas foram acionadas para tomar o controle de poços de petróleo, plataformas, navios e refinarias. Com um mês de paralisação e sem perspectiva de derrubar o governo, a burguesia não aguentou e teve que reabrir seus negócios. A direita do país saiu totalmente desmoralizada, ao perder todas as quedas de braço com o governo. Por outro lado, Chávez consolidou sua hegemonia popular e conseguiu colocar em marcha seu plano. A constituição estava reformada, a economia se recuperaria agora sob a égide da soberania nacional e em termos antineoliberais, e a maioria da população, sobrevivente de terríveis provações, estava disposta a dar o sangue pela Revolução Bolivariana. A situação ficou clara para Chávez: com o controle da política e da economia, essa população, que lutou bravamente, deveria ser assistida em suas necessidades. E a continuidade e aprofundamento de seu projeto não cabiam no capitalismo dependente.

O socialismo do século XXI

Vencidas as batalhas decisivas para a manutenção de seu projeto, Chávez passou a desenvolver formas de atender os problemas da população e declarou a Revolução Bolivariana uma revolução socialista, já em 2001. Educação, saúde, habitação, previdência social, apoio às cooperativas, comunas e microempresas, foram algumas das políticas públicas desencadeadas por Chávez que mudaram o panorama social da Venezuela. De um dos países mais desiguais do continente, castigada por décadas de crise econômica, o país passou a exibir melhorias nos indicadores sociais, ao mesmo tempo em que a economia ganhava novo fôlego com a alta do petróleo. Importante destacar que as ações do governo sempre são acompanhadas da politização e organização da população.

Foram estabelecidas as “Missões”, programas sociais vinculados diretamente ao governo federal, evitando assim as burocracias estaduais e municipais e melhorando o contato do povo com o governo revolucionário. A primeira grande missão foi a Missão Bairro Adentro, que instalou consultórios médicos em cada bairro e favela do país. Foram construídos, junto às próprias comunidades, pequenos sobrados para que o médico residisse na comunidade, com a parte de baixo da casa sendo um consultório e na parte de cima sua residência. Mesmo com incentivos do governo, a elitista categoria médica do país aderiu pouco ao projeto. A saída foi um convênio com Cuba, que enviou mais de 20 mil médicos (além de profissionais de educação e esportes) em troca de petróleo abaixo do preço de mercado. A conhecida ação de solidariedade internacional da medicina cubana recebeu a reação enérgica da direita do país, mas aos poucos conquistou o povo venezuelano, principalmente os mais pobres (muitos que nunca tinham ido ao médico na vida).

Na educação houve uma reforma total do ensino básico e a distribuição de tabletes educativos a toda criança matriculada na escola pública. A ONU reconheceu a Venezuela como território livre do analfabetismo em 2005, situação muito diferente de países da região com mais recursos, como o Brasil. Foram criadas diversas universidades públicas e melhorado o acesso ao Ensino Superior, algo que era exclusivo às classes abastadas. A maioria das universidades do país eram privadas e/ou controladas pela Igreja católica (altamente conservadora e alinhada com a direita do país). Nesse contexto, a criação das “universidades bolivarianas”, assim como a melhora na Escola Básica, não era somente uma política educacional, mas sim, uma necessidade revolucionária de educar uma população até então desvalida e também de produção de conhecimento para a emancipação nacional, contra uma educação mercadológica e colonizada. Até hoje há uma forte divisão político-ideológica, que se manifesta inclusive no movimento estudantil do país, entre os educados nas escolas públicas – que tendem a ser de esquerda – e nas privadas – que tendem a ser de direita.

Uma das ações de maior envergadura do governo bolivariano é a Gran Misón Vivenda Venezuela, programa de construção de habitações populares com o objetivo de zerar o déficit habitacional do país. A Missão não se restringiu a construir prédios com apartamentos minúsculos (como no Brasil), mas erguer verdadeiros bairros inteiros, de blocos de apartamentos de 2 a 3 quartos (dependendo do tamanho da família), com infraestrutura de transportes, quadras esportivas e espaços comuns (para festas e assembleias políticas). Mais importante, os apartamentos não podem ser vendidos, e operam sob uma espécie de propriedade familiar, onde a titularidade pode ser repassada somente para filhos e outros familiares. Isso evita que as residências caiam no mercado imobiliário e, ao mesmo tempo, sejam ocupadas por quem realmente precisa – pessoas que moravam em áreas de risco, além de garantir que cada família sempre terá um teto para viver. A maioria dos apartamentos já vem equipada com fogão, geladeira, máquina de lavar e micro-ondas, graças a convênios com a China que troca os eletrodomésticos por petróleo.

A previdência social foi uma das grandes revoluções sociais feitas pela Revolução Bolivariana. A cobertura de aposentadorias, pensões e auxílios a necessitados aumentou enormemente a partir de Chávez, garantindo renda fixa a idosos e portadores de necessidades especiais, o que, indiretamente, aumenta a renda de toda família. O governo reconheceu a “dona de casa” como profissão, garantindo o direito à aposentadoria de milhões de mulheres que nunca estiveram no mercado formal de trabalho. Em 2018 a Venezuela se tornou o primeiro país da América Latina a ter 100% de seus idosos recebendo algum benefício previdenciário.

A legislação trabalhista tem o trabalho como elemento principal da criação da riqueza do país. Ela reconhece o trabalho como direito, de acordo com a capacidade de cada um (incluindo pessoas com deficiência), proíbe a demissão sem justa causa (estabilidade no emprego), garante dois dias de descanso semanal a todos os trabalhadores – sendo os dois dias obrigatoriamente seguidos; proíbe a terceirização e a desigualdade salarial por gênero e outros tipos de discriminação, e reconhece os idiomas indígenas como oficiais, o que permite o acesso a regras, leis e à Justiça do trabalho na língua original desses povos. É proibida a demissão de trabalhadoras mães e pais até dois anos depois do nascimento dos filhos (direito estendido a pais adotivos). É importante salientar que mesmo durante a guerra econômica enfrentada pela Venezuela no governo Maduro, o desemprego sobe pouco quando comparado a outros países da região, justamente por essa legislação protetiva combinada a outras formas de organização do trabalho.

A comunicação foi um dos pontos onde o chavismo mais investiu. Para combater uma mídia totalmente hostil ao governo, dentro e fora do país, a Revolução Bolivariana investiu na construção de um sistema de comunicação nacional, reunindo canais de televisão, emissoras de rádio, jornais impressos e portais de internet – inclusive com grande trabalho nas redes sociais, especialmente o Twitter, a mais popular entre os venezuelanos. Talvez a mais audaciosa iniciativa tenha sido a Telesur, canal de televisão – também transmitido pela internet – que se propõe a ser uma “CNN da esquerda”, com notícias 24 horas por dia, com sinal para vários países latino-americanos, sustentada em coparticipação com os governos de Cuba, Bolívia, Equador, Nicarágua e Uruguai.O país também fechou convênios de comunicação com outras nações para troca de conteúdos jornalísticos, como China, Rússia e Irã, retirando monopólio das agências de notícias ocidentais. As leis que regulam a mídia também foram modificadas, para normatizar a classificação etária de cada programa, garantir o direito de resposta de pessoas difamadas pela imprensa e reconhecer as iniciativas de meios de comunicação comunitários, compreendendo o acesso e a produção de comunicação como um direito democrático do povo venezuelano.

No plano internacional, Chávez colocou a Venezuela como ponta de lança no processo de integração latino-americano, principalmente em diálogos com os governos Lula e Dilma (Brasil) e Nestor e Cristina Kirchner (Argentina). Os três países foram os grandes responsáveis pelo fracasso do desejo norte-americano de formular a ALCA (Área de Livre Comércio das Américas). Congregou os países com projetos socialistas na região na ALBA (Alternativa Bolivariana para os povos de nossa América); formulou o Petrocaribe, rede comercial de cunho socialista, onde a Venezuela vende petróleo a condições favoráveis aos países caribenhos e recebe em troca alimentos e serviços nos quais os demais participantes são especialistas; articulou a Unasul (União das Nações Sul-americanas) e a CELAC (Comunidade dos Estados Latino-Americanos e Caribenhos), oportunidades para a integração regional e diminuição da influência norte-americana na região. Para além da América Latina, a diplomacia bolivariana se orientou pela criação de um mundo multipolar, com respeito à soberania dos povos, forjando laços importantes com China, Rússia e os países da OPEP e do Movimento de Países Não-Alinhados (MNOAL). Nos momentos de ataque mais agudo do imperialismo norte-americano, essa extensa rede diplomática realizada por Chávez e continuada por Maduro se mostrou de grande valia, deixando evidente os ataques estadunidenses, apoiados por seus parceiros europeus e governos subservientes na América Latina.

A partir dessas e outras iniciativas, a Revolução Bolivariana fincou raízes firmes e sólidas na sociedade venezuelana, sendo inclusive um participante de primeiro nível na geopolítica regional e internacional. A Revolução não era somente a liderança de Chávez, mas sim, um movimento social gigante, que sacudiu todo o país e passou a estar presente em todos os setores da sociedade. Revolução, no sentido mais profundo da palavra. Sua base está principalmente nos trabalhadores pobres, que passaram a se organizar em diversas formas de participação reconhecidas pela Constituição e incentivadas pelo poder público. O Socialismo do Século XXI defendido por Chávez deve caminhar para um “Estado Comunal”, onde as formas organizativas da população vão recebendo cada vez mais poder político e econômico, diminuindo o Estado atualmente existente, que se torna muito mais um corpo técnico para atender as necessidades deliberadas pelo povo, tendo como objetivo sua total extinção. Para usarmos termos clássicos, poderíamos qualificar essa ideia como uma via venezuelana para o socialismo e o comunismo. O marxismo aqui se mescla, de forma original, com ideias da Teologia da Libertação e da cultura do país, que contém contribuições importantes de origem indígena e afro-venezuelana, além de experiências comunitárias autogestionárias que precedem a Revolução Bolivariana.

Os conselhos comunais, que já eram responsáveis por planejar e executar obras e melhorias em suas localidades, recebem a companhia de fábricas e serviços cooperativos, ou autogestionários, com apoio do poder público. Da junção dessas diversas experiências socialistas nascem as comunas, entidades que pretendem ser o embrião do poder popular e da transição socialista na Venezuela. As comunas são entidades territoriais, abarcando as iniciativas descritas acima, visando a autoprodução e autogoverno. Trata-se de um processo intrincado, onde essas entidades passam de executoras autogestionárias de verba pública, para detentoras de meios de produção e serviços, com tendência a não depender mais do Estado, sendo geridas por um “parlamento comunal”, onde todas as entidades participantes da comuna têm participação. Um projeto de transição ao socialismo, onde os meios de produção e serviços, assim como algumas esferas de poder vão sendo repassadas à população, ficando o governo somente com as questões mais estratégicas. Esses são os objetivos principais da Revolução Bolivariana: construir o Socialismo do Século XXI e o Estado Comunal.

A vitória perfeita e a morte de Chávez

Por meio da democracia direta e protagônica o chavismo constrói um modelo próprio de socialismo, a partir da participação popular. A reestruturação dos diversos setores da economia e a recomposição dos preços do petróleo ao longo da década de 2000 permitiram ao governo atenderem as demandas da população, combinada com uma diplomacia direcionada à integração latino-americana e a multipolaridade, que garantiu a diversificação dos parceiros econômicos do país e também a segurança contra os ataques norte-americanos. Chávez se reelegeu em 2006 com uma vitória esmagadora: 62,84% dos votos.

Como toda revolução, o avanço do processo divide a sociedade, potencializa os inimigos e ocasiona traições. Alguns aliados de Chávez, tanto no campo militar, quanto partidário, romperam com o governo, ao perceberem o aprofundamento da revolução e sua conotação socialista. O chavismo também avançou em termos organizacionais, fundindo diversas organizações de esquerda em uma única agremiação, o PSUV (Partido Socialista Unido de Venezuela) e consolidando uma nova doutrina militar, anti-imperialista e socialista, principalmente na formação da nova oficialidade. As organizações populares em bairros, favelas e locais de trabalho passaram também a contar com maior apoio em sua estruturação e formação política. O avanço do processo revolucionário vai tornando mais complexa e intrincada a luta de classes.

Chávez enfrentou um câncer, que retornou em 2012, momento de novas eleições presidenciais. O pleito tomou cores de batalha decisiva. Tanto a direita, quanto o próprio chavismo consideravam que mais seis anos de governo do presidente tornariam a revolução irreversível. O colégio eleitoral venezuelano dobrou de tamanho ao longo do governo Chávez, de 10 para 20 milhões de cidadãos aptos ao sufrágio. Boa parte da população não tinha carteira de identidade, e sem esse documento, era impedida de exercer o direito ao voto. Foi o governo de Hugo Chávez que promoveu uma grande campanha de documentação, concedendo o registro de identidade aos cidadãos e com isso sua inscrição eleitoral.

O capital internacional despejou muitos recursos para eleger o candidato Henrique Caprilles, representante de uma unidade dos partidos de direita do país, chamada MUD (Mesa de Unidade Democrática). Para isso, Caprilles se apresentou como uma direita “light”, que reconhecia as políticas públicas chavistas como responsáveis pela melhoria nos indicadores sociais e jurava mantê-las. Caprilles chegou a dizer que sua inspiração era o governo Lula no Brasil e que sua candidatura era uma proposta de unir todos os venezuelanos, despolarizando a sociedade. Sua campanha animou o eleitorado conservador e seus comícios reuniam grandes aglomerações.

 Chávez já estava combalido pelo câncer e mesmo assim não se intimidou em realizar a campanha. Por onde passava, uma massa humana vestida de vermelho seguia o Comandante e respondia a seu chamado para uma “vitória perfeita” no pleito que se aproximava. O ato final da campanha tomou cores antológicas, dignas de processos revolucionários. Uma multidão de mais de um milhão de pessoas lotou a Avenida Bolívar sob forte chuva que deu contornos ainda mais épicos ao evento. Naquele 4 de outubro de 2012 Chávez realizou um dos seus mais grandiosos discursos, que ficou conhecido como “um relâmpago na chuva”. Foi também uma despedida. Chávez venceria as eleições alguns dias depois e viria a falecer cinco meses após o pleito.

A eleição presidencial de 2012 foi a maior da história venezuelana até a presente data (dezembro/2019). Com o comparecimento de 80,56% do eleitorado, que totalizaram mais de 15 milhões de sufrágios (num colégio eleitoral de 18 milhões de votantes), Hugo Chávez foi reeleito com 55,07% (mais de 8,1 milhões votos) contra 44,31% de Caprilles (mais de 6,5 de votos). Foi a maior votação de um candidato presidencial na história do país até o momento (dezembro/2019). Chávez chegava a incrível marca de 4 vitórias eleitorais seguidas, sempre recebendo mais votos do que no pleito anterior.

Dois meses após as eleições, em dezembro de 2012, Chávez fez seu último pronunciamento à nação em rede de rádio e televisão, no qual detalhava que precisava se retirar para tratar seu câncer em Cuba. Deixou claro à população que o caso era sério e que poderia não retornar. E foi direto, ao apontar que, caso ocorresse o pior, o povo deveria eleger Nicolás Maduro para presidente da república. Maduro, naquela época vice-presidente, estava ao seu lado, assim como outras figuras de proa do chavismo. A cena é histórica por ser a primeira vez que um líder revolucionário indicava de maneira tão direta à população o seu sucessor. O ato garantiria no futuro a unidade do chavismo, ao contrário de outros processos revolucionários, onde a desaparição física de sua principal liderança ocasionava disputas fratricidas pelo poder ou até a contrarrevolução.

Em janeiro, quando deveria tomar posse do novo mandato, uma multidão foi à sede do Poder Eleitoral (Conselho Nacional Eleitoral – CNE) para “tomar posse” no lugar de Chávez, mostrando sua fidelidade ao Comandante. Maduro governava o país e fazia constantes viagens a Cuba para visitar o presidente. No início de março Chávez retornou para a Venezuela, transferido para uma unidade médica militar. No dia 5 de março de 2013 faleceu devido a complicações causadas pelo câncer. Maduro em lágrimas, junto a outras lideranças chavistas deu a notícia em rede de rádio e televisão. Pela legislação eleitoral venezuelana, se o presidente falece na primeira metade do mandato – como era o caso – novas eleições deveriam ser convocadas. Frente ao luto pela perda de seu Comandante, o chavismo teria que se preparar para uma nova batalha eleitoral, a mais difícil de sua história. O velório de Chávez foi acompanhado por uma multidão ao longo das ruas de Caracas e no mausoléu que lhe foi construído, no mesmo quartel que se insurgiu no 4 de fevereiro de 1992. Líderes de todo mundo compareceram ao seu funeral. Chávez saia da vida e entrava para a história.

Maduro, o sucessor

Em menos de um ano a Venezuela caminhava mais uma vez para uma eleição presidencial. Com o falecimento de Hugo Chávez antes da metade do mandato, um novo pleito seria o caminho constitucional estabelecido. Seguindo o último comando de Chávez, Nicolás Maduro foi apresentado como seu sucessor. Maduro construiu sua militância no sindicalismo do setor de transportes (foi motorista de ônibus e também trabalhou no metrô de Caracas), apoiou o 4F, estando com Chávez desde o começo de sua ascensão. Foi deputado constituinte em 1999 e depois ministro em diversas áreas do governo, inclusive chanceler. Era o vice-presidente no novo mandato de Chávez, e já governava de facto enquanto seu padrinho político se tratava em Cuba. Sua candidatura e vitória representavam a continuidade e unidade do chavismo, além de uma escolha pessoal do próprio líder falecido.

A direita, sempre apoiada pelo capital internacional, viu a sua grande oportunidade. Pela primeira vez em quase quinze anos não teria que concorrer contra um mito político para presidência da república. Sentiu o momento e partiu para cima, novamente com grande campanha em volta de Henrique Caprilles, candidato unitário da MUD derrotado por Chávez no ano anterior. Com o desaparecimento físico de Chávez uma nova conjuntura se abria para a Venezuela e a direita sentiu a possibilidade de vitória. Para isso traçou uma estratégia que se tornaria lugar comum a partir daquele momento. Investe pesado nas eleições quando vê possibilidade clara de vitória, mas desconhece os resultados em caso de derrota. Em toda campanha eleitoral a direita, ao receber um resultado negativo, grita “fraude”, sem nunca apresentar provas, mas reconhece imediatamente o resultado dos pleitos em que sai vencedora.

Em 14 de abril de 2013 o país testemunhou a mais acirrada eleição da sua história, superando o pleito do ano anterior. A participação foi parecida (cerca de 79%), mas a diferença entre os candidatos foi minúscula. Maduro venceu com 50,61% (7,5 milhões de votos), contra 49,12% de Caprilles (7,3 milhões de votos). Muitos eleitores que votavam em Chávez, ou que não participavam das eleições, votaram em Caprilles, demonstrando como a ausência de sua liderança máxima anunciava momentos difíceis para o chavismo. Caprilles não reconheceu os resultados, alegando fraudes, nunca comprovadas, e convocou a população a “descarregar sua indignação nas ruas”. Foi a senha para ataques incendiários a sedes de organismos identificados com o chavismo e assassinatos de militantes de esquerda.

A violência de rua, com utilização de explosivos e ataques incendiários, somados ao desconhecimento dos resultados eleitorais passaram a ser a posição da direita venezuelana. Já no ano seguinte à eleição de Maduro, em 2014, uma parte da oposição direitista convocou a campanha “La Salida”, onda de mobilizações para a “derrubada da ditadura”. Grandes mobilizações nos bairros ricos de Caracas e outras cidades terminavam com quebra-quebra generalizado, ataques incendiários a prédios públicos e morte de transeuntes, participantes ou não de tais “manifestações”. Um mês de campanha deixou um rastro de mais de 40 mortos. O governo acionou a Justiça, através do Poder Cidadão, e prendeu os líderes das manifestações, entre eles Leopoldo López, prócer do partido de extrema-direita Voluntad Popular, acusado de ser o mentor intelectual das mortes ocorridas durante La Salida.

A tentativa de golpe foi sufocada, mas deixou lições à direita. Primeiro, La Salida foi capitaneada por um agrupamento de extrema-direita, minoritário na MUD, principalmente o partido Voluntad Popular e outros menores. Para um golpe bem-sucedido seria necessária uma unidade da direita e o apoio logístico da embaixada norte-americana. Segundo, a maioria da população, classe trabalhadora residente nos bairros populares, não aderiu às manifestações, pois percebia que era uma rebelião de ricos contra as conquistas da Revolução Bolivariana, menos de um ano depois das eleições presidenciais. A politização e a melhoria material da vida do povo foi o grande legado de Chávez. Os Estados Unidos compreenderam que não haveria adesão popular a um golpe contra Maduro enquanto as condições de vida dos venezuelanos continuassem melhorando, como os indicadores sociais apontavam. Era necessário isolar o chavismo da massa, colapsar o país e apresentar a Venezuela internacionalmente como uma ditadura.

Guerra econômica, avanço imperialista

A conjuntura latino-americana na década de 2010 mudou radicalmente. Os efeitos da crise desatada em 2008 – que afetaram primeiramente os Estados Unidos e a União Europeia, passaram a atingir com mais força a periferia a partir desse decênio. Sua principal manifestação foi a queda no preço internacional das commodities, com a retração da demanda. Para países que têm produtos primários como elemento principal de sua pauta exportadora, isso significa queda nos ingressos e déficit na balança comercial. Com menos dinheiro em caixa, menos investimentos em bem-estar e infraestrutura. A Venezuela foi diretamente afetada pela queda estrondosa do preço do petróleo que em um intervalo de três anos caiu de um preço acima dos 100 dólares para menos de 30. Pesou também a ação geopolítica estadunidense de forçar a queda do preço internacional do ouro negro, aumentando a exploração do fracking e utilizando a Arábia Saudita para inundar o mercado com uma oferta muito alta.

Junto às mudanças na economia mundial, os governos progressistas da região chegaram a certos gargalos de suas propostas, ao mesmo tempo em que o imperialismo norte-americano avançou na desestabilização de seus adversários regionais. Os golpes em Honduras (2009), Paraguai (2012) e Brasil (2016), somados às vitórias eleitorais de Maurício Macri na Argentina (2015) e Jair Bolsonaro no Brasil (2018), além do racha na esquerda equatoriana entre os partidários de Rafael Correa e Lenín Moreno (2017), praticamente isolaram a Venezuela na América do Sul. Os Estados Unidos passaram a articular os governos de direita da região, esvaziando a UNASUL e a CELAC, chegando a criar o Grupo de Lima, agrupamento de países governados pela direita que tem como único propósito desestabilizar a Venezuela, algo inédito na história latino-americana.

É perceptível a mudança de postura da ingerência norte-americana na Venezuela. Se antes o governo americano apoiava logisticamente a direita venezuelana, que nunca conseguiu corresponder aos desejos do seu amo, a partir do final do governo Obama e, principalmente, com Donald Trump, o Departamento de Estado e a CIA, passaram a dirigir, de maneira direta, as posturas da oposição na Venezuela, assim como buscar coordenar ações dos governos de direita da região para isolar o chavismo na América Latina. O país caribenho passou a ser um dos mais afetados pela chamada Guerra de Quarta Geração: 

Na definição conceitual atual, a coluna vertebral da Guerra de Quarta Geração se enquadra no conceito de “guerra psicológica”, ou “guerra sem fuzis”, que foi assim chamada, pela primeira vez, nos manuais de estratégia militar da década de setenta. Em sua definição técnica, “Guerra Psicológica” ou “Guerra Sem Fuzis” é o emprego planejado da propaganda e da ação psicológica orientadas a direcionar condutas, em busca de objetivos de controle social, político ou militar, sem recorrer ao uso das armas. Os exércitos militares são substituídos por grupos de operação descentralizados, especialistas em insurgência e contrainsurgência e por especialistas em comunicação e psicologia de massas (FREYTAS, 2010).

Nessa guerra “sem fuzis”, se utilizam as redes sociais e os grandes conglomerados empresariais de mídia, que seguem a posição ditada pelo Departamento de Estado norte-americano. Aciona-se a sabotagem e as sanções internacionais, chamada de “guerra econômica”. Donald Trump proibiu o comércio de qualquer empresa norte-americana (ou estrangeira que tenha filiais nos Estados Unidos) com o governo venezuelano e a PDVSA, além de proibir a venda e compra dos títulos da dívida do país, ações da estatal petroleira e demais transações no mercado financeiro estadunidense. Isso impede a Venezuela de quitar seus contratos internacionais, mesmo que assim deseje, pois, as formas de pagamento estão trancadas para negociações com os credores. Negociações de compra de alimentos e remédios no mercado internacional também são constrangidas, além dos negócios da PDVSA nos Estados Unidos (cerca de 30% das exportações de petróleo venezuelano, refinarias e uma rede de postos de gasolina em território norte-americano).

Além do cerco comercial-financeiro-midiático internacional, a situação se deteriorou internamente.  As empresas privadas passaram a praticar sabotagem, produzindo muito abaixo de sua capacidade, estocando alimentos, praticando mercado negro, contrabandeando produtos para a Colômbia, desviando para a especulação os dólares concedidos pelo governo para importação de mercadorias, entre outras práticas. O resultado foi o desabastecimento de produtos de primeira necessidade, como alimentos, produtos de higiene e limpeza, além de remédios, disparando a inflação e despencando o padrão de vida das famílias venezuelanas. O objetivo dessa ação coordenada entre órgãos do governo norte-americano e a burguesia local consistia em deteriorar as condições materiais de vida da população que tinham sido significativamente melhoradas pela Revolução Bolivariana e assim provocar o descontentamento geral (guerra psicológica) que quebraria a hegemonia chavista na sociedade e nas instituições, levando ao golpe de estado.

É claro que os ataques inimigos não justificam por si só os problemas que a Revolução Bolivariana passaria a sofrer a partir do governo de Maduro. Um certo marasmo tomou conta das ações do governo e o próprio presidente parece ter demorado a se sentir a vontade com tamanha responsabilidade de suceder um mito político como Chávez. As contradições inerentes a todo processo revolucionário começaram a surgir, principalmente entre as formas organizativas populares (comunas, conselhos comunais, etc) e a burocracia institucional. São problemas inevitáveis de um processo que objetiva a transformação radical da sociedade e cabe à liderança revolucionária saber mediar os conflitos no sentido de manutenção da unidade, mas com o foco no avanço do processo. Outro ponto é a corrupção em organismos públicos, regalias no acesso a produtos em momento de escassez para a população e ineficácia em indústrias e empresas estatizadas ou entregues aos trabalhadores pelo Estado. A ação do governo revolucionário não pode vacilar no combate aos desvios internos e na intervenção em ações ineficazes. Quando um governo revolucionário não age com firmeza sobre essas questões, a população se desencanta com a revolução e se afasta. Foi o que ocorreu no caso venezuelano, entre 2013 e 2017.

No final de 2015 a direita conseguiu uma vitória retumbante, ao conquistar 112 de 167 cadeiras na Assembleia Nacional, passando a controlar o Legislativo, com mandato válido até 2021.  A maioria direitista passou a usar o Legislativo para sabotar e derrubar o Executivo, além de tentar revogar leis anticapitalistas até então em vigor. No campo internacional, se aproveitando da ofensiva imperialista na América Latina, a Assembleia Nacional passou a ser reconhecida pelos Estados Unidos como único interlocutor válido da Venezuela, em uma tentativa de criar uma dualidade de poder. Diversos intentos de rachar as Forças Armadas foram realizados, para provocar um golpe de Estado ou a balcanização do país, sem, contudo, alcançar sucesso. 

A Assembleia Nacional acabaria por não reconhecer Maduro como legítimo presidente e passaria a ditar regras por fora da Constituição, entrando em choque com os demais Poderes da República, principalmente o Judiciário. Em meados de 2017, a Suprema Corte chegou a tomar para si as prerrogativas do Legislativo, mas voltou atrás a pedido do próprio Maduro. Contudo, a desobediência constitucional da Assembleia Nacional continuou e passou a não reconhecer nenhum dos outros quatro poderes do país (Executivo, Judiciário, Eleitoral e Cidadão), além de, sucessivamente, “conclamar” as Forças Armadas a tomar partido contra Maduro, o que levou a Suprema Corte a decretar que o Legislativo estava em “desacato” e, portanto, seus atos eram nulos, até que retornasse às normas constitucionais. Essa ação do Judiciário inviabilizou a direita em utilizar o Legislativo como forma de desestabilização do país.

A desestabilização chegou ao auge em 2017, quando o país foi massacrado por três meses de violentas manifestações da direita onde morreram mais de 140 pessoas. Após um ano e meio de guerra econômica e psicológica visando o descontentamento social e a desestabilização e isolamento internacional da Venezuela, a oposição, junto ao governo dos EUA, passou a convocar grandes manifestações nos bairros ricos das grandes cidades, especialmente Caracas. Como resposta, o governo e seus apoiadores também organizavam marchas de resistência à escalada golpista. A Guarda Bolivariana (agrupamento policial criado pelas Forças Armadas, justamente para evitar as polícias corruptas e, algumas vezes, sob ordens de políticos opositores em estados governados pela oposição) agia no sentido de evitar que as duas manifestações, ambas de massas, se encontrassem – e assim não repetir as cenas bárbaras de 2002. Os líderes direitistas insistiam em direcionar as manifestações contra o cordão policial e atingir a manifestação chavista. Isso ocasionava conflitos entre a Guarda Bolivariana e os manifestantes contrários ao governo que começaram a ficar cada vez mais frequentes e letais. Vale salientar que a Guarda Bolivariana, diferente de outros países, não utiliza balas de borracha, muito menos munição letal, tendo como recursos antidistúrbios apenas gás lacrimogênio, cassetetes e canhões d’água.

O que começou como conflitos ao final de manifestações entre opositores e policiais evoluiu para uma sucessão de ações coordenadas contra prédios públicos, sedes regionais do PSUV e atentados terroristas contra instalações militares, além de assassinatos de pessoas “acusadas” de serem chavistas. Houve ataques incendiários contra estações de metrô (construídas pelo governo bolivariano), depredação de sedes do Poder Judiciário, Poder Cidadão e de meios de comunicação ligados ao governo, trancamento de ruas e por vezes de bairros inteiros em áreas de residência das classes mais abastadas. Pessoas foram queimadas vivas em manifestações da direita por serem supostamente infiltrados chavistas. O país entrou praticamente em colapso, principalmente no abastecimento de bens de primeira necessidade e diversas atividades econômicas foram paralisadas pela violência da direita. Logo não havia mais as grandes manifestações convocadas pelos políticos opositores, mas somente grupos mascarados que surgiam do nada e começavam a quebrar e incendiar coisas (e pessoas!), atos que em qualquer lugar do mundo seriam classificados como terroristas, mas que a mídia corporativa internacional apresentava como manifestações legítimas reprimidas pela “ditadura de Maduro”.

Com exceção do golpe malsucedido de 2002, esse foi o momento onde a Revolução Bolivariana esteve mais próxima de seu termo. O governo passou a não reprimir diretamente os atos terroristas, mas sim, reagir a eles, ao mesmo tempo em que usava os serviços de inteligência para desmontar esses grupos criminosos e desvendar suas redes de funcionamento, que incluíam lideranças políticas da direita do país. Maduro diversas vezes conclamou a oposição ao diálogo, não encontrando retorno.

A prolongação da tática da violência, sem, contudo, conseguir lograr seu objetivo (derrubar o governo, ou ao menos, partir o país ao meio) passou a surtir o efeito contrário. Como os bairros e vias trancadas se situavam nas áreas ricas das cidades, os habitantes dessas localidades, em sua maioria, partidários da direita, passaram a abandonar as manifestações – cada vez mais violentas – e a reclamar da inviabilização da vida cotidiana. O comércio e outros setores contabilizavam o prejuízo de dias parados, sempre que ocorria uma manifestação. A direita passou a dinamitar sua própria base social e perder qualquer tipo de apoio frente à violência e o caos perpetrado pelo terrorismo. Esse foi o momento exato onde o chavismo contra-atacou e retomou a hegemonia social.

Uma nova Constituinte e a retomada chavista

Para deter a escalada golpista, Maduro convocou uma nova Assembleia Constituinte, revivendo o ponto fundador do chavismo como força social. A Constituinte era a chance da participação de todos os setores e forças da sociedade venezuelana para passar o país a limpo, reescrevendo a carta magna. O intuito era descartar a violência como método de se disputar a política, trazendo essa disputa para um terreno de ampla participação popular, sem a imposição de lados. E foi exatamente esse o ponto da derrota fragorosa da direita venezuelana naquele momento. Ela se negou a participar da Constituinte e com isso deu um sinal de fraqueza à toda população – e, principalmente, para sua própria base social – de que não detinha a maioria social que alardeava ter. Ninguém que detém a maioria vai se negar a participar de um pleito que tem o poder de remodelar as leis do país.

A ação de Maduro e das forças bolivarianas também respondeu à sensação de cansaço da população com os atos violentos. Existe um intenso sentimento popular no país, construído pelo chavismo, de rechaço a qualquer solução política de força e de valorização da participação cidadã nos momentos decisivos. Com a iniciativa, Maduro isolou a direita em uma lógica “paz x violência”, apresentando a Constituinte como o caminho da solução pacífica da crise e deixando a oposição como responsável pelo caos.

A composição da Assembleia Constituinte foi uma verdadeira aula de democracia participativa e de inovação em um momento em que a “democracia” representativa liberal vem sendo questionada em âmbito mundial. A votação ignorou o sistema de partidos políticos, abriu a possibilidade para qualquer cidadão concorrer a um cargo na Constituinte, sem a necessidade de se filiar a um partido e dividiu os constituintes em duas esferas: territorial e setorial.

  • Territoriais: cada município venezuelano tinha direito a eleger 1 deputado constituinte, com exceção das capitais estaduais, que elegiam 2, e da capital federal, Caracas, que elegeu 7 representantes.
  • Setoriais: foram delineados 8 setores sociais, que os cidadãos podiam votar e se candidatar, desde que se inscrevessem no Conselho Nacional Eleitoral no setor escolhido: trabalhadores; empresários; camponeses e pescadores; aposentados e pensionistas; estudantes; indígenas; pessoas com necessidades especiais; representantes de comunas e conselhos comunais.

Alguns dos setores tinham subdivisões, como os estudantes (escola pública, privada e missões), trabalhadores (petróleo, comércio, etc) e assim por diante. A votação da Constituinte garantia uma real representatividade, seguindo a proporção social (eram cerca de 5 representantes empresariais e mais de 100 trabalhadores) e privilegiando as pessoas que realmente se destacavam como lideranças em cada área, já que não havia a participação de partidos políticos, tendo o/a candidata que ser uma referência no seu território ou setor para alcançar a vitória. Os/as representantes indígenas foram escolhidos à parte, por essa própria população, de acordo com os seus costumes ancestrais.

Os atentados terroristas da direita continuaram até o dia da eleição da constituinte, 30 de julho de 2017, quando, mesmo com ataques a bombas e trancamento de ruas – além da campanha abstencionista, 41% da população apta a votar (mais de 8 milhões de pessoas) foi às urnas e elegeu 545 representantes. Os números totais de votos demonstram que a população venezuelana preferiu a Constituinte pela paz, contra a guerra e a violência. Mesmo tentando deslegitimar o processo, a direita venezuelana acusou o golpe. A violência evaporou totalmente das ruas no dia seguinte à Constituinte. Suas diversas lideranças começaram a entrar em discordância sobre a postura a tomar sobre os fatos, o que prenunciaria o racha. Contra todos os prognósticos, Maduro não caiu depois de três meses de fortes pressões. Pelo contrário, fez o movimento mais ousado de sua presidência e se saiu vencedor, retomando a hegemonia social, política e eleitoral do chavismo.

A Constituinte se instalou e começou seus trabalhos. Além da revisão da Constituição – com consultas temáticas junto à população, ela passou também a legislar sobre o país, como órgão supremo da vontade popular (um Poder constituidor, e não constituído, como os demais). Pouco adiantou o não reconhecimento por parte de outros países submissos aos ditames estadunidenses, já que a direita local não tinha correlação de forças para impedir a instalação e funcionamento da Constituinte. Com a retomada da hegemonia e o descrédito total da oposição junto à população, a Constituinte instituiu a necessidade de renovação total dos cargos executivos do país. Se iniciou uma sequência de eleições onde o chavismo saiu amplamente vencedor. Ainda no segundo semestre de 2017, nas eleições para governadores, o chavismo venceu em 19 dos 23 estados, o que deixou claro, novamente, que a direita não tinha a maioria social que alegava e desmontou qualquer narrativa de fraude, já que ela conseguiu se sair vencedora em 4 estados e reconheceu os resultados. Logo depois, os principais partidos que compunham a MUD, prevendo novo fracasso nas eleições para prefeitos, se abstiveram de participar do pleito, dando uma vitória colossal ao chavismo em 92% dos municípios, incluindo 22 das 23 capitais. O discurso foi que a oposição se prepararia para a eleição que “realmente importava”, as presidenciais, marcadas para dezembro de 2018.

A Constituinte propôs então adiantar as eleições presidenciais de dezembro para abril de 2018, no sentido de, novamente, dar à população o direito de escolher qual projeto deveria governar o país e ratificar que as disputas políticas devem ser feitas de maneira participativa e pacífica, e não por meio de uma violência imposta por um dos lados. Maduro iniciou um ciclo de negociações com a oposição na República Dominicana, onde todas as garantias eleitorais foram acertadas, além do reconhecimento mútuo dos Poderes e a soltura de indivíduos que não cometeram crimes violentos nas manifestações de 2017. Foi acordado passar as eleições presidenciais de abril para maio e que a mesma fosse supervisionada pela ONU. Para a surpresa de todos, no dia da cerimônia onde seria assinado o tratado de convivência pacífica, mediado pelo ex-presidente espanhol José Luis Zapatero, a comitiva opositora recebeu um telefonema da Colômbia, onde se encontrava o então chefe do Departamento de Estado norte-americano, Rex Tillerson, e, após isso, se retirou da mesa dizendo que não cumpriria mais o acordo.

Essa ação aumentou ainda mais o descrédito da oposição, já que deixava claro que não participaria das eleições presidenciais (até então sua grande pauta) e que era teleguiada pelas autoridades norte-americanas. Se alardeava ter maioria, por que nunca participava das eleições? Se não participa das eleições, como quer chegar ao poder? Guerra civil e apoio a uma invasão dos Estados Unidos? Essa ação errática rachou a MUD em três, sendo que uma das partes, encabeçada por Henri Falcón, decidiu concorrer às eleições e assinar o tratado de garantias eleitorais que tinha sido desenhado na República Dominicana. Os outros dois terços da oposição continuaram com a posição abstencionista e passaram a fazer um circuito diplomático por Europa, Estados Unidos e América Latina, solicitando mais sanções econômicas contra seu próprio país (!) e o não reconhecimento das eleições presidenciais, as mesmas que tanto pediram, porque elas seriam – no futuro – fraudadas. Alguns mais exaltados clamam até mesmo pela intervenção armada liderada pelos EUA.

Com todo o descrédito acumulado pela oposição desde a Constituinte e seu posterior racha, assim como a reacumulação de forças do chavismo, o caminho ficou livre para uma estrondosa vitória no dia 20 de maio de 2018, quando Maduro se reelegeu com 67,8% (6,2 milhões de votos), mesmo sob forte cerco econômico, midiático e diplomático. O principal opositor, Henri Falcón, fez 21% (1,9 milhões de votos) e outro opositor, Javier Bertucci fez 10,3% (983 mil votos). Falcón não reconheceu os resultados, como de praxe, mas Bertucci sim. Também foram eleitos deputados estaduais e vereadores, renovando, no intervalo de um ano, quase a totalidade dos cargos púbicos do país, com exceção da Assembleia Nacional “em desacato”, mas nula em matéria de força.

Maduro, que sobreviveu a um atentado contra sua vida em agosto de 2018 após as eleições, quando foram utilizados drones com explosivos para matá-lo, tem agora o desafio de solucionar os problemas cotidianos da população ocasionados pela guerra econômica imposta pelo imperialismo estadunidense e a burguesia local. A população venezuelana deixou claro em quatro eleições realizadas no espaço de menos de um ano que está dando novo crédito ao chavismo. Ela espera respostas. Maduro saiu em definitivo da sombra de Chávez e hoje aparenta ser um líder mais experimentado, trilhando caminho próprio. Precisa agora ter firmeza e inovação para responder ao recado claro do povo: aprofundar a revolução. O lançamento da criptomoeda “Petro”, a primeira do gênero emitida por um país e com lastro (as riquezas minerais venezuelanas) é uma grande inovação e que permitirá ao país um canal de financiamento que burla as sanções dos Estados Unidos e da União Europeia. Porém, mais é necessário.

A Revolução Bolivariana chegou ao limite das contradições entre duas formações sociais, a capitalista (em decomposição) e a socialista (em formação). Isso se desdobra na superestrutura política, onde a burguesia local e seus aliados internacionais somente veem como alternativa a solução bélica para encerrar o processo revolucionário. É a cartada final para não tornar a Revolução irreversível. A liderança bolivariana não tem outra alternativa senão aprofundar as experiências comunais, auto-organizadas e mistas. Os empreendimentos privados podem existir somente se seguiram à risca as demandas econômicas traçadas pelo poder público. O sistema de governo deve abandonar qualquer resquício da “democracia” liberal representativa e desenvolver formas cada vez mais participativas de atuação política, inclusive em processos eleitorais (a forma como foi eleita a Constituinte de 2017 é um caminho possível). A Revolução Bolivariana precisa dar o salto definitivo para acabar com o que ainda resta de capitalismo no país. Só assim será afastada em definitivo a possibilidade contrarrevolucionária e estará seguro o futuro do processo popular e a própria segurança do país.

Conclusão

A Revolução Bolivariana é, até o momento, a principal revolução do século XXI e o maior acontecimento da América Latina no mesmo período. Hugo Chávez, é, também até o momento, a personalidade mais importante da história latino-americana neste século. Toda a história da região no início do milênio gira sobre os fatos ocorridos no país caribenho, e os posicionamentos, contrários e favoráveis ao chavismo são o “sul” da geopolítica regional. Em âmbito mundial a ação venezuelana contribui para uma série de movimentos que marcam o declínio do poderio norte-americano e sua substituição por um mundo multipolar, que, invariavelmente, terá que enfrentar o dilema da superação do capitalismo a longo prazo, ou a destruição da humanidade enquanto espécie.

A importância da Revolução Bolivariana para as lutas da humanidade contra o capital ainda está para ser avaliada. O processo venezuelano recolocou o socialismo no mapa político mundial. Provou que o projeto de esquerda que vence é o revolucionário, é o que leva as necessidades do povo a sério, é o da radicalidade e não o da “esquerda da ordem”, que se perde no republicanismo liberal, nas negociatas da pequena política e que renuncia à revolução para “humanizar o capitalismo”. Essa esquerda da ordem está totalmente derrotada mundialmente, quando não, cooptada pela direita.

A organização e a politização da população são o alicerce que sustenta o processo revolucionário venezuelano. O compromisso com os desejos do povo e a criação de saídas não-capitalistas, das quais as comunas são a principal, mostram que justamente quando se inova e se aponta um horizonte de mudança radical, se tem como retorno o engajamento político das massas. A participação política é educadora e quando se adentra esse mundo, não se fica mais indiferente ao que acontece ao redor. Enquanto no mundo inteiro se discute os limites da “democracia” representativa, a Venezuela nos apresenta uma saída de inclusão política das massas nos momentos de grande decisão, o que é coletivamente emancipatório e torna mais difícil o cenário para a manipulação e o clientelismo.

A Revolução Bolivariana, chega a duas décadas de existência, e entra em seu momento mais tenso. Aquele em que a forma de produção (e de vivência) capitalista chega ao limite de sua existência e convivência com outra formação social, socialista, em construção. Não há mais espaço para conciliação com a direita e o capital estrangeiro. Estes não vão abandonar a sabotagem, a violência e a chantagem como método político. O que ainda resta de capitalismo dependente na Venezuela precisa ser superado nos próximos anos, reforçando cada vez mais o socialismo do século XXI – Estado comunal, como uma via venezuelana para o comunismo. Esse caminho passa pela socialização da economia (comunas, autogestão, trabalho por conta própria na lógica socialista, empresas estatais e mistas, etc) e na política (delegados de base, voto qualificado como na Constituinte de 2017 e outras inovações políticas). É necessário também um grande programa de defesa do país – que até agora se mostrou eficaz, que combine as Forças Armadas, as milícias bolivarianas, uma geopolítica de integração regional e multipolar, e um sistema de Justiça revolucionário que seja firme contra a violência pró-imperialista. A luta de classes continua, mesmo no socialismo, e os inimigos da classe trabalhadora a levam muito a sério. Cabem aos revolucionários fazerem o mesmo.

Epílogo (março/2023)

O mundo mudou bastante desde a escrita do texto acima. O acosso à Venezuela, não. Mesmo assim, o pior momento do desabastecimento foi superado, mesmo que os níveis de qualidade de vida pré-sanções não tenham sido recuperados. O principal problema passou a ser não a falta de produtos, mas seu preço, devido à hiperinflação. O dólar passou a ser moeda cotidiana entre os venezuelanos, devido à desvalorização do bolívar. A partir de 2022 a situação de hiperinflação parece ter sido superada, mesmo que os indicadores ainda sejam altos. É necessário mais tempo para verificar se essa tendência se consolidará. O governo Maduro conseguiu construir uma rede alternativa de suprimentos no mundo, a partir da relação com países fora do domínio norte-americano (Rússia, China, Turquia, Irã, Belarus, etc), além de manter seus aliados na América Latina. O retorno de governos progressistas em determinados Estados da região, notoriamente o Brasil, tende a distensionar as relações com Caracas. 

A deterioração das condições de vida se traduziu no descrédito com a política em parte considerável da população venezuelana. Ao contrário do que esperava a Casa Branca e a burguesia criolla, a situação social não se desenvolveu em um apoio popular à direita. O chavismo perdeu parte de sua base social para a descrença, o que, apesar dos custos, e junto com a fragmentação contínua da oposição, permite a manutenção da hegemonia política, social e eleitoral do país. Em 2020 o PSUV retomou maioria folgada na Assembleia Nacional, acabando com o governo fake de Guaidó, e posteriormente alcançou vitória acachapante nas eleições estaduais e municipais. 

A oposição continua em processo de fratura, entre aqueles que avaliam o fracasso da posição de enfrentamento e os que desejam perpetuá-la. Partidos até então menores no campo da direita optaram pela primeira posição, participando das eleições e conquistando algumas discretas vitórias. As maiores siglas conservadoras, como Primeira Justicia, Acción Democrática, e Voluntad Popular se recusaram, e testemunham suas fileiras minguarem devido a essa postura. Como em outros países, parte da direita precisa de cargos públicos para sobreviver. Sem eles, o clientelismo e o fisiologismo perdem boa parte do seu poder político e econômico.

O governo bolivariano administrou bem a situação da pandemia, com a Venezuela ostentando números baixos de contágios e adquirindo rapidamente vacinas cubanas e russas para imunizar toda a população. No entanto, os ataques sofridos na última década se não foram capazes de derrotar a Revolução, desaceleraram ou até mesmo paralisaram a transição socialista. O país foi mobilizado mais para as necessidades de defesa do que o incremento das novas formas produtivas e de decisão política. A Constituinte de 2019 não modificou as formas de poder político já existentes, e a experiência das comunas avançou pouco nos últimos anos. Há aqueles que acusam o governo de burocratização. Os mais radicais até de guinada à direita. Por sua vez, algumas vozes dissidentes são taxadas de esquerdistas ou oportunistas.

É necessário compreender os movimentos da conjuntura. A Revolução Bolivariana avançou até onde pode. Após a morte de Chávez passou a ser embarreirada pelas ações mais violentas do imperialismo neste século na América Latina. Vencido, ao que parece, o momento de acosso mais agudo, é necessário saber sair do labirinto promovido pelos EUA para iniciar uma nova rodada de avanços do socialismo do século XXI. Nesse processo, é vital seguir firme junto ao processo revolucionário, mas sem medo de encarar desvios e má conduta de quem quer que seja. É com inteligência e ousadia que se honrará o legado de Chávez.

Sobre os autores

é Professor da Faculdade de Educação da Universidade do Estado do Rio de Janeiro. Membro do Programa de Extensão Desenvolvimento e Educação Theotonio dos Santos (PROPED-UERJ) e Secretário-executivo da Rede de Economia Global e Desenvolvimento Sustentável da UNESCO (REGGEN-UNESCO).

Cierre

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